Resistência curda: guerra, terremotos e autonomia

Povo foi o mais afetado nos recentes sismos na Turquia e Síria, e é segregado no resgate e apoio aos refugiados. Condição de minoria dispersa em vários países contrasta com história milenar. Crise acentua seu desejo de independência e unidade

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 A sequência de terremotos que devastaram extensas áreas do sul da Turquia e do norte da Síria pôs novamente em tela a triste situação dos curdos, o maior povo sem estado do mundo. 

De fato, muitíssimos dos mais de 47 mil mortos pelos terremotos nos dois países eram da etnia curda, que constituem a maioria em muitas cidades e vilarejos da região. Assim como são curdos parte significativa dos desabrigados, que não estariam recebendo amparo suficiente dos governos turco e sírio, pelo contrário, no caso da Síria há denúncias de boicote a eles. 

Para este povo valente e empobrecido, que na Turquia é praticamente impedido de cultivar sua cultura e língua – que não é a turca nem a árabe, mas sim um idioma indo-europeu bastante parecido com o farsi, língua dos iranianos – os terremotos foram mais uma prova de que por pior que a situação esteja ela sempre pode piorar.

O sofrimento do povo curdo aumentou muito nas últimas décadas, como consequência da Revolução Iraniana de 1979 – sunitas, os curdos foram ferozmente reprimidos pelo regime dos aiatolás xiitas -, das guerras dos Estados Unidos e aliados europeus contra o dirigente iraquiano Saddam Hussein, que chegou a usar gás venenoso em áreas curdas rebeldes, e agora da guerra civil na Síria.

O território curdo também foi transformado em campo de batalha por grupos islâmicos fundamentalistas, empenhados em dominar suas áreas. 

Não que os curdos vivam passivamente sob o fogo cruzado. Eles reivindicam sua autodeterminação desde praticamente o começo do século 20, reivindicação histórica que os levou nos últimos anos a ser alvo de intensos ataques militares para reprimir suas aspirações territoriais.

O que do ponto de vista dos países dominantes chega a até fazer sentido. Nenhum país da região quer a independência curda devido à posição geográfica da nação e o tamanho significativo de sua população.

O povo curdo está dividido entre a Turquia, a Síria, o Iraque, o Irã e, em menor escala, a Armênia, habitando faz séculos as áreas montanhosas que servem hoje de fronteiras entre estes países. 

O número de sua população é incerto, sendo estimada em torno de 30 milhões de indivíduos distribuídos por Turquia (12 a 15 milhões de pessoas ou 20% da população do país), Irã (6 milhões), Iraque (5 milhões) e Síria (2 milhões), além dos dispersos nos países vizinhos (Armênia, Azerbaijão, Geórgia e Líbano) e dos refugiados em países europeus, como a Alemanha.

Caso todas as regiões curdas fossem reunidas em um único estado independente, o Curdistão já nasceria como um dos maiores da Ásia Ocidental, com direito inclusive a grandes jazidas de petróleo, concentradas principalmente no norte do Iraque. 

Hoje, a subsistência dos curdos – povo ainda com forte presença dos clãs – é baseada no pastoreio e na confecção de tapetes artesanais e, nas grandes cidades, como Istambul ou Ancara, nos trabalhos duros e mais mal remunerados.

Na Turquia, onde vive a maior parte dos curdos, e onde por isso eles também são mais visíveis para o mundo, a segregação se expressa em termos territoriais, econômicos, culturais e políticos, com perseguições tanto a partidos parlamentares como o Partido dos Povos do Curdistão (HDP) como a partidos armados, como o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK).

A segregação, no entanto, está presente em todos os estados onde os curdos vivem. Em todos eles sequer sua identidade étnica é respeitada. Se os turcos classificam os curdos como “turcos da montanha”, eles são definidos pelos árabes como “árabes da montanha”. Já os iranianos consideram os curdos como uma etnia persa.

Lambança europeia

A tentativa de supressão da identidade curda é ainda mais revoltante, para este povo, devido ao simples fato de sua história remontar ao século 7 a.C., na antiga Mesopotâmia, com suas origens derivando de povos irânicos da Antiguidade, e de que os curdos formaram alguns principados importantes principalmente no século 10, quando se converteram ao islamismo.

É neste período que surge Saladino (c. 1138–1193), a maior personalidade curda da História. Ele foi um chefe militar muçulmano que se tornou sultão do Egito e da Síria e liderou a oposição islâmica aos cruzados europeus no Levante. No auge de seu poder, seu domínio se estendia pelo Egito, Palestina, Síria, Iraque, Iêmen e pelo Hejaz, na hoje Arábia Saudita. 

Saladino foi responsável por reconquistar Jerusalém dos cruzados, e tornou-se uma figura emblemática na cultura curda, árabe, persa, turca e islâmica em geral. Ele tornou-se célebre até entre os cristãos, por sua conduta cavalheiresca, tornando-se um exemplo da ética da cavalaria medieval.

O respeito que os cristãos tinham para com Saladino foi bastante bem retratado pelo cineasta inglês Ridley Scott em Cruzada, filme de 2005.

Alguns dos principados curdos mantiveram certa autonomia até o século 17, quando todo o Curdistão acabou conquistado e dividido entre o Império Turco-Otomano e o Império Persa. A região permaneceria como parte destes dois impérios multiétnicos até o final da Primeira Guerra Mundial (1914-18), quando por muito pouco o Curdistão não se tornou um estado independente.

De fato, o Tratado de Sèvres de 1920, firmado entre o Império Otomano e os vencedores da guerra – principalmente Grã-Bretanha e França – previa o fatiamento das terras deste império no Oriente Médio, com a criação de vários “países” de língua árabe e um estado curdo no território compreendido entre o leste da Anatólia (Turquia) e a região de Mossul (atual Iraque). 

O arranjo foi por água abaixo com a retomada da guerra pelos inconformados nacionalistas turcos, liderados por Mustafa Kemal, o Ataturk, que derrubaram o sultão e forçaram os anglo-franceses, sem condições de mergulharem em outra guerra, a discutir um novo tratado.

Foi este o Tratado de Lausanne, de 1923, que, para adoçar os nacionalistas turcos, cancelou a independência curda e dividiu seu território entre a Turquia, Irã, Iraque (criado como um protetorado britânico) e Síria (outro país inventado na região, no caso como protetorado da França). Acabava aí o sonho da independência curda.

A esperança dos curdos está hoje renovada, paradoxalmente, pela crise do nacionalismo que se observa nos países árabes, e que parece de uma profundidade abissal principalmente na Ásia Ocidental.

Ali, não só o Iraque e a Síria, mas quase todos os outros países – Líbano, Jordânia e incluindo a Palestina (hoje praticamente toda ocupada pelo Estado de Israel), além de algumas monarquias do Golfo Pérsico –, também foram criados artificialmente pelas potências vencedoras no pós-Primeira Guerra. 

Após a independência, forjada quase simultaneamente duas décadas depois por grupos nacionalistas, esses países veem agora, um tanto perplexos, o fundamentalismo islâmico tentando solapar estas antes sagradas bases nacionais – também meio que “inventadas” pelos partidos nacionalistas -, propondo uma espécie de califado pan-árabe (ou mesmo pan-islâmico) reconstruído e ancorado em alegadas tradições muçulmanas.

Este fundamentalismo islâmico – secundado por outros grupos “federalistas” não tão radicais, mas bem menos importantes – estão obtendo mais sucesso em suas pretensões do que a imprensa ocidental admite.

Estados tidos como “sólidos” até algum tempo atrás já não se mostram muito viáveis, como o Líbano, Síria e Iraque, por exemplo, já quase derretidos por agressões externas e guerras civis. 

A nada impossível implosão desses estados está concedendo mais espaço para os curdos que lá vivem reivindicar sua independência de modo mais enfático, o que eles vêm fazendo até mesmo com fuzis e morteiros, embora a luta avance menos do que poderia também por causa de suas muitas divisões políticas internas e grupais.

Mas as dificuldades dos curdos para criar um estado independente, mesmo que apenas nas terras hoje árabes, são imensas. Ela também só acontecerá depois de arrancada, por algum meio que fosse, a concordância da Turquia e do Irã, algo hoje inimaginável. E da expulsão definitiva dos fundamentalistas do território, só possível pela força das armas.

 E, ainda, se americanos, europeus, russos e chineses também concordarem em dar o “nihil obstat” político – o que hoje parece improvável. 

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