Como Manguinhos (RJ) constrói outra Saúde

Catálogo organizado pela Fiocruz expõe estratégias culturais auto-organizadas por moradores da comunidade carioca. Franciele Campos, moradora e pesquisadora, reflete: “imagina o que essas pessoas fariam se existissem políticas públicas?”

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Franciele Campos em entrevista a Gabriel Brito

Dança, teatro, música, esportes, biblioteca, ateliê, bloco carnavalesco, espaços de conversa, terapia. Atividades que associamos com as porções desenvolvidas das cidades que conhecemos, e aos nossos sonhos de realização pessoal e bem estar, estão vivas numa comunidade na zona norte da cidade do Rio de Janeiro — num dos locais onde o Estado quase só chega com tropas, escudos, balas. É isso que o catálogo Estratégias culturais como alternativas de inclusão social de populações vulnerabilizadas no campo das políticas públicas sobre saúde mental: estudo de caso na comunidade de Manguinhos, produzido por pesquisadores da Fiocruz, trata de avisar a todos nós. 

Desenvolvida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Queen Mary University of London (QMUL) e coordenada pelos pesquisadores Ana Paula Guljor, Paul Heritage,  Paulo Amarante e Silvia Monnerat, a obra, que pode ser acessada em PDF aqui, elenca toda essa miríade de atividades em espaços associados à barbárie e à segregação que ainda marcam a sociedade brasileira. Todas elas, sustentam os envolvidos, diretamente relacionadas com o direito à saúde, inclusive mental.

“Em nossos anos de movimentação em Manguinhos, vimos uma série de atividades que são feitas no silêncio, sem evidência e apoio do poder público. Ao fazer cultura em Manguinhos, encontramos e apresentamos inúmeras questões que são problemáticas, porém não conseguimos apresentar uma saída. Qual seria ela? A auto-organização? A organização comunitária? E onde entra o Estado? Será sempre nós por nós? Se essas pessoas conseguem fazer a diferença quase sem dinheiro, usando espaços improvisados, entremeando as ações culturais com o trabalho com o qual mantêm suas famílias, imagina o que fariam se existissem políticas públicas que garantissem recursos permanentes para a realização destas atividades”, explica o texto de apresentação do Catálogo, escrito por Franciele Campos e Luís Soares.

Franciele é pesquisadora vinculada à Fiocruz, mas também é uma mulher multitarefas, forjada nas lutas cotidianas de uma das áreas “pacificadas” pelo Estado brasileiro em tempos recentes. 

“Quando pensamos e desenvolvemos arte, a qual não acessamos nas nossas escolas e espaços públicos, percebemos isso, seja no rap, na dança, na forma de nos expressar — tudo está marcado no nosso corpo. Questões de saúde mental têm uma dimensão muito grande ao nosso redor e se não construirmos uma narrativa que permita contar sobre como conseguimos sobreviver nessa realidade, sempre sofreremos”, afirma ela, em entrevista ao Outra Saúde.

Inserida em Manguinhos, a Fiocruz e seus pesquisadores perceberam toda a trama social que se organiza fora de qualquer agenda estatal de política pública. Levantam e apresentam ao público toda a potencialidade de um Brasil invisível e esquecido. E ao registrar o trabalho de cada coletivo em cada viela jogam luz sobre esses territórios cujos habitantes não têm vez e voz nos grandes salões. 

Ao longo da entrevista, Franciele — ela própria uma sobrevivente da imensa armadilha organizada pelo Estado brasileiro — conecta toda essa gama de atividades lúdicas a uma estratégia de sobrevivência e criação de um mundo mais suportável para uma comunidade pobre, formada por trabalhadores que acordam cedo e se matam em jornadas extenuantes de trabalho. As lutas sociais também estão lá, registro da brutalidade aterradora que marca o Brasil. Mas a luta por uma vida saudável floresce mesmo nas piores condições. 

“Acompanho o movimento Mães de Manguinhos, que perderam filhos assassinados no processo de ‘pacificação’ de favelas e bairros pobres no Rio. Vi elas se organizarem não só em questões comunitárias, mas em temas até mais jurídicos”, comenta Franciele. “Fizeram um caminho de enfrentamento ao nosso genocídio. Tudo que vivemos sempre doeu muito. Dói ouvir uma mãe contar como seu filho foi sufocado numa viatura, ou como não consegue dar andamento jurídico a seus processos. Essas dores nos acompanham e às vezes quando não conseguimos falar, a poesia fala. Quando não conseguimos parar de chorar, nosso corpo responde e cria movimentos de dança”.

Leia abaixo a entrevista com Franciele Campos.

Como você resume o catálogo Estratégias culturais como alternativas de inclusão social de populações vulnerabilizadas no campo das políticas públicas sobre saúde mental: estudo de caso na comunidade de Manguinhos?

O catálogo tem como seu eixo a questão da não inclusão em nenhuma política pública, mesmo quando diz respeito à saúde e bem estar. Aqui, próximos a Fiocruz, uma fundação importante, temos conceitos de determinantes sociais de saúde e dentro disso a cultura sempre fica como algo secundário. Mas também entendemos e aprendemos que saúde não está necessariamente ligada ao indivíduo, mas ao ambiente onde ele está inserido.

Quando desenvolvemos atividades artísticas de forma autônoma, sem acesso nenhum a editais, projetos, formalizações que dizem respeito ao que é um trabalho artístico, isso de fato nos distancia do que poderia ser uma política pública que envolva saúde. 

Importante falar que a dentro dos grupos que contatamos neste tempo na produção do Catálogo poucos conseguem viver de arte. Nos momentos mais livres é que produzem arte.

Qual importância você confere a toda essa organização de práticas culturais no atual contexto socioeconômico?

Se a maior parte dos artistas envolvidos em ações culturais em Manguinhos não consegue viver de arte, muito por conta da estrutura racista, dificilmente serão vistos em profissões que não nos violentem. Estamos em lugares sempre perigosos, pouco acessíveis e nunca somos vistos como pessoas que constroem estratégias de sobrevivência, constroem outras realidades, elaboram outras tecnologias para sobreviver numa realidade intencionalmente abandonada pelo sistema. 

Como todos os trabalhos registrados artísticos, esportivos e culturais mostrados no catálogo dialogam com questões de saúde? 

Quando digo que posso produzir arte, isso me faz chorar menos, mas não me faz esquecer do sangue que já lavei rapidamente para que o resto do meu povo não visse o que a polícia fez. Mas o cheiro do sangue permanece. Guardamos e mantemos essas coisas em nossas memórias. Guardamos medos que não são reais para o resto da cidade. 

Quando pensamos e desenvolvemos arte, a qual não acessamos nas nossas escolas e espaços públicos, percebemos isso, seja no rap, na dança, na forma de nos expressar, tudo está marcado no nosso corpo. Questões de saúde mental têm uma dimensão muito grande ao nosso redor e se não construirmos uma narrativa que permita contar sobre como conseguimos sobreviver nessa realidade, sempre sofreremos. 

Manguinhos tem 35 mil habitantes, maioria trabalhadores que saem cedo de casa, trabalham em dois ou três lugares, e têm a vida atravessada por uma política pública genocida. Isso não atrapalha só o cotidiano prático, material, mas a própria chance de ter uma vida mais saudável.

O que você pode contar de sua experiência pessoal enquanto moradora de Manguinhos? O que isso tudo significa em sua vida?

Sou historiadora da arte, comunicadora, cineasta, produtora cultural, fotógrafa, desenhista, mas também sou resultado de um processo racista que não me permitiu ser só uma dessas coisas; para poder sobreviver, fui levada a ser todas essas coisas simultaneamente. 

Não vivo de arte, trabalho com pesquisa. Mas produzo arte com coletivos, e isso me dá força pra ter consciência de que existe uma possibilidade de criar outra coisa para nós. Talvez não caiba isso hoje, mas adiante caberá no imaginário de uma criança, lendo histórias, criando poesia e vendo pessoas semelhantes dançando num grupo de balé. Isso transforma, vem de dentro, vem das pessoas que estão aqui. 

Acredita que essa experiência coletiva relatada no catálogo possa servir de exemplo a outros territórios afetados pela crise socioeconômica e a precarização da vida?

Acredito que sim, e que o envolvimento de tantas instituições aumente nossa visibilidade para tudo que fazemos. 

Acompanho o movimento Mães de Manguinhos, que perderam filhos assassinados no processo de “pacificação” de favelas e bairros pobres no Rio. Vi elas se organizarem não só em questões comunitárias, mas em temas até mais jurídicos. Fizeram um caminho de enfrentamento ao nosso genocídio. Tudo que vivemos sempre doeu muito. Dói ouvir uma mãe contar como seu filho foi sufocado numa viatura, ou como não consegue dar andamento jurídico a seus processos. 

Essas dores vieram nos acompanhando e às vezes quando não conseguimos falar, a poesia fala. Quando não conseguimos parar de chorar, nosso corpo responde e cria movimentos de dança. Tudo que vivi com a arte me confirmou uma experiência: não existe uma produção que envolva nossas histórias sem uma luta junto. Somos resistentes. Se sobrevivemos em meio a essa realidade, com tanto racismo, negação e precarização, é porque não há nada que não possamos fazer. 

Não à toa seguimos uma metodologia de coautoria e o catálogo é apresentado em nome de coletivos. Claro que queremos mostrar tudo que há de força em Manguinhos, mas queremos influenciar política pública, com as direções de que precisamos, os fundamentos da arte que nos envolve. A gente produz, não pega de fora. A gente se conhece, sabe da nossa potência, é a política pública que se recusa a isso. 

Torço para que o catálogo possa influenciar outros territórios que tem as mesmas potencialidades e tantas produções escondidas, guardadas, não financiadas e possam ter um espaço. Somos artistas, mas não somos vistos e nem remunerados. 

Precisamos seguir este caminho, ter continuidade e influenciar uma política menos racista, menos dolorosa e menos construída de cima para baixo.

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