Como construir um SUS para populações migrantes

Pela primeira vez, a Conferência Nacional de Saúde teve uma delegação de pessoas migrantes, eleitas em conferência livre. Os delegados defenderam 20 propostas para o SUS – e demandam mais participação popular no ministério

Foto: ACNUR Agência da ONU para Refugiados
.

A 17ª Conferência Nacional de Saúde, que aconteceu em Brasília entre os dias 2 e 5 de julho, recebeu pela primeira vez uma delegação exclusiva de pessoas migrantes. Os 5 delegados de origem equatoriana, haitiana e venezuelana foram eleitos na Conferência Nacional Livre de Saúde das Populações Migrantes, que aconteceu em maio desse ano e contou com a presença – virtual e física – de 876 pessoas de 19 cidades de 12 estados e Distrito Federal do Brasil.

As discussões sobre saúde das Populações Migrantes resultaram em 4 diretrizes e 20 propostas para os próximos anos do Sistema Único de Saúde (SUS), que foram enviadas ao Conselho Nacional de Saúde para integração da Conferência Livre à 17ª Conferência Nacional de Saúde e foram defendidas pelos delegados migrantes.

Uma série de atividades e reuniões preparatórias antecederam as Conferências de saúde que tiveram palco em 2023. Em 2021, aconteceu a 1ª Plenária Nacional sobre Saúde e Migração do Brasil com o objetivo de pautar a equidade no SUS para migrantes e encaminhar propostas para elaboração de novas políticas públicas. Os trabalhos da Plenária foram organizados em atividades autogestionadas e divididos em cinco etapas regionais. Por fim, a etapa nacional consolidou e lançou as bases para a constituição de uma Frente Nacional pela Saúde de Migrantes (FENAMI).

Por uma Política de Atenção à Saúde das Populações Migrantes

Essa mobilização faz parte de um esforço de estruturação de um movimento de migrantes e apoiadores que consiga emplacar no país uma Política de Atenção à Saúde das Populações Migrantes, articulação inédita de consolidação de uma estratégia que define cuidados em saúde específicos para esse grupo de pessoas.

O SUS não se baseia apenas na universalidade, mas também na equidade. Para garantir o caráter universal do sistema de saúde, é preciso considerar as desigualdades da sociedade brasileira, como questões linguísticas, culturais, étnico-raciais e outras.

Segundo Alexandre Branco-Pereira, da FENAMI, o movimento que levou à eleição dos delegados tem como objetivos, primeiro, possibilitar uma mobilização ampla entre as comunidades migrantes, de modo que estejam apropriadas e envolvidas ativamente nas lutas pela garantia de sua saúde. Por fim, estabelecer uma política nacional estruturada que seja resistente a intempéries políticas e mudanças de governos.

No Brasil, estabeleceu-se de forma descentralizada algumas políticas destinadas a esse grupo em municípios e estados. Porém, a experiência demonstrou a fragilidade desses planos, que enfrentaram descontinuidade e enfraquecimento. A cidade de São Paulo, por exemplo, teve sua política sobre saúde de migrantes, estabelecida em 2016, paulatinamente desassistida.

Limites do Grupo de Trabalho do Ministério da Saúde

O Ministério da Saúde criou, no último mês, um Grupo de Trabalho (GT) para elaborar a Política Nacional de Saúde das Populações Migrantes, Refugiadas e Apátridas, sob coordenação da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA). O GT terá duração de um ano para conclusão das atividades, pode ser prorrogado por igual período e será composto por membros do Ministério, com possibilidade de participação, como convidados, de representantes de gestores de outras esferas federativas, governos estrangeiros, órgãos e entidades públicos e privados, organizações não governamentais e especialistas.

A constituição do GT parte de uma demanda dos movimentos de migrantes no país, através de requisições oficiais ao Ministério e articulação política. É, então, uma vitória e uma importante sinalização no sentido de criar uma Política. No entanto, segundo Alexandre, o documento que o instituiu possui limites cruciais que comprometem o processo e estabelecimento de uma nova política pública.

O GT não contempla um espaço consolidado de participação social, também princípio fundacional do SUS. A participação de representantes da população migrante só é prevista através de convites da coordenação, e não prevê uma cadeira de participação permanente em reuniões ou encontros de preparação. Essa é uma falha importante pois compromete a transparência e o conteúdo dos trabalhos, uma vez que a participação da sociedade civil não é só direito, mas também a garantia de uma condução que contemple aspectos essenciais à política. É essencial que a sociedade civil participe de todas as etapas dessa construção.

Também é preocupante que o GT esteja sob coordenação da SVSA. A experiência histórica, no Brasil e no mundo, demonstra que ao se privilegiar a área da vigilância no trabalho com a população migrante, corre-se o risco de promover o tratamento desse grupo como um perigo epidemiológico ou potencial vetor de transmissão de doenças. Essa é uma perspectiva que choca com a proposta de garantia de direitos que a Política deve prever. 

Durante a pandemia de Covid-19, vários episódios demonstraram os impactos discriminatórios desse tipo de associação, como a vinculação entre chineses e o vírus ou a proibição da entrada de brasileiros em certos países por causa da variante descoberta na região amazônica.

Por meio de requerimento de informação parlamentar, via articulação da FENAMI, o Ministério da Saúde foi solicitado a esclarecer os motivos sob os quais o GT não prevê participação permanente da sociedade civil, assim como foram comunicadas as preocupações sobre o estabelecimento do mesmo na SVSA.

Leia Também: