Como as democracias morrem
Um resumo do movimentado fim de semana e seus muitos sinais de alerta à democracia
Publicado 22/10/2018 às 09:12 - Atualizado 19/12/2018 às 16:15
22 de outubro de 2018
COMO AS DEMOCRACIAS MORREM
O final de semana foi movimentado. Pedimos licença para sair, mais uma vez, do noticiário especializado em saúde por entendermos que, neste momento – como já dizia um certo texto de 1979, que lançaria as bases para o SUS –saúde é democracia.
Ontem, circulou nas redes sociais um vídeo em que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) fala que caso o Supremo Tribunal Federal julgasse pela impugnação da candidatura de Jair Bolsonaro por eventual abuso de poder econômico, como doações ilegais, bastaria fechar a Corte. “Você não manda nem um jipe. Manda um solado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo, não”, ironizou. E foi além: “Se prender um ministro do STF, você acha que vai ter uma manifestação popular a favor do ministro do STF, milhões na rua?”. De início, questionou: “Não acho improvável, não, mas aí vai ter que pagar para ver. Será que vão ter essa força mesmo?”. Ele falou tudo isso no dia 9 de julho, numa aula para concurseiros que desejam entrar na Polícia Federal.
Um julgamento do gênero, como apontou reportagem da Folha, não é mesmo improvável. O jornal apurou que empresas fizeram doação indireta (da ordem de R$ 12 milhões cada) para a campanha do presidenciável ao comprar serviços de envio massivo de mensagens anti-PT no WhatsApp, aplicativo usado como principal fonte de informação por 48% dos eleitores. De sexta, quando falamos sobre isso, para cá o Tribunal Superior Eleitoral deixou a desejar.
O pedido de investigação da coligação O Povo Feliz de Novo, do candidato Fernando Haddad (PT), foi aceito na sexta. Mas o corregedor do TSE Jorge Mussi, responsável pela ação, negou a solicitação de quebra de sigilo e busca e apreensão. A coluna Painel de sábado apurou que o entendimento majoritário dos ministros, inclusive de Mussi, é que “não é hora de criar marola”. Em miúdos: não caberia promover diligências extravagantes pois a eleição não poderia ter seu curso alterado pelas mãos da Justiça. Um ministro que é mantido anônimo pela coluna (sabe-se lá por quê) completou: “Lá na frente, se for o caso, cassa a chapa”.
No domingo, durante coletiva de imprensa, a presidente do TSE Rosa Weber disse que as investigações serão apuradas “em seu tempo”. Também ontem, outras duas ações foram aceitas pelo Tribunal, movidas pela coligação Brasil Soberano (PDT/Avante) e pelo PDT, também com base na reportagem da Folha. Em todas as ações, Bolsonaro e as empresas receberam cinco dias para apresentar defesa. O primeiro deadline é na quarta.
Para Weber, as “instituições estão funcionando normalmente”. Ela se furtou a fazer críticas mais contundentes ao filho de Bolsonaro, caracterizando a manifestação como algo que “eventualmente possa ser compreendida conteúdo inadequado”.
Mas a fala é “golpista” na avaliação do decano do STF Celso de Mello: “Essa declaração, além de inconsequente e golpista, mostra bem o tipo (irresponsável) de parlamentar cuja atuação no Congresso Nacional, mantida essa inaceitável visão autoritária, só comprometerá a integridade da ordem democrática e o respeito indeclinável que se deve ter pela supremacia da Constituição da República!!!! Votações expressivas do eleitorado não legitimam investidas contra a ordem político-jurídica fundada no texto da Constituição! Sem que se respeitem a Constituição e as leis da República, a liberdade e os direitos básicos do cidadão restarão atingidos em sua essência pela opressão do arbítrio daqueles que insistem em transgredir os signos que consagram, em nosso sistema político, os princípios inerentes ao Estado democrático de Direito”, escreveu à Folha, pedindo que publicassem o texto na íntegra.
Domingo foi dia de manifestantes pró-Bolsonaro irem às ruas em diversas cidades do país. Para a ocasião, o presidenciável preparou um vídeo exibido num telão na Avenida Paulista em que afirmou que a “Folha de S. Paulo é o maior fake news do Brasil” e é “imprensa vendida”, bem ao estilo Donald Trump. Mas, é claro, foi além: “Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil (…) Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia”. Ame-o ou deixe-o…
“Se Bolsonaro começar a falar em fechar o STF, eu vou confiar nele.Estou dando meu voto de confiança a ele. Se lá na frente o presidente nos decepcionar, voltaremos novamente aqui para a Paulista para protestar”, disse Hilston Oliveira, manifestante entrevistado pelo El País que foi com os três filhos e a esposa apoiar o candidato no domingo.
O tom dos atos continuou sendo a corrupção associada unicamente ao Partido dos Trabalhadores. Sobre essa obsessão, vale a pena ler a crônica de Antonio Prata que retrata um tipo brasileiro: aquele para quem até a morte é “melhor do que a roubalheira do PT”.
Sobre a declaração do filho, Bolsonaro disse que “se alguém falou em fechar o STF, precisa consultar um psiquiatra” e que “alguém” tirou a fala de contexto.
Aliás, o WhatsApp bloqueou a conta de outro dos filhos do candidato, o senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) na onda dos milhares de perfis banidos por comportamento de spam.
Se o combate às notícias falsas é um problema sem “solução pronta”(segundo Rosa Weber), um juiz eleitoral de Macaé resolveu que a imprensa alternativa é fake e mandou recolher do Sindicato dos Petroleiros edição especial do jornal Brasil de Fato sobre eleições. “A medida é mais uma prova da partidarização de setores do Poder Judiciário, que querem assegurar um resultado eleitoral de acordo com os interesses da elite e do capital internacional”, disse o veículo em nota. É um dos poucos a dar destaque às manifestações contra Bolsonaro que ocorreram no sábado.
Em entrevista à BBC Brasil, o cientista político Steven Levitsky – um dos autores do best-seller Como as democracias morrem – responde de que forma podemos esperar que o regime democrático degringole por aqui com a eleição de Bolsonaro caso diversos sinais dados por ele se concretizem:
“Muito provavelmente de uma maneira diferente da de 1964. Não deve haver regime militar, cassação de partidos, ou censura. Mas pode-se esperar a eliminação de direitos civis básicos, especialmente das minorias, dos pobres, dos trabalhadores rurais. No pior cenário, o aparelhamento do Estado e do Judiciário para perseguir pessoas politicamente, seja por corrupção, fraude fiscal ou por qualquer outro tipo de crime. Bolsonaro já disse que quer enquadrar o Judiciário, aumentando o tamanho do STF e indicando seus aliados (para a corte). Mas pode ser pior. O Brasil tem um problema grande de violência e de crime organizado, com facções como o PCC e o Comando Vermelho. Se Bolsonaro lançar uma guerra contra essas organizações, o Brasil se tornará muito violento rapidamente. Ele pode usar isso como desculpa para acabar com a democracia e suspender a Constituição. É muito improvável que ele faça isso no dia seguinte a sua posse, mas as chances aumentam se ele estiver enfrentando uma crise.”
ESTAGNAÇÃO
Relatório internacional mostra que Brasil não é mais um dos líderes em ações de combate ao tabagismo. O país foi o segundo no mundo a adotar advertências nas embalagens, em 2001. Hoje, ocupa a 53ª posição no ranking da Sociedade Canadense de Câncer, que produz o relatório. Um dos avanços mais recentes é a padronização das embalagens para todas as marcas, com mais espaço aos alertas sobre riscos à saúde, já adotado por nove países. Mas por aqui está parado no Congresso desde 2015. Outro ponto de estagnação é a continuidade da exposição dos produtos nos pontos de venda. A proibição é adotada por 60% dos países que, como o Brasil, assinaram a Convenção-Quadro de Controle do Tabaco.
SEDENTARISMO
Uma a cada dez brasileiras com câncer de mama poderiam sobreviver à doença se praticassem atividade física regular, segundo estudo publicado na Nature. O período analisado vai de 1990 a 2015 e, segundo os pesquisadores, neste último 2.075 óbitos teriam sido evitados se as pacientes realizassem ao menos uma caminhada de meia hora, cinco vezes por semana. Isso porque um dos fatores que causam a enfermidade é o excesso de estrogênio e a atividade física melhora o metabolismo deste hormônio, o que pode melhorar o quadro das doentes.
MENOS LEITOS
Nos últimos dez anos, o país perdeu seis leitos hospitalares por dia, segundo estudo da Confederação Nacional dos Municípios obtido pelo Estadão. São 23.088 a menos. Só que o número não diz tudo: enquanto as vagas do SUS reduziram 12% – totalizando 41.388 a menos do que em 2008 – o setor privado ampliou sua capacidade e, hoje, tem 18,3 mil leitos a mais. Uma parte do impacto aconteceu pelo sucesso da luta da Reforma Psiquiátrica, com o fechamento de 21 mil leitos de internação em manicômios. Em outras áreas, porém, os dados são bem negativos: vagas para atendimento de crianças minguaram 26% no período. Segundo a consultora da entidade, Carla Albert, parte da desativação não ocorreu por razões técnicas, mas econômicas, o que desorganiza o sistema. As vagas de hospital dia, por exemplo, aumentaram pouco: passaram de 4.213 para 5.347. “O receio é que a desativação de leitos tenha ocorrido sem a devida organização da rede ambulatorial. Basta ver as filas que ainda existem para alguns procedimentos”, falou ao jornal.
O QUE HIPÓCRATES DIRIA
Circula nas redes sociais uma foto da festa de posse da nova diretoria do Cremerj que mostra o senador eleito Flávio Bolsonaro posando com duas pessoas com as mãos em riste, imitando armas. O grupo Médicas e médicos contra o fascismo afirma que na foto, está uma conselheira do órgão. A chapa eleita é a “Reconstruir”.
REEDIÇÃO…
Já em outra posse, a do Cremesp no sábado, o presidente da Associação Brasileira de Medicina Lincoln Ferreira caracterizou o atual momento do país como sendo de “renovação”: “A medicina brasileira passou por um período turbulento, apontada como sendo a responsável por todas as mazelas, de um sistema de saúde subfinanciado, institucional e mal planejado, cheio de programas caros e bastante bem engendrados e malsucedidos do governo. Chega! De nada serve falar de ética sem possuí-la, falar de virtude sem praticá-la, é esse discurso vazio que mais do que nunca está condenado ao fracasso. E essas eleições mostraram exatamente isso, de uma forma muito clara”, disse.
MAIS A FUNDO
O governo francês reabriu a investigação sobre bebês que nasceram sem braços em três regiões do país. São 14 casos desde 2007. A conclusão da agência sanitária francesa, divulgada em outubro, foi de que em uma das regiões, o número de casos não era superior à média nacional. Mas nas outras duas, sim. As causas podem ser genéticas, mas também podem ter a ver com a presença de substâncias tóxicas na comida e no meio ambiente, e até mesmo a efeitos desconhecidos de remédios, como foi o caso da talidomida.