CPI da Covid e o prevaricador da República

Investigado pela Polícia Federal por corrupção, presidente prefere alienar-se da crise: opta por vociferar contra voto eletrônico, espalhar fake news e pedir orações. Mais: Norte global se revacina enquanto Sul amarga o apartheid vacinal

Imagem: Ueslei Marcelino/Reuters
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AINDA NO AR

A Polícia Federal abriu inquérito para investigar se Jair Bolsonaro cometeu crime de prevaricação por supostamente não ter comunicado aos órgãos de investigação indícios de corrupção no Ministério da Saúde durante as negociações para a compra da vacina Covaxin. 

O inquérito veio a público ontem, mas foi instaurado no começo de julho, depois que a Procuradoria-Geral da República perdeu a queda de braço com a ministra Rosa Weber. Para quem não lembra, a PGR pediu para adiar a investigação: queria empurrá-la para depois do fim da CPI, que deve ser prorrogada até outubro.

A prevaricação acontece quando funcionários públicos atuam de forma a atender interesses particulares. No Código Penal, são considerados funcionários públicos “quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerça cargo, emprego ou função pública”. É o caso da Presidência da República.

Após a notícia do inquérito se espalhar, o presidente lançou mão da tática da confusão e mentiu ao afirmar que o crime de prevaricação não se aplica a ele. “O que eu entendo é que a prevaricação se aplica a servidor público, não se aplicaria a mim”.

Bolsonaro reafirmou ainda que, após receber a denúncia dos irmãos Miranda, teria avisado o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Segundo o presidente, o general da ativa teria dito que não tinha nada de errado.

Em entrevista ao Roda Viva ontem, o deputado Luis Miranda (DEM-DF) afirmou que após a reunião com o presidente no Palácio da Alvorada, encontrou-se Pazuello na ponte aérea entre São Paulo e Brasília. “O Pazuello não toca no assunto – eu que toco no assunto com ele. (…) Ele inclusive desabafa: ‘meu amigo, inclusive eu já tô saindo, já tentei de tudo para resolver este problema e não consigo‘”. 

E não foi desta vez que o Brasil ficou sabendo se há mesmo gravação da conversa com Bolsonaro. Questionado diversas vezes, o deputado continuou deixando no ar. “Eu jamais gravaria um presidente da República, mas eu não estava sozinho na sala – e nem todo mundo que estava na sala confia no presidente“, disse, dando a entender que seu irmão, Luis Ricardo Miranda, teria gravado.

Na sexta-feira, o consultor técnico do Ministério da Saúde William Amorim Santana confirmou parte da denúncia dos irmãos Miranda à CPI. Foi ele quem recebeu a 1ª fatura (conhecida como invoice) da Precisa Medicamentos com erros muito suspeitos. Willian é subordinado de Luis Ricardo na divisão de importação da pasta. 

Segundo o Datafolha, 70% dos brasileiros acreditam que há corrupção no governo Bolsonaro.

APOSTANDO NA CONFUSÃO (SEMPRE)

A essa altura já sabemos que na cartilha de Jair Bolsonaro há dias de ataques e há dias de recuos. Depois de afirmar que houve fraude nas eleições presidenciais de 2014 – e que “a fraude está no TSE [Tribunal Superior Eleitoral]”, o presidente disse que está “perfeitamente alinhado” com o Poder Judiciário. 

A declaração aconteceu na saída de uma reunião de conciliação organizada pelo presidente STF, Luiz Fux, por conta da crise gerada por Bolsonaro. “Convidei o presidente da República para uma conversa, diante dos últimos acontecimentos, onde nós debatemos o quão importante para a democracia brasileira é o respeito às instituições e os limites impostos pela Constituição Federal”, disse Fux à imprensa. 

Um novo encontro no estilo ‘as instituições estão funcionando’ foi anunciado, desta vez também com a presença dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

Bolsonaro concedeu uma estranha coletiva de imprensa depois da reunião com Fux. De manhã, em meio à repercussão dos números do Datafolha sobre a percepção de corrupção no seu governo, ele disse que não é “Jairzinho paz e amor”. Horas depois, declarou ser o “Jairzinho paz e amor”

Mas a conciliação não atingiu o conteúdo: ele voltou a espalhar boatos de que as eleições são fraudadas: “Devemos mostrar para o mundo que o Brasil é país sério, tem eleições limpas, auditáveis. Acertado por minoria de técnicos, isso não é eleição. Aí vamos bater na tecla da contagem dos votos”.

Outra tecla batidíssima por Bolsonaro neste momento de crise é a religiosa. Ele usou uma parábola na conversa com Fux, segundo o ministro, depois disse aos jornalistas que seu indicado à vaga do STF, André Mendonça, recebeu dele o pedido de começar sessões da mais alta Corte do país com orações. Questionado se estava arrependido por ter chamado o ministro Luis Roberto Barroso de “imbecil”, Bolsonaro recorreu novamente aos preceitos religiosos e propôs que fosse rezada a oração “Pai Nosso” durante a coletiva de imprensa

MICHELLE NO CIRCUITO?

E o escândalo das vacinas superfaturadas agora arranha a primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Ontem, a Veja divulgou mensagens capturadas do celular do cabo Luiz Paulo Dominguetti. Numa conversa registrada em 3 de março, Dominguetti fala com Rafael Alves, representante da Davati Medical Supply, identificado como “Rafael Compra Deskartpak”. Ele comenta os avanços do reverendo Amilton Gomes para se aproximar dos Bolsonaro.

“Michele (sic) está no circuito agora. Junto ao reverendo. Misericórdia”, escreve. Rafael se mostra incrédulo diante do nome da primeira-dama. “Quem é? Michele Bolsonaro?” E Dominguetti retorna: “Esposa sim”. O interlocutor orienta o PM a ligar para Cristiano Carvalho, CEO da Davati no Brasil, que pilotava a operação. “O reverendo chegou na Presidência da República”, diz Dominguetti, em um áudio: “Roberto Dias é segundo plano”.

Michele é o terceiro membro do clã citado nos escândalos de compra de vacinas. Além do próprio presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) já apareceu na história por ter arrumado para o dono de outra empresa, a Precisa, uma reunião com o presidente do BNDES em outubro de 2020. 

O presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), descartou a convocação da primeira-dama. “Não, não vamos convocar. Tem muita gente que tira proveito para mostrar intimidade com poder”, disse ao Estadão. “Até porque, se não, a gente entra no joguinho do Bolsonaro (do tipo) ‘Estão mexendo com minha família, minha esposa é uma santa’. A gente se antecipa logo para não misturar as coisas e ser diferente dele”.

Mas, de qualquer forma, a CPI terá, em breve, chance de passar as mensagens a limpo com o próprio reverendo. Ou não: Amilton Gomes de Paula apresentou um atestado médico para tentar adiar o seu depoimento à comissão, agendado para amanhã. A solicitação está sendo analisada por uma junta médica do Senado.

RELEMBRAR É VIVER

Um documento enviado à CPI pelo Ministério da Economia confirma que o secretário de Política Econômica, Adolfo Sachsida, saiu anunciando o fim da pandemia no ano passado sem sequer consultar o Ministério da Saúde. O pedido, feito pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), foi motivado por uma declaração de Sachsida em 17 de novembro, quando ele afirmou que o Brasil caminhava para a “imunidade de rebanho” e era “baixíssima a probabilidade de segunda onda”. 

De acordo com o documento, “não houve qualquer comunicação e/ou troca de documentos do Ministério da Saúde” com a sua secretaria. “Eu estou assustado [com a resposta]”, disse Randolfe à Folha

Quem nos assina há mais tempo já viu muitas outras declarações de Sachsida nesse sentido. Aqui vai um pequeno cardápio de news anteriores: 

Em maio de 2020, ele afirmou que o auxílio emergencial não seria pago por mais de três meses. Em junho daquele ano, afirmou a “investidores” que no mês seguinte seria “fundamental retornarmos a um ajuste estrutural” da economia. Em novembro, foi a vez da declaração que colocou a pulga atrás da orelha do senador. Em dezembro, Sachsida defendeu que a população voltasse às ruas de modo que a circulação ficasse no mesmo patamar de fevereiro, mês do Carnaval. 

Na mesma ocasião em dezembro, Paulo Guedes disse que só seria convencido de que existe segunda onda caso o número de mortes batesse a marca das mil por dia. Aí, sim, concordaria em defender a prorrogação do auxílio – que ficou criminosamente suspenso por três meses: janeiro, fevereiro e março, quando o coronavírus grassava.

Há um mês, o Ministério da Economia confirmou à CPI, por meio de ofício, que não destinou recursos específicos para a pandemia no Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) de 2021 porque “não se vislumbrou a continuidade bem como o recrudescimento” da crise sanitária. 

A SEMANA

A CPI ouve hoje Emanuela Medrades, diretora técnica da Precisa Medicamentos. O nome dela aparece em vários momentos nas trocas de e-mails entre a empresa e o Ministério da Saúde. E, ontem, a Polícia Federal tomou seu depoimento na condição de investigada. Ela tinha direito a ficar calada, mas respondeu as perguntas. Na CPI, ela conseguiu autorização de Luiz Fux para deixar de falar sobre fatos que a incriminem, mas terá que responder a outras perguntas. Os sigilos telefônico e telemático (mensagens) dela já foram quebrados pela CPI.

O coronel da reserva Marcelo Blanco, que deve ser ouvido na quinta-feira, também pediu autorização do Supremo Tribunal Federal para ficar em silêncio em seu depoimento à CPI.

Enquanto isso, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), acionou o Supremo para tentar garantir que seu depoimento à comissão ocorra ainda nesta semana, antes de um eventual recesso parlamentar. O deputado alega que seu nome foi citado 96 vezes durante outras oitivas e voltou a reclamar de um suposto abuso de poder dos membros do colegiado.

AINDA FORA DA REALIDADE

“Alguns países e regiões estão realmente solicitando milhões de doses de reforço, antes que outros países tenham o suficiente para vacinar seus profissionais de saúde e os mais vulneráveis. Eu pergunto: quem colocaria os bombeiros na linha de frente [de um incêndio] sem proteção? Quem são os mais vulneráveis ​​às chamas desta pandemia? Os profissionais de saúde da linha de frente, os idosos e os vulneráveis. Estamos fazendo escolhas conscientes agora mesmo para não proteger os mais necessitados; nossos próprios bombeiros”. Essas palavras vieram ontem do diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, que tenta mais uma vez chamar à razão os países mais privilegiados na distribuição de vacinas. “Chega de falar em vacinar países de baixa renda apenas em 2023, 2024”, completou ele.

Não é a primeira vez que o diretor usa essa imagem de um incêndio para se referir à pandemia: o raciocínio é que, quando se apaga o fogo de forma localizada, as chamas em outro lugar podem logo voltar a crescer e se alastrar. Mas a metáfora não parece estar surtindo o efeito desejado. O Health Policy Watch nota que Tailândia, Emirados Árabes Unidos e Bahrein já estão administrando reforços para pessoas que tomaram as vacinas de Oxford/AstraZeneca ou de farmacêuticas chinesas. O Reino Unido (que usou basicamente Pfizer e AstraZeneca), se prepara para oferecer, já em setembro, reforços a 30 milhões de pessoas consideradas de maior risco, como todos os idosos maiores de 70 anos. Ontem, Israel começou a aplicar uma dose extra em adultos imunocomprometidos. 

Os Estados Unidos ainda não tomaram nenhuma decisão nesse sentido, apesar de uma perceptível (e crescente) pressão por parte da Pfizer. Ontem, representantes da empresa se reuniram com cientistas e reguladores do país para tratar de uma autorização, mas nada está feito. Até agora, a Pfizer não ofereceu dados concretos indicando a necessidade da medida, e é isso que os técnicos do governo americano estão esperando. Uma das preocupações é que acatar a necessidade de uma terceira dose leve pessoas já hesitantes a desconfiar ainda mais da eficácia das vacinas.

Tedros Ghegreyesus fez um apelo bem específico a duas empresas: “Em vez de Moderna e Pfizer priorizarem o fornecimento de reforços para países cujas populações têm cobertura relativamente alta, precisamos que eles façam tudo para canalizar o fornecimento para Covax, para a Equipe de Tarefa de Aquisição de Vacinas da África e para países de baixa e média baixa renda. Dezenas de milhões de doações de doses de vacinas estão começando a chegar, mas precisamos de mais e mais rápido. Precisamos de uma construção total e acelerada de novos centros de fabricação de vacinas. Para que isso aconteça mais rápido, as empresas farmacêuticas devem compartilhar suas licenças, know how e tecnologia“, frisou.

Não custa desenhar o interesse das farmacêuticas na revacinação é muito grande, como faz a reportagem do STAT: “Os três grandes fabricantes americanos de vacinas covid-19 – Pfizer, Moderna e Johnson & Johnson – já ganharam dezenas de bilhões de dólares durante a pandemia, e a contínua demanda global por doses sugere que eles receberão outros bilhões. Mas a lucratividade sustentada dessas vacinas depende de nações ricas decidirem que precisam comprar a terceira, quarta e enésima dose para manter a imunidade entre suas populações. A Pfizer está liderando o processo de solicitação de autorização de uma terceira dose, mas a J&J e a Moderna, que também está desenvolvendo um reforço específico para uma variante, devem seguir o exemplo”.

A discussão também é importante para as fabricantes das vacinas de segunda geração: “A Novavax, cuja vacina ainda não obteve autorização de emergência, conta com um mercado de vacinas de reforço para rentabilizar o investimento. A Sanofi, cuja vacina parceira da GlaxoSmithKline sofreu um atraso no ano passado, está em uma posição semelhante. O analista do SVB Leerink Geoffrey Porges espera que a Pfizer e a Moderna dominem o mercado dos EUA para vacinas contra a covid-19 até 2023. Mas se os reforços se tornarem uma necessidade, como Porges presume que acontecerá, o mercado se tornará mais fragmentado, com espaço para uma multidão de concorrentes para construir negócios sustentáveis”.

REAÇÃO RARA

A FDA (equivalente à Anvisa nos EUA) emitiu ontem um alerta sobre uma possível, mas ainda não confirmada, ligação entre a vacina da Janssen e uma reação neurológica rara. O aviso cita relatos da síndrome de Guillain-Barré, uma forma de paralisia que geralmente é reversível.

Há dados de que outras vacinas aumentam o risco para essa síndrome, embora não se saiba o porquê.  Em relação à Janssen, o número de casos foi muito pequeno (100 casos e uma morte em quase 13 milhões de vacinados), e a síndrome também tem sido relatada em pacientes com covid-19, como lembra o New York Times. Ainda não há evidências suficientes para concluir que a vacina causou o problema, que vai seguir sendo monitorado.

Como tem acontecido até aqui, os benefícios da vacina seguem superando os possíveis riscos. Mas é sempre bom saber identificar qualquer problema rapidamente e procurar atendimento, se for o caso. Segundo o FDA, é importante ficar atento aos seguintes sintomas, até 42 dias após a vacinação: fraqueza; formigamento nos braços e pernas; visão dupla; e dificuldade para andar, falar, mastigar, engolir ou controlar a bexiga/intestinos.

LIMITES NECESSÁRIOS

Há quase três anos, o nascimento de bebês editados geneticamente chocou o mundo e levou a OMS a convocar um comitê consultivo para examinar as questões científicas, éticas, sociais e jurídicas em torno da questão. Ontem, o grupo publicou suas aguardadas recomendações.

Para quem não lembra, o caso dos bebês em 2018 foi muito complicado por vários motivos. O experimento do cientista He Jiankui não teve consentimento esclarecido dos participantes, por exemplo. E foi editado o DNA de embriões humanos, de modo que todas as mudanças – úteis ou maléficas – poderiam estar presentes não apenas nesses bebês, mas também em seus descendentes. Jiankui foi condenado a três anos de prisão em 2019.

O comitê pede que a OMS mantenha a suspensão de qualquer experimento que leve ao nascimento de mais seres humanos com edição genética, como o que foi conduzido por Jiankui. Mas, para outros tipos de pesquisa, tenta fornecer parâmetros para tornar o uso das ferramentas benéfico para o público em geral. A edição do genoma humano já demonstrou várias potencialidades, como na prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças genéticas e no desenvolvimento de vacinas.

São dois relatórios, e o primeiro trata de governança. Em vez de trazer uma receita pronta, ele descreve ferramentas que podem ser usadas em diferentes situações. O texto divide a edição genética em cinco áreas (fazer alterações nas células adultas depois que alguém nasce; fazer alterações nas células adultas no útero; fazer alterações em óvulos, espermatozoides e embriões; alterar como o DNA é expresso; e fazer mudanças não para tratar doenças, mas para melhorar o lote genético de uma pessoa). Para cada uma delas, delineia cenários hipotéticos e questiona como os mecanismos de supervisão potenciais poderiam funcionar. A abordagem foi elogiada por especialistas ouvidos pelo STAT.

Já o segundo traz recomendações mais específicas e exorta a OMS a assumir liderança, emitindo declarações claras sobre os usos éticos e aceitáveis de cada tecnologia. Entre outros pontos, o documento pede que a entidade realize reuniões para explorar o uso de pools de patentes e estabeleça  um sistema de denúncia para pesquisadores relatarem estudos de edição genética inseguros ou antiéticos. O comitê também aconselhou a melhoria e a expansão de um registro internacional, lançado em 2019 para rastrear e monitorar esse tipo de ensaio.

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