Breve história do SUS, na narrativa de um mestre

Nelson Rodrigues dos Santos, que lança hoje nova obra sobre os rumos do SUS, fala sobre ele. Na primeira parte, as origens do sistema, entre a teoria do Estado de Bem-Estar Social e as lutas populares contra a ditadura pós-64

Foto: George Magaraia/Abrasco
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LANÇAMENTO
SUS e o Estado de Bem-Estar Social: Perspectivas Pós-Pandemia
De Nelson Rodrigues dos Santos
(compre aqui)
Sexta-feira, 17/3, a partir das 18:30
Local: Auditório FESPSP
Rua General Jardim, 522
Vila Buarque – São Paulo/SP

Chegou enfim o dia do lançamento do livro SUS e Estado De Bem-Estar Social, de Nelson Rodrigues dos Santos, um dos sanitaristas mais destacados tanto na construção quanto nas reflexões sobre o Sistema Único de Saúde. Ele acontece presencialmente em São Paulo, no auditório da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP), a partir das 18h30, e poderá ser acompanhado pela internet, no canal de Outras Palavras. No evento, “Nelsão” dialogará com outros grandes pensadores da Saúde Pública.

Para somar esforços na divulgação da obra, Outra Saúde preparou-se para uma entrevista com Nelson. Ele nos atendeu pelo telefone em uma tarde do final do ano passado. As perguntas tinham sido elaboradas, mas mal precisaram ser feitas. Com a agudeza e habilidade de quem pensa a saúde pública há décadas, Nelson nos presenteou com uma análise minuciosa do nascimento e vida do SUS.

O sanitarista dividiu seu exame em duas partes. A primeira, que você lê abaixo, diz respeito aos anos que antecederam a Constituição Federal de 1988 e como o SUS foi sendo gestado. Teve forte influência do pensamento sanitarista europeu do pós-guerra, mas também nítido tempero brasileiro. Os saberes dos sanitaristas e da luta pela saúde pública confluíram com uma grande mobilização popular pelo fim da ditadura e pela reconstrução da democracia. 

Culminaram em um sistema de dar inveja pelo que está no papel, mas que nunca chegou a ser concretizado plenamente. É aí que começa a segunda parte da fala de Nelson. Segundo ele, a partir do dia seguinte à promulgação do SUS, o governo federal já começou a sabotá-lo. Foram, segundo ele, ao menos cinco fortes investidas: o subfinanciamento, o desfinanciamento, a não realização de uma reforma administrativa para transformar a gestão do sistema, o contínuo incentivo ao setor da saúde de mercado e, a partir de 2017, a Emenda Constitucional 95 do “teto de gastos”. Essa parte da reflexão, publicaremos na semana que vem.

No debate de hoje, participarão também Ubiratan de Paula Santos, médico do InCor e professor da Faculdade de Medicina da USP; Adriano Massuda, médico sanitarista e professor da FGV-SP; Marília Louvison, médica sanitarista e professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP. Será uma grande noite, esperamos poder compartilhá-la com nossos leitores.

[Gabriela Leite]

Fique com a primeira parte da análise de Nelson Rodrigues dos Santos.

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Para começar a explicar como surgiu o SUS, é possível comparar os sistemas de saúde pública fortes que há no mundo com os fatos concretos do dia-a-dia e as forças políticas que atuam nas sociedades. Alguns sistemas, pela sua constituição, são iguaizinhos ao Sistema Único de Saúde (SUS). Suas bases surgiram sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial. Países como a Alemanha, a Inglaterra, a Suécia e a França têm, em sua Saúde, as mesmas diretrizes do nosso SUS. 

E o que faz com que eles deem mais certo lá do que aqui?

Para entender os motivos estruturais de por que a Saúde brasileira passa por tantas dificuldades, e para criar estratégias de superação, é preciso entender em que bases o SUS – e os outros sistemas semelhantes – foram criados. Nos países europeus, há quase um século, depois da Segunda Guerra, eles receberam o nome de sistemas universalistas

Esse é um jargão que ao longo das décadas foi se confirmando. Sob esse entendimento está o significado de que os cidadãos desses países, para efeitos do sistema de saúde, não tem diferença quanto a classe social; ao fato de estarem empregados ou desempregados; à cor da pele ou à religião. Quer dizer, está presente a ideia de que apesar de todas as diferenças que as sociedades vão estabelecendo entre as pessoas, o que está por trás delas é que são todas seres humanos. 

Está garantida a toda a população as ofertas de serviços, tanto dos preventivos, para promover a saúde e impedir a doença, quanto daqueles para diagnosticar e curar quem adoeceu. Aí entra uma série de providências de prevenção e cura, pois não há nenhum cidadão que tenha em algum momento a necessidade de só se prevenir ou só se curar. Todos temos alguma doença que já está estabelecida com sintomas, que está se estabelecendo ou que está fermentando, ainda sem sintomas mas a partir de processos. Para elas, existe o diagnóstico precoce, quer dizer, uma série de exames para detectar doenças no nascedouro, antes de nos prejudicar com os sintomas.

É aí que surge a segunda diretriz, da integralidade. Trata-se da simples admissão de que todo o ser humano precisa simultaneamente ser beneficiado com prevenção e cura. Não tem que entrar em um prédio para curar e em outro para prevenir – isso é um desperdício de recursos e oportunidades. 

Essas foram as diretrizes da universalidade e da integralidade. A terceira diretriz é a da equidade, ou igualdade. Quer dizer, as pessoas que têm mais necessidades precisam que haja disponíveis a elas mais serviços de saúde do que as que têm menos necessidades. Aí entra o chavão que utilizamos, que é “tratar desigualmente os desiguais”. De uma certa linha da desigualdade para baixo, a quem precisa de mais, oferecemos mais. Aqueles que estão acima, terão menos.

Essas diretrizes foram extremamente debatidas depois da Segunda Guerra Mundial. Isso porque a devastação causada pelas duas guerras do século XX na Europa foi arrasadora. Foi muito desmoralizante para o continente que tinha maior grau de desenvolvimento do mundo – conquistado através do colonialismo e acumulação de riquezas e conhecimento de outras regiões e culturas. Por isso, filósofos, lideranças políticas, pensadores de todas as correntes construíram um consenso: guerra interna, nunca mais. 

Os governos europeus, no pós-Segunda Guerra, deram prioridade ao desenvolvimento cultural e científico para a grande industrialização. Mas, pressionados pelas populações, resolveram recriar uma civilização europeia com a garantia de direitos básicos e políticas sociais. O Estado jogaria no capitalismo, na lógica do lucro, do enriquecimento, mas não deixaria sua população nas mãos do capital privado para obter esses direitos básicos. Aí nasce o Estado de Bem-Estar Social.

* * *

Nessa época, no Brasil, nem se sabia o que estava acontecendo na Europa em termos de políticas públicas. Mas, passadas algumas décadas, vem o golpe militar e a ditadura de 1964. Naquele período, que durou vinte anos, houve um grande estímulo ao crescimento econômico e industrial mas simultaneamente um processo de empobrecimento enorme da população. A intensidade foi tanta que, em pouco tempo, a população deixou de ser predominantemente rural e passou a viver nas cidades médias e grandes.

Essa também foi uma época de concentração extrema de renda, de pauperização em massa da população. O que gerou um trauma enorme para os brasileiros e fez crescer, a partir de 1981, 82, uma mobilização social de uma intensidade surpreendente. O movimento criou a ideia de Diretas, Já, que era uma expressão que estava nas mentes e nos corações de toda a população, independente do nível de instrução, se tinha estudo ou não, se trabalhava no comércio ou se era assalariado. Todos os segmentos da população se empolgaram com a bandeira das eleições diretas, porque já estavam sentindo na carne que, sem eleições, o sofrimento nunca iria acabar.

Aquele foi um chamamento muito espetacular. Cientistas sociais, cientistas políticos e historiadores sustentam que nos anos 1980, com a luta contra a ditadura, houve a maior mobilização democrática da história do Brasil. Não houve outra organização maior, nem no movimento dos abolicionistas no final do século XIX. 

Esse fenômeno brasileiro trouxe dentro de si o que já havia acontecido na Europa no final da Segunda Guerra: o grande debate sobre qual sociedade queremos. Estamos acabando com a ditadura, como vai ser a sociedade daqui em diante? Qual vai ser o Estado brasileiro? Uma nova sociedade com direitos humanos garantidos e um novo Estado democratizado passaram a ser as grandes bandeiras dessa mobilização. Aí florescem os direitos públicos da saúde, que vão para os debates da construção de uma nova Constituição e são aprovados. 

É importante essa comparação entre o que foram os efeitos da Segunda Guerra Mundial numa Europa arrasada e o final de nossa ditadura militar, com uma sociedade também destruída, guardadas as proporções. Mas, na Europa, por haver esse enorme poder e capacidade tecnológica, as mudanças foram muito mais estruturantes. O Estado de Bem-Estar Social por lá teve raízes muito mais sólidas através das décadas.

No caso do Brasil, nosso entusiasmo para sair da ditadura nos colocou com a sensação de que iríamos seguir o caminho europeu. Então aprovamos, no debate constitucional, os pilares de universalidade, integralidade e equidade. Há ainda outras diretrizes interessantes, comuns a esses sistemas públicos, como a regionalização dos serviços de saúde. Essa é uma jogada estratégica espetacular, porque a população mobilizada, que luta por seus direitos, tem um poder de força muito mais consistente dentro das regiões de saúde, com muito mais resultados. As diretrizes do SUS acontecem mais concretamente, entram em seu melhor estágio, nos países em que se dividem as regiões de saúde.

Em bases gerais, a Atenção Básica ou Atenção Primária à Saúde pode ser definida com dois dizeres da sabedoria popular: “mais vale prevenir do que remediar” e “mais vale tratar a doença no começo que no final”. É papel do Estado ter competência de planejamento e gestão de serviços para fazer a associação da prevenção com a cura. Quando isso acontece em bons termos, dá-se algo quase inacreditável: de 80% a 90% dos problemas de saúde de toda a população são resolvidos. 

Esse foi um debate muito rico no Brasil dos anos 1980, que foi incorporado pelo SUS e pegou muito fácil entre a população, porque experiências nesse sentido já estavam sendo postas em prática antes. Quando aconteceu o fenômeno da pauperização, da urbanização, houve uma tensão social enorme nas periferias, não só pela falta de saúde como de transporte público, emprego, educação. Então os prefeitos receberam uma bomba na mão, no final dos anos 1970, e tiveram de dar conta disso.

Nessa época, era uma outra realidade, porque as prefeituras não tinham responsabilidade pela saúde dos cidadãos. Elas precisavam manter prontos-socorros municipais com médicos plantonistas – não tinham nem orçamento nem profissionais para ir além disso. Mas, com o caos social, essas prefeituras tiveram de ir criando os primeiros atendimentos simples de atenção básica nas periferias. 

Sem nenhum assessoramento, os prefeitos chamavam alguns profissionais de saúde, aposentados ou que não estavam atuando na área, médicos, enfermeiros, dentistas, e punham para trabalhar nas periferias dentro de uma kombi qualquer. A cada dia da semana, essa kombi ia a um bairro. A população fazia fila para ser atendida. Era um atendimento de bom senso, para o que desse e viesse, e já era melhor que nada.

Mas rapidamente essas experiências foram sendo enriquecidas pelos jovens sanitaristas, que já tinham informação do que era a Atenção Primária na Europa. Eu, naquela época, era um desses jovens. Trabalhei em Londrina (PR) e depois em Campinas (SP). Aí foi açúcar no mel. Quando esses sanitaristas começaram, no final dos anos 1970, a dar apoio para as prefeituras, começaram a ser construídos os postinhos. Geralmente se alugava uma casinha no bairro, por um preço bem baixinho, e os atendimentos aconteciam três vezes por semana. A prefeitura começou a dar treinamento para os profissionais de saúde, começou a contratar auxiliares do próprio bairro, e o trabalho se dava de forma permanente.

Isso foi uma bola de neve, porque a própria população percebeu o benefício que passaria a ter, e começou a fazer pressão em cima dos prefeitos. A cada eleição, prefeitos e vereadores que prometessem ampliar esse projeto eram os mais bem votados e eleitos. A Atenção Primária nasceu assim no Brasil, muito antes da criação do SUS. No final da década de 1970 e começo dos 80, as cidades médias do Brasil já estavam assessoradas por sanitaristas praticando a universalidade, a equidade e a integralidade a nível municipal.

Estou tentando mostrar como o SUS nasceu antes da Constituição de 1988. Quando se deu aquela explosão democrática da sociedade, para pôr fim na ditadura, a elucubração, a formulação, os estudos de planejamento e de gestão pública para um novo sistema de saúde já tinham essa base. Não precisamos imitar os sistemas europeus, as prefeituras municipais já estavam dando aula disso.

Nos anos 1980, cada estado já tinha o seu Cosem, o Conselho de Secretários Municipais de Saúde. Esses secretários se organizavam para trocar experiências e fortalecer os sistemas municipais. Esse foi um elemento histórico do surgimento do SUS, bem como a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Ela foi muito frutífera, porque não se tratava apenas de debater teoria: os secretários municipais deram testemunho de que tudo aquilo que estava sendo discutido já estava começando a ser posto em prática. 

Naquela época, tinha-se como modelo o National Health Service (NHS) inglês e o sistema italiano. Também nos anos 1980 a Itália estava fazendo sua própria Reforma Sanitária, então foram convidados líderes italianos para debater e ajudar na construção do SUS brasileiro. Foi assim que o SUS surgiu e foi sendo concretizado.

* * *

O que foi aprovado no papel, em nossa Constituição, era equiparável aos melhores e maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Isso foi uma coisa muito positiva, os membros da Constituinte mostraram que tinham grande confiança naquilo que estava sendo feito e debatido entre os sanitaristas. 

Até chegar a Constituição de 1988, o sistema de saúde brasileiro cobria apenas cerca de 50% da população. Não só o público, também o privado. Então metade da população estava ao deus dará, a mortalidade, o sofrimento e a taxa de doenças era altíssima. O que gerou um fenômeno social e político muito importante. Porque, nos debates contra a ditadura, a expressão “inclusão social” passou a ser muito assumida pela população. Não era uma bandeira apenas dos politizados e desenvolvimentistas, foi uma chama que incendiou o país. A metade que estava excluída foi para cima dos postos de saúde, hospitais e prontos-socorros com a sensação de que eles pertenciam a ela. 

Essa sensação de inclusão social vem até hoje, apesar de todas as dificuldades do SUS. E é um dos maiores motivos da sua sobrevivência. Quando um simples postinho de saúde, um pronto-socorro ou um ambulatório maior reprime a demanda, a população se revolta, vai questionar o vereador, faz uma manifestação na frente da unidade de saúde. Há mobilização, a população não aceita passivamente não ser atendida. 

A noção dos direitos de cidadania, para a saúde pelo menos, é uma noção que foi assumida e que não havia antes do SUS. Reinava um conformismo com o fato de metade da população estar abandonada. Hoje ela não se sente mais assim, e vai à luta.

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