Com a fala, o povo que constrói o SUS

A 17ª Conferência Nacional de Saúde realizou debates em quatro Eixos Temáticos, em que convidados e delegados puderam expôr as necessidades para a construção de um SUS com equidade de fato. Movimentos sociais tiveram participação marcante

Foto: Conselho Nacional de Saúde
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A 17a Conferência Nacional de Saúde trouxe à capital federal boa parte do amálgama de mobilizações sociais que construíram a vitória eleitoral de Lula. Trata-se de um raro momento em que todas – ou quase todas – as lutas sociais espalhadas pelo Brasil confluem para um único lugar. Um encontro de ativismos e gerações diversas que expressa o imenso represamento histórico de demandas por justiça social.

“Não dá mais pra pensar em propostas pro SUS que ignorem a realidade da vida. A negação do investimento, cortes, precarização, mercantilização, a transferência da gestão para equipamentos que negam os direitos humanos. Tivemos uma política de morte, que rompe com a circularidade da vida. O cotidiano brasileiro vê a permanência dessa política de morte”, afirmou Rachel Gouveia Passos, professora da Fiocruz que palestrou em um dos quatro Eixos Temáticos, que norteiam as principais discussões do evento.

Os Eixos foram debates realizados nos dois primeiros dias do evento. Com três palestrantes em cada, eles se dividiram nos seguintes temas: O Brasil que temos e o Brasil que queremos; O papel do controle social e dos movimentos sociais para salvar vidas; Garantir direitos e defender o SUS, a vida e a democracia; Amanhã vai ser outro dia para todas as pessoas (ver íntegra aqui e aqui). Ao final de cada exposição dos palestrantes, coloriam o palco as reivindicações dos delegados presentes, mostrando a complexidade que é construir um SUS efetivamente para todos.

“O SUS é o nosso plano de saúde e uma das melhores políticas públicas do mundo. Nós, pobres, negros, periféricos, enquanto lutávamos pra sobreviver, vimos o papel do SUS na pandemia. Agora, com a volta dos conselhos participativos, vemos uma retomada do sistema público de saúde”, afirmou Luiza Batista Pereira, da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad).

Como dito por Nísia Trindade na segunda-feira, a 17a CNS retoma o espírito da Constituinte e da redemocratização do país, à época expressados na 8a Conferência e na própria criação do Sistema Único de Saúde. A marca desta edição é avançar na afirmação do controle e participação sociais do sistema de saúde. Esse é o recado que os inúmeros grupos e movimentos sociais, muito além do âmbito da saúde, deixam em Brasília.

“Não tem como pensar controle social e saúde comunitária sem participação dos movimentos sociais. A pandemia passou e o poder público não fez nada. Não fossem os movimentos sociais e questões básicas como educação, moradia e alimentação teriam sido ignoradas”, afirmou Emanuela Nascimento, da Rede de Comunicadores Populares de Paulista, cidade localizada na região metropolitana do Recife. 

“Vimos toda a ausência do poder público na pandemia. Nossas experiências de roçados solidários, também em outros momentos, como as chuvas que afetaram vários estados, são a mostra do que podemos fazer. Cuidar, preservar e alimentar é um dos nossos lemas. Por isso que CPI nenhuma vai fazer a gente parar de lutar”, completou Alexsandra Rodrigues de Lima, do MST, ao contar as experiência de solidariedade do movimento do entorno da capital pernambucana.

Como se vê, a memória da pandemia ainda está forte no povo brasileiro, naquelas pessoas raramente visibilizadas pela mídia corporativa presa nas fofocas em torno de uma suposta instabilidade de Nísia, para não falar do vazio analítico a respeito do trabalho de seu ministério. Enquanto isso, na Conferência, os gritos de “inelegível” foram entoados repetidamente, a cada intervalo ou início de nova atividade. Gozo coletivo que ainda percorre corações e mentes daqueles que sentiram na pele a barbárie prática do bolsonarismo.

“Estamos falando de pessoas que trabalharam na linha de frente e perderam gente, viram pessoas próximas morrer. Não estou falando de profissionais de saúde apenas, mas também de outros trabalhadores invisíveis que se colocaram em risco para deixar a estrutura de saúde em condições de atendimento. Faxineiros, auxiliares, ascensoristas, seguranças… Esses trabalhadores também enfrentaram o negacionismo, as fake news. Precisamos reconhecer o trabalho de muita gente, inclusive os que não estão mais aqui”, falou Ana Lúcia Paduello, que representa os usuários do SUS no Conselho Nacional de Saúde.

Como se vê, a política de saúde deixou de ser um assunto exclusivo de técnicos da área, marca dos debates históricos, até da célebre 8a Conferência, como reconhecem os próprios especialistas e profissionais da saúde envolvidos nessa construção. E se falamos de controle social, também falamos de um projeto de sociedade, da compreensão de que saúde é indivisível da própria noção de democracia.

“Foram anos de massacre e intensificação de um processo de expulsão de territórios e maretórios dos povos tradicionais. Quem promove o país na conjuntura econômica são os trabalhadores. O que produz democracia é participação e controle social. Moro na reserva costeira marinha do Pará. Nos articulamos com 122 mil famílias, falamos sobre saúde, educação, alimentação. Nossos verbos são reconhecer, determinar e garantir. E vivemos três relações de produção: no campo, na floresta e nas águas. Por isso valorizamos o SUS em todas as suas dimensões”, explanou Célia Nunes das Neves, educadora popular na área do litoral paraense, próxima ao Oiapoque, praticamente última fronteira das formas predatórias do desenvolvimento capitalista no Brasil.

Como resumiu Rachel Gouveia Passos, “o SUS é parte de uma conquista coletiva histórica”. E como falado inúmeras vezes por toda a Conferência, “é hora de radicalizar a democracia”.

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