Batalha do rol taxativo expõe limites da saúde-mercadoria
Senado contraria STJ e permite a médicos e pacientes buscar novas terapias. Nova lei também preserva o SUS e obriga planos de saúde a cumprir o que prometem. O que fará Bolsonaro?
Publicado 02/09/2022 às 13:50 - Atualizado 15/09/2022 às 11:20
O Senado aprovou o PL 2.033/2022 que revoga o rol taxativo da Agência Nacional de Saúde (ANS) e obriga os planos privados a oferecerem tratamentos para além da lista da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), em 29/8. Abre-se a possibilidade de uma virada política relevante, uma vez que em 3 de março o presidente Bolsonaro, a gosto das grandes empresas de serviços de saúde, sancionara o PL 14.307/22, que oficializava o rol taxativo.
Sob a premissa de que “rol taxativo mata”, ativistas pelo direito à Saúde comemoraram. “É uma vitória coletiva. A luta das mães (sim, em sua maioria foram mães!) venceu o lobby”, disse Andrea Werner, que luta pelos direitos das pessoas com autismo e um dos rostos mais conhecidos nesta batalha.
O PL, que agora precisa da sanção presidencial, também reverte decisão de junho do STJ em favor do rol. Vista como uma tragédia pelos especialistas do setor, ela limita o acesso de pacientes a tratamentos alternativos e, supostamente, sem eficácia científica comprovada. Isso dificultaria a provisão de tratamentos de transtornos que ainda não foram plenamente confirmados pela ciência. Afetaria até a autonomia médica em buscar terapias não convencionais, mas que podem ser o fio de esperança de um paciente. Em particular, prejudicaria o acesso a tratamentos de diversas formas de autismo, pois nem sempre há padrões plenamente afirmados na medicina para essa condição.
“A necessidade de prévia manifestação da ANS pode restringir consideravelmente o conjunto de terapias que possuem evidências científicas, uma vez que a agência ainda não tem estrutura para acompanhar adequadamente o desenvolvimento das tecnologias em saúde. É impossível haver pronunciamento da ANS sobre todas as terapias cuja eficácia é atestada pela literatura das ciências da saúde”, explica a justificativa do projeto de lei.
Até o senador Romário, relator do PL e membro da base de apoio do governo Bolsonaro, foi incisivo ao comemorar a aprovação. “Hoje é um dia inesquecível, em que a sociedade brasileira se mobiliza e vence o lobby poderoso dos planos de saúde. O rol taxativo que mata. Matamos o rol taxativo”, disse ele.
Curiosamente, as empresas da chamada saúde suplementar alegam que a aprovação do PL criará incerteza jurídica. Mas os conflitos jurídicos entre prestadores de serviços de saúde e clientes já são praxe. “Todo sistema de saúde, por definição, é um espaço de conflito. Existe uma tensão entre interesses particulares. A oferta necessariamente tem limites, inclusive relacionados com a capacidade econômica do país e da população. Justamente porque existe essa tensão, é preciso que os limites sejam dados e colocados para todos”, definiu o sanitarista José Sestelo, nesta entrevista, quando ainda prevalecia decisão do STJ favorável aos planos privados.
De toda forma, há sinais de que a decisão é favorável ao SUS, já cercado de enormes desafios. Centenas de milhares de procedimentos médicos adiados durante a pandemia voltarão a ser demandados pelas pessoas e pressionarão o sistema público. E há ainda a covid longa, com sequelas ainda pouco mensuradas pela ciência.
“Não se pode ignorar que a eventual negativa de cobertura frequentemente leva os pacientes a buscarem assistência do SUS, o que pode impactar o já escasso orçamento da saúde pública e a atenção prestada principalmente às pessoas mais desfavorecidas economicamente”, reconhece o relatório oficial do PL.
Resta saber se Bolsonaro acatará a decisão do Senado. “O ideal seria que a gente pudesse promover uma mudança estrutural no sistema e que isso fosse feito não pela via judicial, mas por meio de mecanismos de regulação que fossem universais, efetivos, democráticos, tanto com relação ao que é ou não incorporado como com relação a preços”, resume o sanitarista Sestelo.