O novo Mais Médicos e as tensões políticas no ar

Lula e os ministros Nísia Trindade e Camilo Santana fizeram discursos fortes em evento de lançamento do programa. Reestruturado, oferecerá mais vagas e terá papel importante na formação médica. Presidente ressalta: “Saúde não é gasto”

Lançamento do Mais Médicos, em 20/3/2022. Foto: Ricardo Stuckert/PR
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Com pompa e circunstância, o governo federal anunciou ontem, 20/3, o retorno do Mais Médicos. O time escalado para o evento, a começar pelo próprio presidente Lula, não deixa dúvidas da importância concedida ao programa. Estiveram presentes os ministros da Saúde e Educação – Nísia Trindade Lima e Camilo Santana –, e os presidentes de Conselho Nacional da Saúde, Conselho Nacional das Secretarias de Saúde, Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde e Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).

A nova versão do Mais Médicos vem ampliada em relação à anterior, cuja importância histórica na promoção da Atenção Primária em Saúde (APS) ficou relegada ao segundo plano em razão das gritarias de uma extrema-direita que chegaria ao poder e faria da saúde terra arrasada. A grande cartada do novo programa é a quantidade de médicos a ser contratada e os incentivos, maiores do que sua versão predecessora.

“O Mais Médicos voltou para responder ao desafio de garantir a presença de médicos aos brasileiros dos municípios distantes dos grandes centros e das periferias”, discursou Nísia Trindade. “Voltou como parte fundamental do fortalecimento da Atenção Primária em Saúde. Ele foi criado para enfrentar a falta de médicos nas Equipes de Saúde da Família (ESF) e agora traz mudanças na sua formação, amplia vagas na graduação de medicina no interior e garante vagas de residência para os egressos dos cursos médicos. Temos evidências consolidadas de que o programa conseguiu prover profissionais nas áreas mais vulneráveis, ampliou acesso à saúde da família, diminuiu internações hospitalares e mortalidade infantil.”

No evento, Lula assinou a portaria interministerial que oficializa o retorno do programa. Nesta semana, garantiu Nísia, já será publicado o edital que oferece as primeiras 5 mil vagas. A seguir, em nova fase em parceria com os municípios, que poderão apresentar mais detalhadamente suas necessidades, serão abertas mais 10 mil vagas.

“Faz parte de uma ampliação da formação de especialistas, faz parte de um conjunto de ações de promover residências em saúde. Temos propostas em formulação para jovens especialistas, que incluem iniciativas de formação de multiprofissionais para o cuidado integral em saúde”, completou Nísia.

ENTENDA OS INCENTIVOS PARA OS PROFISSIONAIS DO MAIS MÉDICOS

O QUE ÉCOMO ERACOMO FICA
Licença-maternidadeDeixa de receber a bolsa durante o período de licença, passando a receber auxílio do INSSReceberá a bolsa para completar o valor do auxílio do INSS durante o período de até seis meses
Licença-paternidadeSem previsão de afastamento durante esse períodoReceberá a bolsa durante o período de até vinte dias
Incentivo de fixação (ao permanecer pelo menos 36 meses)Não haviaPoderá receber adicional de 10% a 20% da soma total das bolsas de todo o período que esteve no programa, a  depender da vulnerabilidade do município
Receberá o incentivo completo ao final de 48 meses ou poderá antecipar 30% desse valor ao final de 36 meses
Incentivo de fixação para médico do FIES
(ao permanecer pelo menos 12 meses)
Não haviaPoderá receber adicional de 40% a 80% da soma total das bolsas de todo o período que esteve no programa, a  depender da vulnerabilidade do município
Será pago em quatro parcelas: 10% por ano durante os três primeiros anos, e os 70% restantes ao completar 48 meses
Incentivo para o médico do FIES residente de Medicina de Família e ComunidadeNão haviaSerão ofertadas vagas para os médicos-residentes de Medicina de Família e Comunidade que foram beneficiados pelo FIES, auxiliando no pagamento total do valor da dívida
Tempo de Participação no ProgramaCiclo de três anos, prorrogável por igual períodoCiclo de quatro anos, prorrogável por igual período
Oferta EducacionalEspecializaçãoEspecialização, Mestrado ou Aperfeiçoamento
Pontuação adicional de 10% na seleção de programas de residênciaNão háSerá concedida para os médicos que concluírem a Residência de Medicina de Família e Comunidade

Isso significa que o ministério da Saúde absorveu a demanda de organizações médicas como a SBMFC, como explicou ao Outra Saúde sua presidente, Zeliete Zambon, que apontou caminhos para o país diminuir seu déficit de médicos de família, fundamentais para o funcionamento da APS. Como se pode ver na tabela acima, os contratos serão de quatro anos e ao final do período o profissional poderá obter o título de especialista na área. Isso porque a obtenção de um título de especialista demanda dois anos de residência ou quatro anos de atuação direta. Na versão anterior do Mais Médicos, os contratos eram de três anos e a necessidade de se prosseguir na formação profissional incentivou uma grande rotatividade nos postos de trabalho.

“Queremos melhorar a fixação de médicos brasileiros no serviço”, continuou Nísia. “Os participantes relatam três grandes motivos a atrapalhar sua continuidade no programa: busca por melhor formação, demandas familiares e oportunidades profissionais. Por isso precisamos focar nisso e vamos oferecer prova de título para quem permanecer 4 anos em áreas vulneráveis. Mais de 40 universidades públicas participarão deste processo”, explicou a ministra, que aproveitou para anunciar 963 bolsas de residência médica e 837 de residência multiprofissional – isto é, focada em conhecimentos ampliados de medicina e sua relação com o território e as condições reais dos pacientes.

“Destaco a Universidade Aberta do SUS (criada em 2010 como ferramenta de suporte e aprimoramento técnico), que também será fortalecida. Novos especialistas serão formados e daremos oportunidades de novas especializações em saúde primária, a exemplo de ginecologia e obstetrícia. Vamos retomar a saúde bucal. Há outras demandas, que mal puderam se expressar nos últimos anos, devido ao fechamento do diálogo”, acrescentou Nísia.

Como dito por ambos, brasileiros serão prioridades, mas não se fará cerimônia em absorver mão de obra estrangeira caso as vagas tardem a ser preenchidas. Lula inclusive fez referências ao modo desrespeitoso como a direita e a classe médica bolsonarizada se referiam aos médicos cubanos, muitos dos quais ainda residentes no Brasil. “Não me importa a nacionalidade dos médicos, me importa a nacionalidade dos pacientes”, resumiu.

Lotado, o auditório do Palácio do Planalto, tomado por ministros e secretários da equipe de governo, aplaudia efusivamente. Não era um evento burocrático qualquer. O ambiente transpirava uma excitação que parecia reveladora da consciência de que o Mais Médicos, para além de embates delirantes feitos por quem “nem sabia o que era o SUS”, é peça chave na política pública de um país estilhaçado.

“Nós somos especialistas em pessoas, conhecemos onde moram, como vivem, o que influencia seu dia a dia, quais violências as submetem”, disse Zeliete Zambon, em alusão aos médicos de família e trabalhadores da atenção primária. Ela ainda usou sua própria história para ilustrar a importância da relação concreta entre médico e paciente. “É a história de uma mãe cuja filha tinha infecções repetidas no ouvido e garganta. Ela, que morava a 4 horas de ônibus da capital do Espírito Santo, pegou o ônibus de madrugada e foi até um centro de especialidades focais. Lá, chegaram à conclusão de que a criança precisava de uma miomectomia, a cirurgia de retirada das amígdalas. Ela faz a cirurgia, tem uma parada cardiorrespiratória, é ressuscitada e devolvida à mãe porque não havia um leito de internação. Essa é a minha história, eu sobrevivi”, relata ela.

“Mas qual o aprendizado?”, indaga. “Se eu tivesse um médico de família que soubesse que todos os dias a charrete entregava leite na porta da minha casa, eu era intolerante à lactose e por isso tinha refluxo gastroesofágico, que me fazia ter otite e amigdalite, aquela cirurgia não teria sido feita. É isso que a Atenção Primária faz. Ela está onde o povo está. É disso que falamos com o programa Mais Médicos”.

Mais uma vez, Lula mira ultraliberalismo

Se Nísia Trindade fez o discurso mais longo do evento, e também mais explicativo sobre os termos do programa, coube a Lula o discurso político estratégico. De acordo com a tônica das últimas semanas, usou o Mais Médicos como trunfo para defesa do Estado como indutor de desenvolvimento e políticas de bem estar. Por tabela, atacou os dogmas liberais e financistas que se contrapõem a qualquer agenda social.

“Saúde não pode ser refém de teto de gastos, taxas de juros ou políticas fiscais que não levam em conta o elemento humano. Educação e saúde não são gastos. Cuidar das pessoas e salvar vidas não é gasto. Mas toda hora que falamos de gasto social aparece alguém da área econômica. Custou quanto deixar de fazer as coisas na hora certa, não dar saúde antes, não alfabetizar o povo na década de 1950, não ter feito a reforma agrária, não ter acabado com o racismo, não termos tratado as mulheres como merecem?”, questionou.

O presidente prosseguiu: “Mas mexer nisso é visto como gasto por alguns. Os cursos de economia precisam mudar sua noção do que é custo e investimento. Não tem nada mais precioso do que educar uma nação e fazê-la deixar de discriminar alguém por cor de pele”.

Não é ponto sem nó. Num contexto onde parte da própria esquerda parece rendida às teses neoliberais e mesmo no governo aparecem discursos conflitantes sobre a orientação econômica, Lula tenta firmar um rumo. E não perde a chance de tornar isso o mais público possível.

“Quanto custariam os subsídios aos mais pobres se não tivesse havido Minha Casa Minha Vida? O Estado aceita conviver com R$ 5,7 trilhões de dívida pública. Por que não pode conviver com mais dívida para melhorar o padrão médio de vida das pessoas?”, cutucou.

Com um olho no peixe e outro no gato, não deixou de fazer referências ao governo anterior. “Como escreveu Guimarães Rosa: ‘qualquer amor já é um pouquinho de saúde. Um descanso na loucura. E todos queremos um pouco de amor e, portanto, um pouco de saúde, porque isso significa um descanso na loucura’. E o oposto é verdadeiro. Todo o ódio a populações negras, indígenas, mulheres, são doenças. Fome, ódio, desigualdade, preconceito, exclusão, são doenças que há muito deveriam ter sido erradicadas”, discorreu.

Atento ao plano macroeconômico, deu um recado às classes médias, isto é, àqueles que dificilmente terão contato com os serviços em saúde a serem garantidos pelo Mais Médicos. “As classes médias têm sofrido muito. Temos de investir muito para gerar empregos, e para ter crédito e desenvolvimento teremos de usar os bancos públicos para financiar o desenvolvimento. Se o investimento é privado ou público é outra coisa, mas precisa de investimento. E se o setor privado não tem dinheiro, o setor público tem de entrar”.

Para terminar, um tapa com luva pelica no governo cujo programa substituto ao Mais Médicos não é mais que nota de rodapé. “Não temos feito outra coisa senão recuperar aquilo que tinha sido feito de bom e foi destruído. Mas em vez de só falar mal de quem fez isso, precisamos preparar o país para o próximo período. Quando completarmos 100 dias de governo teremos colocado na prateleira todas as políticas públicas bem sucedidas que criamos”. No que convergiu Nísia: “destaco que as pessoas que recebem Bolsa Família é que sofrem mais com a carência de médicos. O Mais Médicos está de volta porque a sociedade precisa e as áreas mais vulneráveis precisam. E porque com este programa fortaleceremos o SUS”.

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