Uma possível aliança contra as madeireiras

Nos EUA, Defensores das Florestas aliam-se aos povos indígenas contra a devastação de sequoias. A estratégia: ocupar pés e copas de árvores; bloquear máquinas; atrasar a logística madeireira. Atacam onde mais dói nas corporações: o bolso

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Dedicado a Manuel Tortuguita , defensor florestal de Atlanta, assassinado pela polícia em 18 de janeiro de 2023. “Eles o mataram como derrubam árvores na floresta – uma floresta que Manuel amava com paixão”, disse Belkis, mãe de Manuel.

Guerra por árvores

Um cliente que adentre Home Depot, a maior lojas de materiais de construção dos Estados Unidos, encontrará disponíveis elegantes madeiras de sequoia com “certificado de silvicultura sustentável”. Humboldt Redwoods Company (HRC) provê essa cintilante mercadoria. A empresa afirma estar reduzindo o uso de pesticidas e selecionando as árvores para corte, em lugar de realizar um desmatamento geral de uma mesma área. Quem cria os conceitos e critérios da sustentabilidade, no entanto, é a própria empresa.1 Por exemplo, comprometem-se a poupar o corte de old growth trees – árvores antigas –, embora não haja definição científica ou consensual sobre a idade ou condições para caracterizá-las. Além disso, ignoram preceitos básicos de ecologia, como a necessidade de árvores de diversas idades em uma floresta saudável, bem como as múltiplas e complexas relações estabelecidas no ecossistema. É evidente que a empresa privada, em contexto de uma economia capitalista e vaga legislação ambiental, prioriza sobretudo sua lucratividade – que aumenta com a imagem de “sustentável”.

Em resposta a esse tipo de operação, Humboldt County, no norte da Califórnia, onde opera a HRC, conta com uma tradição de décadas de ativismo em defesa da floresta, das ecologias e dos povos nativos locais.2 O grupo ativista de “forest defenders” (defensores/as da floresta) é auto-organizado, valoriza a ação direta e está determinado a interceptar toda atividade de corte possível. De forma horizontal e autogestionada, participantes decidem as próximas ações e as executam. A tática dos ativistas envolve interceptar ações das empresas, bem como reduzir/zerar o lucro que provém do corte de árvores: quanto mais tempo se mantiverem as empresas esperando, esperneando, negociando com ativistas, menos lucrativa se torna sua atividade.

Entre as táticas típicas de defesa da floresta incluem as casas-na-árvore – ativistas habitam a árvore fazendo de uma rede na copa a sua morada, durante dias, semanas, ou meses –, o bloqueio de estradas (com corpos humanos ou barricadas) para impedir a passagem de caminhões e trabalhadores das madeireiras, a disposição de faixas e bandeiras, a obstacularização geral dos processos, por exemplo caminhando lentamente diante dos caminhões (deixando-os andarem a, digamos, 1 km por hora, talvez), e outras medidas que dificultem os empreendimentos e aumentem os gastos das empresas.

Grupos vão morar em áreas remotas da floresta, monitorando-a, sendo os olhos e ouvidos da floresta e da comunidade, para manter a atividade madeireira sob vigilância e resistência. Como ensinaram em uma oficina de ação direta não violenta no acampamento, os pontos de intervenção incluem pontos de produção (como fábricas), pontos de destruição (como as florestas), pontos de consumo (como Home Depot), pontos de tomada de decisão (como reuniões empresariais, governos) e crenças culturais não examinadas (por exemplo, greenwashing, ou lavagem verde). Em outra frente, as “táctividades” incluem a colaboração com os povos indígenas locais e a realização de um levantamento biológico do território para compor um banco de dados do ecossistema.

Tanto perdas como marcantes sucessos fazem parte da história do grupo. Por exemplo, em 2015, após um bloqueio de verão, a HRC cancelou dezenas de milhares de hectares de corte. Os bloqueios na região novamente impediram, por completo, a extração de madeira em 2017 e em 2018. Em Rainbow Ridge, a abundante floresta em estágio avançado de desenvolvimento ecológico é um lembrete e um efeito de vinte anos de ação direta bem-sucedida. A razão pela qual pude desfrutar de uma tarde tranquila e monótona sentada no mirante com o grupo, observando a estrada para vigiar caminhões que não vieram, é que, décadas atrás, camaradas sentaram-se no mesmo local, pelo mesmo motivo.

Uma semana em um acampamento de defesa da floresta

Parte das/os defensoras/es da floresta dedicam suas vidas integralmente ao ativismo, e grupos maiores concentram-se esporadicamente em action camps (acampamentos de ação) para preparação, treinamentos, planejamento e execução de ações diretas. No acampamento em que participei durante uma semana, organizamo-nos de forma autogestionada para atividades domésticas, planos de ação, execução de ações e treinamentos. Um constante fluxo de conhecimentos transita pelo acampamento: noções sobre ação direta não violenta, treinamento de escalada de árvores, leitura e interpretação de mapas cartográficos e o que mais haja alguém disposto a ensinar. No cenário havia sempre pessoas deitadas na grama lendo livros ou escrevendo em seus cadernos, e frequentemente alguém tocando um instrumento musical faz desdobrar uma jam session espontânea.

A estética e orientação política é anarquista, punk, e queer: pessoas tatuadas, com piercings, livres do binarismo de gênero. É prática comum em espaços assim, na Califórnia, escolher e expressar os pronomes pelos quais se prefere ser referido/a/e/x – como ele, ela, ile, isto, ou outros. Os pronomes escolhidos quebram as expectativas estabelecidas pelas convenções sociais e apontam para a reinvenção social que nasce da autodeterminação. Em tal contexto de ativismo, também é prática usual a escolha de nomes fictícios para a ocasião (“nomes de acampamento” ou “nomes de floresta”). Como no espírito de “La Casa de Papel”, desconhecer a identidade alheia é zelar pela segurança do grupo e de seus membros. Enquanto algumas pessoas optam por nomes humanos, a maioria diverte-se com nomes como “Mofo”, “Espinho”, “Groselha”, “Salsinha”, “Ameixa”, “Lua”, “Calçada” etc.

Parte da experiência de frequentar um acampamento de defesa da floresta é conhecer a terra, conviver com árvores ancestrais, conectar-se com o local, e aprender a viver em território selvagem. Enquanto vigiávamos a estrada, uma defensora da floresta compartilhou que ouvira o zumbido de uma árvore no dia anterior. Uma das noites, dormimos sob as estrelas e as árvores, sentindo sua brisa em nossos rostos. Penduramos nossos suprimentos de comida nos galhos das árvores, para o caso de um urso faminto passar. Os defensores da floresta são mestres da sobrevivência e da proteção. Elaboram logísticas, calculam distâncias, escondem mochilas (e as encontram!), mascaram seus rostos, criam nomes, borram identidades e salvam florestas. “Cuidar umas das outras para ser perigosos juntos.”

Tínhamos como base um grande celeiro de madeira rústica, e os grupos em ação acampavam perto da mata a ser defendida. Preparamos refeições comunitárias, e realizamos reuniões diárias, animadas e com senso de humor. A cada noite, uma pessoa diferente, geralmente (mas não sempre) entre as mais experientes, tomava a iniciativa de convocar a reunião e mediá-la. As reuniões ocorriam em alto astral e brincando com temas como “esta é uma não-reunião que eu estou não-mediando!”. De fato, há em prática muito conhecimento e experiência coletiva em facilitação de grupos e processos de decisão por consenso. Propunha-se uma pauta que se seguia para chegar a deliberações e planos concretos para o dia seguinte, incluindo ações, organização de caronas, preparação de refeições etc., mantida a bem instituída liberdade de fazer o que se bem queira ao longo do dia – participar de qualquer das atividades previstas ou de nenhuma delas. Foi um período descontraído, pois a temporada de corte ainda não havia propriamente começado. Outros acampamentos lidam com mais ação e confronto.

O contexto é de intensa tensão entre ativistas e as empresas empenhadas na exploração madeireira; uma tensão que muitas vezes leva à prisão de ativistas e, em alguns casos, à sua debilitação física ou mesmo à morte. Em 1998, a queda de uma árvore cortada matou o ativista David Chain enquanto ele resistia às ações da Pacific Lumber Co., a empresa madeireira dominante na época. Segundo manifestantes, a empresa deliberadamente cortava árvores imensas de forma a caírem perpendicularmente, ameaçando ativistas. Similarmente alvo de violência, Manuel Tortuguita foi baleado e morto pela polícia por defender a floresta de Atlanta em 18 de janeiro de 2023.

Madeira “sustentável”: quem sustenta o quê?

Pacific Lumber, por décadas uma das maiores empreiteiras da Califórnia e conhecida como “Império das Sequoias”, faliu em 2007, e Humboldt Redwoods Co. é sua sucessora. A queda de Pacific Lumber deveu-se a décadas de manejo florestal extrativo.3 O que era fiscalmente insustentável também era ecologicamente insustentável – cortaram tanto em tão pouco tempo que logo não havia mais o que cortar. Quase toda a floresta da bacia hidrográfica da região foi explorada desde a década de 1950. Em termos de desmatamento, é um trucidamento ecológico quase total: restam 5% das florestas de sequoias originais da região, que ultrapassavam 800 mil hectares.4 A razão pela qual ainda existem árvores antigas na região é o contínuo compromisso dos defensores da floresta em protegê-las. Essas florestas exploradas estão crescendo lentamente, mas continuam desprotegidas por lei. Embora muitas áreas ainda sejam demasiado jovens para serem exploradas e a madeira seja de baixa qualidade, HRC continua a explorar a área.

No momento, os dois maiores oponentes da floresta são HRC, madeireira, e a empresa de energia elétrica PG&E. A empresa de energia elétrica luta para remediar sua imagem pública após ter sido responsável por provocar os massivos incêndios que varreram a região em 2021.5 Sua resposta foi determinar o corte de árvores próximas às linhas elétricas. A resposta, além de pouco ecológica, é de eficácia limitada, comparada a alternativas como linhas elétricas subterrâneas ou a proteção dos equipamentos, considerando que a maioria dos incêndios são causados por falhas no equipamento, e não por queda de árvores.6

Ambas as empresas procuram, como é típico da economia capitalista, extrair o máximo de lucro possível do ecossistema, desapropriando os povos locais e ignorando a densa malha de relações que compõem uma floresta viva e saudável. A comunidade indígena local, cujo território ancestral inclui grande parte da bacia hidrográfica da região, está ativamente comprando de volta parcelas de suas terras no vale após terem sido historicamente deslocadas e desapropriadas. Estão reavivando tradições culturais no vale e trabalhando junto com ONGs e agências governamentais em medidas de conservação na bacia hidrográfica. Embora tenham conseguido comprar outras propriedades, até agora a Humboldt Redwood Company se recusa a vender terras florestais para a comunidade indígena. A empresa chegou ao ponto de negar-lhes acesso para realizar pesquisas biológicas aprovadas pelo Estado em territórios onde a empresa opera.

Futuros

Sequoias são árvores imensas que podem alcançar cem metros de altura – são as árvores mais altas da Terra – e viver por mais de dois mil anos. Vizinhas, douglas fir, madrone, carvalho vivo do sul, louro e outras espécies de árvores povoam a bacia hidrográfica da região. Além de impressionantes e belíssimas, beneficiam sua comunidade ecológica de inúmeras maneiras, incluindo a preservação dos rios, de espécies animais, e muitas outras benfeitorias típicas das florestas, como sequestro de carbono, construção do solo, moderação do clima etc. Sagrada para os povos indígenas locais, a floresta também é abrigo de inúmeras espécies, inclusive várias em risco de extinção. Lá habitam corujas-pintadas do norte, açores-nortenhos, águias-reais,  salmões-prateados, martas, martas-pescadoras, roedores Arborimus pomo, o raro fungo Agarikon (Fomitopsis officinalis),e mais.

Os efeitos do desmatamento não se restringem à área em que ocorrem: a perturbação de vegetação e solos pode resultar em erosão e enchentes que causam danos intensos e irreversíveis ao bioma e ao habitat das espécies que o populam. Neste momento, pressionado por crises climáticas e ecológicas, a destruição das florestas é exponencialmente assassina. Aprender e colaborar com os povos indígenas, defensores da floresta, árvores e as multidões que compõem uma floresta pode ser essencial para encontrar caminhos a seguir.

Para saber mais, siga @treesittersunion.local707, @blockadia e @redwoodforestdefense no Instagram. Para participar das ações, o contato é feito com [email protected] .


1 Tais critérios e condições são submetidos pela empresa ao Departamento de Silvicultura da Califórnia (California Department of Forestry, CDF) via um “Timber Harvest Plan” (THP) – Plano de colheita de madeira.

2 Nomes específicos de povos, lugares e pessoas serão mantidos em sigilo em benefício de sua segurança – abordagem protocolar entre os grupos em questão.

3 Pacific Lumber era uma empresa familiar bem vista pela comunidade por oferecer bons empregos. Nos anos 80, a empresa foi adquirida por um capitalista de risco texano chamado Charles Hurwitz, que acelerou o corte raso, liquidando a empresa e deixando os trabalhadores à deriva. Houve um período de poderosa colaboração entre ambientalistas e trabalhadores da indústria madeireira nos anos 90, quando ambos os grupos lutaram juntos contra esse lucro corporativo.

4 https://www.nationalgeographic.com/travel/article/humboldt-redwoods-california

5 California finds PG&E equipment responsible for massive Dixie Fire”.

6How PG&E Ignored Fire Risks in Favor of Profits”.

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