A guerra na Ucrânia e a perigosa politização da OMS

Durante a Assembleia Mundial da Saúde, um triste espetáculo para condenar a Rússia – em nome da paz. Outros 25 conflitos no mundo são esquecidos. Saída perfeita para postergar debates como a equidade na Saúde e a catástrofe climática

.

Há coisas que se definem antes que terminem. Uma delas é a 75ª sessão da Assembleia Mundial da Saúde (AMS). Na quinta-feira, dia 26 de maio, um dia antes de sua conclusão, ela se definiu como a sessão mais politizada da história recente da Organização Mundial da Saúde (OMS).

É desolador que a agência especializada em saúde do sistema Nações Unidas se submeta ao triste espetáculo da polarização política em torno à guerra na Ucrânia, ao invés de concentrar os seus esforços nas graves deficiências globais de saúde.

Há suficiente polarização para aceitarmos mais esta, que em nada contribuirá para a paz ou para a saúde. A demonização da Rússia, o cancelamento de sua cultura, de seus artistas e seus atletas é algo inédito, ademais de ridículo.

Tudo que vem da Rússia é mentira. Tudo que vem da Ucrânia, leia-se, da OTAN, é verdade. Deve ser a primeira vez na história que verdade e mentira podem ser localizados geograficamente.

O título escolhido para a Assembleia deste ano é Paz para a saúde/saúde para a paz. De aparência bucólica, lembra até imagens extraídas do movimento parnasiano. Qualquer criança de maternal sabe que sem paz nada é possível, nem sequer brincar sem preocupação.

O Secretariado da OMS, no entanto, achou que seria um bom título, que reflete a importância da saúde. Não se deram conta, ou não quiseram se dar conta, que esse título seria mais uma oportunidade para transformar a Rússia em saco de pancadas.

A Agenda 2030 e os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que é o maior e melhor projeto de desenvolvimento existente, aprovado e sustentado, ao menos retoricamente, por quase todos os países do mundo – são uma decepção.

Os ODS, que deveriam ser alcançados até a data de 2030, estão defasados e muitos creem que não serão cumpridos. A defasagem nada tem a ver com a Rússia, nem com a guerra na Ucrânia. Ela existe praticamente desde quando a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a resolução A/Res/70/1 intitulada “Transformando o nosso mundo: Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável”.

O ODS 3, por exemplo, “Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades” é praticamente a definição da saúde como consta do preâmbulo da Constituição da OMS. Não é preciso ser perspicaz para perceber que esse ODS está longe de ser atingido. A pandemia da Covid-19, e agora a guerra, apenas acentuaram o que já era óbvio. As inequidades dividem o mundo entre os que têm e os que não têm acesso a tudo o que for preciso para tornar real o anseio de transformar o nosso mundo, como disseram os líderes em 2015. É preciso mudar, mas para mudar é preciso querer mudar.

O ODS 13 “Ação contra a mudança global do Clima” vem perdendo terreno para a continuada queima de combustíveis fósseis e a consequente emissão de gases de efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global. A partir de uma certa temperatura, a vida tal como a conhecemos não será mais possível. E a decisão para continuar a emissão de gases de efeito estufa parece depender exclusivamente das grandes corporações do setor energético. Para mudar é preciso querer mudar.

Por ocasião da divulgação do último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, nas siglas em inglês), o Secretário-Geral das Nações Unidas disse que a situação é mais grave do que se pensa. Governos e CEOs responsáveis pela maior parte das emissões, afirmou ele, dizem uma coisa e fazem outra. Em uma palavra, mentem. Pelo visto, o conceito de localização geográfica da mentira não vale quando se trata de um dos maiores problemas enfrentados pela humanidade.

O título, como se disse acima, foi ocasião para que várias delegações civilizadas batessem na Rússia, talvez esquecendo que atualmente há mais de 25 conflitos em todo o mundo e que muitos, certamente, teriam dificuldade em identificar no mapa, tanta é a indiferença com a qual estamos todos acostumados.

A 75ª sessão da Assembleia Mundial da Saúde não se contentou com as pancadas. Queria sangue e aprovou resolução A75/A/Conf./6 intitulada “Emergência sanitária em Ucrânia e nos países que recebem e acolhem refugiados em consequência da agressão da Federação Russa”. Deve-se entender que refugiados dos outros conflitos não merecem simpatia?

O texto da resolução é de natureza política e teria mais sentido em outro foro multilateral que não o da saúde, sempre universal. O parágrafo preambular primeiro, por exemplo, recorda resolução adotada no âmbito do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, A/HRC/Res/49/1, com título semelhante. A redação dada àquela resolução é inacreditável. Toda ela é uma peça de acusação contra a Rússia pelo alegado massacre em Bucha pelas forças russas. O curioso é que, ao final do texto, cria-se um Comitê Independente para investigar o crime. Ou seja, primeiro faz-se a acusação e depois, se possível e for conveniente, faz-se a investigação. “Round-up the usual suspects”, como se diz no cinema.

Até a presente data, o Comitê Independente não recebeu recursos financeiros para levar adiante a sua missão. O trabalho do Comitê Independente tem-se limitado a ouvir a parte ucraniana. A parte russa ainda não foi ouvida e não se sabe se o será, pois tudo o que vem da Rússia é mentira, como é de conhecimento geral.

A resolução adotada pela Assembleia Mundial da Saúde tem outras pérolas, entre as quais caberia mencionar a suspenção de todas as atividades da OMS na Rússia, o que constitui um absurdo em termos de saúde, e para a paz também.

A politização da Assembleia Mundial da Saúde é o pior que pode acontecer para a Organização Mundial da Saúde. O Diretor-Geral não deveria permitir que isso aconteça, embora quem efetivamente decide o que se transforma em resolução, ou não, são os Estados-membros, dominados pelos poderes prevalecentes em todos os fóruns internacionais.

Uma palavra final: como profissionais de saúde e internacionalistas somos contra qualquer ato de violência que produzem dor, sofrimento, mortes – e as guerras são a máxima expressão da violência, que veementemente repudiamos.

Leia Também: