Como o MST impulsiona a Saúde da Família do Campo

É possível combinar a luta pela reforma agrária com o fortalecimento do SUS? Um pioneiro programa de residência voltado para a atenção à saúde da população rural, coordenado pela UPE e pelo movimento social, mostra o caminho

Reunião de residentes e assentados no Acampamento Jean Carlos, do MST.
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No dia 1º de maio de 1993, famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) ocuparam a antiga fazenda Normandia, abandonada por seus donos, na zona rural de Caruaru (PE). Hoje, os agricultores ali assentados, que conquistaram a desapropriação do terreno em 1997, desenvolvem atividades como a produção de bolos e pães a partir dos frutos da reforma agrária. No local, também está sediado o Centro de Formação Paulo Freire, uma importante escola do MST.

No atual assentamento Normandia, desenvolve-se ainda uma instigante experiência de Saúde Pública: o primeiro programa de residência especificamente voltado para a Saúde da Família do Campo da história do país, cujas atividades foram iniciadas em 2015. Nele, os residentes – enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, assistentes sociais, entre outros, já que esta é uma residência multiprofissional – estagiam junto aos profissionais locais do SUS atendendo áreas ligadas à luta dos povos do campo, como o próprio assentamento Normandia, o acampamento Jean Carlos (também do MST), e as comunidades quilombolas do município de Garanhuns, a 100 km dali. 

Outra Saúde entrevistou residentes, tutores do programa e assentados do MST em Normandia para conhecer a Residência Multiprofissional em Saúde da Família do Campo (RMSFCampo), uma parceria entre a Universidade de Pernambuco (UPE) e o MST que completará 9 anos em 2024, ano em que o próprio MST alcança quatro décadas de existência.

Os desafios são muitos, eles nos contam. Contudo, lembram os participantes, maiores que os desafios são os saldos – o envolvimento fértil entre a universidade pública, o SUS e o movimento social organizado oferece a oportunidade de dar passos decisivos na construção de um Brasil mais democrático, humano e justo com aqueles que trabalham.

A formação da Residência Multiprofissional

Segundo a lei que as regula, as residências dos cursos de Saúde são “uma modalidade de ensino de pós-graduação […] sob a forma de curso de especialização”. Sob a orientação de profissionais de elevada qualificação, os residentes aprofundam seus conhecimentos e práticas em uma determinada especialidade de Saúde — como, neste caso, na Saúde da Família do Campo.

Tutora de Serviço Social na RMSFCampo da UPE desde a criação do programa, Roberta Uchôa fez um depoimento a Outra Saúde sobre as origens do programa de residência, lembrando o papel de nomes como Paulette Cavalcanti (Fiocruz-PE), Bernadete Antunes (UPE) e Lívia Méllo (MS) na articulação. “Esse projeto surge a partir de debates entre esses profissionais, o MST e os estudantes que, à época, faziam residência em saúde pública em Recife”, no campus da UPE na capital pernambucana.

“Naquele momento, inclusive por conta do Mais Médicos, já havia mais médicos e enfermeiros, mas faltavam os outros profissionais que compõem a equipe multiprofissional em saúde. A ideia era justamente suprir essa lacuna, porque no interior é mais difícil garantir a presença de profissionais como psicólogos, fisioterapeutas e assistentes sociais do que nos centros urbanos”, ela explica.

Assim, em 30 de março de 2015, o Conselho Universitário da UPE aprovou a criação do programa, que desde então “pratica a formação pelo trabalho na atenção primária nos territórios de comunidades que vivem no campo e contribui com a redução das desigualdades sociais e com o fortalecimento da concepção de saúde como direito de cidadania e dever do Estado”. Hoje, o professor de Enfermagem Itamar Lages, diretor do Cebes Recife e militante contra a privatização da Saúde na capital pernambucana, é seu coordenador.

Apesar de ser professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e não da UPE, Roberta coordena a área de Serviço Social do projeto há alguns anos. “A UPE até tem um Departamento de Serviço Social, mas ele fica na Mata Sul de Pernambuco, no município de Palmares, e ficaria muito difícil para os professores se deslocarem até Caruaru ou Garanhuns. Por isso, me convidaram para fazer parte”, explica.

Por sua vez, o MST, deixou sua estrutura à disposição do programa desde o início das atividades, lembra Roberta. “O Centro de Formação Paulo Freire, de Normandia, é uma referência de formação sobre o campo, então obviamente começamos por esse território. Depois, ampliamos para os territórios quilombolas em Garanhuns e outros, não ligados ao MST, mas que têm essa característica de trabalho junto às comunidades tradicionais”, diz a professora.

Desde então, “com exceção de 2021, tivemos seleção para o programa em todos os anos”, conta a tutora, orgulhosa.

O papel dos residentes

Reunidos, os residentes da RMSFCampo.

Como base para suas atividades de lá para cá, “a residência do campo se apoia na Política de Saúde da População do Campo, da Floresta e das Águas”, explica a assistente social paulista Luma Lemos, formada na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), uma das residentes do programa. A implementação adequada desta política, que surgiu em 2011, é uma das principais reivindicações dos movimentos de trabalhadores rurais ao Ministério da Saúde, como contou Outra Saúde no ano passado.

Chegando ao Agreste pernambucano, os residentes são designados para acompanharem as equipes de saúde da família das Unidades Básicas de Saúde (UBSs) de Rafael e Cachoeira Seca, ambas na Zona Rural de Caruaru. O assentamento Normandia é coberto pela UBS de Rafael.

“Nós estamos lotados nos postos de saúde, mas fazemos ações que abrangem todo o território, como atividades de educação em saúde e o Programa de Saúde nas Escolas (PSE). Temos um grupo de mulheres focado em fisioterapia, mas que também faz discussões sobre saúde da mulher, principalmente da mulher idosa. Outras pessoas fazem atividades de odontologia, nutrição, e por aí vai”, enumera Luma. Para ela, enquanto assistente social, esse caráter multiprofissional do programa ajuda a ilustrar “os direitos em sua completude”, para residentes e beneficiados.

Seguindo um princípio muito caro à organização popular, os residentes buscam sempre promover “atividades coletivas, para que as pessoas tenham trocas”. Mas também são realizadas visitas domiciliares, que levam atendimentos e vacinações ao conjunto das famílias em seu próprio local de moradia. Devido a sua profissão, Luma auxilia os assentados a se cadastrarem em programas de benefícios nas visitas.

Contudo, a lida da RMSFCampo não se restringe às atividades cotidianas do SUS no meio rural. Os residentes também se integram ao calendário do próprio MST, ampliando sua interação com a população assentada – o que, por sua vez, os ajuda a aperfeiçoar sua compreensão das necessidades de Saúde da região e fazer propostas quanto a elas. Foi o que muitos já fizeram em seus Trabalhos de Conclusão de Residência (TCR), obrigatórios para o diploma.

Construída pelo poder popular

Reunião de assentados e residentes.

Exatamente por conta dessas atividades em parceria com o movimento social, dizem os residentes, a RMSFCampo oferece experiências e aprendizados para além das que normalmente se esperariam de um programa de residência.

Ao ingressar na residência em março do ano passado, “a gente já começou com um acolhimento no Centro de Formação Paulo Freire, que é o Centro de Formação do MST aqui de Pernambuco, e uma semana de imersão no assentamento Normandia. O Jaime Amorim, da coordenação do MST, participou e fizemos uma análise de conjuntura que ressaltou a importância da democracia para a população do campo”, rememora Luma. 

Ela explica que “os debates foram muito no sentido de ter uma imersão política sobre quais eram as perspectivas da residência, qual é o projeto ético-político dela, para que a gente chegasse aos nossos campos de trabalho um pouco mais apropriadas do que seria fazer parte da residência do campo”.

Depois, os residentes foram convidados a participar do Encontro Estadual do MST. Além de uma oportunidade de discutir as bases metodológicas que a residência compartilha com o MST, como a pedagogia freiriana, “foi um momento muito importante para revigorar nossas forças e entender coletivamente como tratar as questões de saúde e cuidado junto com o nosso povo”, diz a assistente social.

Frequentemente, os estudantes da RMSFCampo também são introduzidos nas atividades do Setorial de Saúde do MST, atuante na área de Caruaru. “Em todas as atividades em que vamos pensando, o MST participa, buscando ver como pode contribuir”, conta Luma.

As particularidades da saúde no campo

Reunião com residentes e assentados. De camisa branca, Itamar Lages, coordenador da RMSFCampo.

Por outro lado, a residência multiprofissional enfrentou diversas dificuldades em sua implementação – em parte por seu caráter pioneiro, mas também pelos desafios que a Saúde e a Educação enfrentam no contexto rural. “O que é mais particular em relação à saúde do campo, eu diria que é, sobretudo, a dificuldade de acesso a serviços. É sempre muito complicado”, avalia Uchôa. 

Não foi sempre, também, que as expectativas dos assentados e dos residentes coincidiram. “A primeira geração de residentes teve dificuldade de se adaptar à vida mais coletiva do campo, teve uma que até voltou para o lugar de onde ela vinha”, lembra Mauriceia Matias, membro do MST e assentada em Normandia há 16 anos. Mauriceia participa das atividades da residência desde sua criação.

“Nós tínhamos muitas demandas”, ela conta, e nem sempre o programa pôde atendê-las. Para exemplificar, Mauriceia relembra um episódio em que uma trabalhadora rural se frustrou com o fato de que uma residente em Veterinária não estava autorizada a tratar de sua vaca doente. 

Além disso, passaram algumas turmas até que o programa criasse pastas por família registrando o acompanhamento do cuidado, o que facilitou o repasse de informações aos novos residentes. “Houve um avanço, até para eles nos entenderem e a gente ter essa intimidade, já que a doença às vezes está ligada a outras situações, que não são clínicas”, opina a pernambucana.

Avaliando positivamente a presença da Residência no assentamento, Matias percebe que, por meio da abordagem própria da Saúde da Família do Campo, “foram levantadas as questões socioculturais, econômicas e políticas” das demandas de Saúde – e mesmo de fora da Saúde – dos assentados. “Isso vai dando mais qualidade de vida e a gente também se sente mais cuidado”, ela diz.

Mesmo assim, a professora Roberta Uchôa avalia que a RMSFCampo deveria ser melhor financiada para funcionar mais adequadamente. “As condições objetivas de realização dessa residência são muito complicadas. Os territórios são distantes de quem está em Recife, e toda a equipe que trabalha dando apoio à residência está lotada na capital. A gente faz por compromisso político e por dedicação à saúde pública mesmo, particularmente à saúde do campo”, aponta Roberta.

 “O projeto que foi apresentado em 2014 e que está sendo executado até hoje tem no contrato a garantia das bolsas para os estudantes residentes. Mas os profissionais que trabalham na residência, ou seja, os preceptores que estariam nos territórios e os tutores acadêmicos, que são quase todos de Recife, não têm nenhuma ajuda, não têm absolutamente nada. De toda forma a gente faz, está executando e posso lhe assegurar que é uma residência que tem muito acompanhamento, que a academia está bem próxima”, completou a professora de Serviço Social.

Para além do atendimento médico

Roda de conversa no acampamento Jean Carlos do MST.

Nesse contexto de desafios, sintetiza a professora Roberta, “você precisa articular as demandas individuais, as demandas coletivas e a necessidade de ampliação das políticas públicas”. Para isso, “o SUS vai enfrentando e superando as barreiras que aparecem”, complementa Luma, e os residentes buscam caminhos em conjunto com a população que atendem.

Uma prioridade consiste na necessidade de gerar emprego e renda dignos para os assentados – que, como sempre lembra o movimento sanitarista, são decisivos para garantir o bem-estar dos povos. Na região, apesar de morarem em territórios da reforma agrária, muitos trabalham para a indústria têxtil, que oferece trabalhos “precarizados e exaustivos”, diz Luma. Os impactos de saúde são relevantes, já que “as pessoas ficam sentadas o dia inteiro, evitam beber água para não ter que ir ao banheiro e, no caso das mulheres, acabam desenvolvendo problemas ginecológicos”

No acampamento Jean Carlos, outro latifúndio improdutivo ocupado pelo MST no ano passado em Caruaru e atendido pela RMSFCampo, a saída tomou a forma da união entre a medicina tradicional e a moderna. Em uma oficina promovida pelos residentes, os ocupantes “falaram que queriam trabalhar com plantas medicinais, que até já faziam isso, mas que gostariam de receber uma formação. Aí, chamamos o Joelson Santos, um médico do MST, e ele fez uma capacitação junto à comunidade com plantas medicinais que servem para questões como ansiedade e dificuldades de gestão estomacal”, conta a residente.

“A ideia é que futuramente eles possam comercializar essas plantas medicinais, seguindo todo o protocolo correto. No próximo ano, vamos ficar de olho em editais para submeter o projeto e garantir recursos para essas comunidades”, antecipa Luma.

Já no assentamento Normandia, a partir do estágio de uma residente, os participantes da Residência Multiprofissional criaram o Focar, um programa de “fortalecimento de comunidades assentadas através de redes de produção agroecológicas”. Nas oficinas, em discussões sobre “a questão agrária, a questão da mulher, a indústria têxtil e outros temas” com mulheres do assentamento, os residentes estimularam conversas sobre “o que elas gostariam de fazer de forma coletiva, que beneficiasse toda a comunidade e pudesse ser um ponto de renda”, lembra Luma. 

Desses diálogos, surgiu a ideia de fortalecer a produção das “boleiras”, assentadas que trabalham com a produção de bolos e pães. Por meio das ações impulsionadas pelo Focar, elas tiveram acesso a mais estrutura, crédito e formações técnicas oferecidas pela Fiocruz Pernambuco. Hoje, as boleiras fornecem produtos da reforma agrária para as escolas da região por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Mauriceia é uma das boleiras originais de Normandia a participar do projeto. Ela considera que o programa serviu para “oxigenar a economia nos assentamentos”. 

Mauriceia conta que no ano passado, também junto da professora Roberta Uchôa, elas ganharam uma bolsa da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco (Facepe) para fazer um registro histórico de suas atividades, “para servir de exemplo para outras comunidades”.  As boleiras visitaram essas outras comunidades, nem todas do MST, que se somaram ao Focar, “trocando experiências, fazendo intercâmbio”. 

Recentemente, por meio de um edital da Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco, uma dessas associações de trabalhadores rurais da região, que participa das oficinas do Focar mas não faz parte do MST, recebeu recursos para comprar equipamentos e materiais novos, que permitirão “melhorar as condições de produção e fazer polpa de fruta, geleia, sorvete” com as frutas da região, diz Roberta Uchôa.

“A partir do programa, vai ser lançado um Manual de Boas Práticas da Agricultura Familiar, com orientações sobre como se organizar, criar um CNPJ, mobilizar as mulheres, fazer receitas”, conta a militante do MST. 

“O projeto criou raízes, que nem uma macaxeira depois que a gente planta o rebolo”, ela compara.

“Esperança no triunfo que virá”

Pesando as dificuldades e as alegrias, os entrevistados são unânimes em considerar que a aliança entre o MST, a universidade pública e o SUS torna a RMSFCampo uma experiência única – e, por isso, valiosíssima nos acúmulos que oferece para a Saúde Pública do país. “É um comprometimento gigante, mas que traz uma troca de experiências também gigante entre os universitários e os camponeses”, resume Mauriceia.

“A gente sempre brigou para que a Saúde do Campo, assim como a Educação do Campo, tivesse um olhar específico”, reivindica a assentada, e o programa de residência multiprofissional é um passo “positivo e propositivo” nesse sentido.

No dia 22 de janeiro, o MST completou 40 anos desde sua fundação no 1º Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Cascavel (PR). A existência cada vez mais fortalecida do movimento é prova de sua contínua importância para o povo brasileiro. É também um atestado de seus acertos políticos, que vão do assentamento de mais de 400 mil famílias em todo país ao apoio à criação de programas como a RMSFCampo, que fazem avançar a atenção em saúde para todos os povos do meio rural, não só os sem-terra.

“O MST é um grande professor da residência. Essa residência surgiu junto do movimento, e se não fosse o MST arrisco dizer que essa residência não existiria”, opina Luma. 

“Em um país com tanta desigualdade, o MST é uma referência, mas não é uma referência sem materialidade. Não é uma esperança utópica, é uma esperança real de que nós vamos viver dias melhores. Parece até muito filosófico, mas na luta pela terra, em lugares em que antes não tinha povo, a gente gera emprego, subsistência, luta por Saúde e Educação, cada um pode ter sua casa, um lugar para produzir. Eu vejo por esse caminho”, conclui Mauriceia.

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