Rosa e Lênin: para entender melhor a histórica polêmica

Sim, ela criticou a aposta num partido centralizado e alguns dos primeiros atos da revolução soviética. Mas jamais deixou de apoiar sua audácia, ao criar o poder dos oprimidos. Porque sabia: na luta para superar o capital, faz falta a organização – mas também a tempestade…

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Título original:
As Lealdades de Rosa Luxemburgo

Rosa Luxemburgo, revolucionária polaco alemã cuja atuação marcou a revoluções do início do século XX, nasceu há exatos 153 anos (5 de março de 1871). Além disso, completam-se, em 2024, 105 anos de seu assassinato na Alemanha. Era o governo social-democrata chefiado por Ebert, Noske e Scheidemann. Mesmo para os que defendiam a democracia, não foi possível suportarem o fulgor cálido da revolucionária polonesa. As lealdades de Rosa – jamais foram aceitas pelas forças conservadoras, a direita, da ordem política e social alemã, bem como pelos que deveriam, no pior dos cenários, ter a decência histórica e moral de ao menos protegê-la do violento extermínio que sofreu no dia 15 de janeiro de 1919.

Certas interpretações sobre Rosa Luxemburgo, invariavelmente, a lançam como combatente incansável das concepções de Lênin, em geral, de suas ações e dos bolcheviques no contexto particular da Revolução Russa de 1917. É verdade que, grosso modo, a teórica socialista “alemã” não foi adepta da construção de um partido de vanguarda, ou se se preferir, de um partido leninista. É verdade, também, que Rosa militou, malgrado todos os problemas tão bem descritos por Carl Schorske no German Social Democracy, 1905–1917: The Development of the Great Schism,no SPD – o que significa a compreensão ponderada que ela tinha da importância da organização partidária para os trabalhadores–; obviamente,sendo oposição radical a ele. Por outras palavras ela, entendia a exigência de um partido, verdadeiramente, representativo dos operários na luta de classes. E que de quando a situação interna do Partido Social-Democrata ficou insustentável para suas convicções políticas, ela deu vida, junto com Karl Liebknecht, à Liga Espartaquista: uma fração revolucionária no interior das disputas dos grupos socialistas de então, que almejava influir nos destinos da classe proletária alemã. Rosa Luxemburgo não era leninistai, pode-se dizer até que estava distante do princípio da necessidade impreterível de uma organização disciplinada para a transformação social que Lênin acalentouii; entretanto, ela estava muito mais distante, havia um abismo (profundo mesmo), de qualquer postulação que não tinha no horizonte a superação revolucionária, completa, da sociedade capitalista. Que já por aquele tempo, o primeiro quarto do século XX, impunha aos desvalidos uma vida de barbárie (que ela própria viria a sofrer). Assim, os pensamentos de Rosa chocavam o mundo.

Três textos são decisivos para averiguarmos os comprometimentos de Rosa, a vermelha. No primeiro impulso insurrecional do século XX, as revoluções de 1905 na Rússia, Rosa expressa a fidelidade teórica e política com as lutas do povo. Greve de Massas, Partido e Sindicatos é publicado em 1906; exprimindo a alma combativa de milhares de homens e mulheres pertencentes ao proletariado russo. A interpretação dialética que ela propõe – “a dialética da História, [é a] pedra básica em que se assenta toda a doutrina do socialismo marxista […]”iii – tinha o objetivo declarado de contrapor a experiência inventiva, criativa e insubmissa da organização espontânea operária na dinâmica contingente da luta de classes aos partidos sociais-democratas russo e alemão. Rosa, sempre se viu como antagônica à suposta democracia dos agrupamentos social-democratas; o que a tornava intransigente e cáustica crítica deles era o burocratismo glacial do núcleo dirigente do partido. Daí dizer, “a concepção rígida e mecânica da burocracia só admite a luta como resultado da organização”iv; ademais havia uma cultura já estabelecida na social-democracia de que a via eleitoral e parlamentar eram as mais adequadas para as conquistas dos trabalhadores. Vale dizer: qualquer ação empreendida com vistas às necessidades desses teria de passar, esquemática e calculadamente, pela competição pelo voto no escrutínio eleitoral e por um programa parlamentar, esses sendo conduzido por um “pequeno núcleo organizado”v de cima para baixo. Não é que Rosa desprezasse completamente as contendas eleitorais, parlamentares e sindicais (por demandas econômicas); mas, para ela, somente a dialética entre as condições de vida sob o domínio do capital e a “efervescência das grandes lutas de classe tempestuosas” poderia, em algumas circunstâncias, tornar as eleições e os parlamentos burgueses em locus autêntico de disputas e sucessos. Entretanto, mesmo nessas condições excepcionais – em que as instituições convencionais são espaços temporários de conflito adequado para os de baixo – Rosa Luxemburgo, jamais as priorizou. Ora, as paixões políticas que cultivava, sempre foram destinadas ao “turbilhão revolucionário […] que emerge dos [vendavais] e da tempestade, das chamas e do braseiro da greve de massas, qual Afrodite surgindo da espuma dos mares […]”. A autora de A Crise da Social Democracia, foi adepta briosa da espontaneidade das barricadas; do fervor glorioso da luta de classes daqueles e daquelas que almejavam a igualdade, a liberdade e a dignidade enquanto seres humanos: seu entusiasmo, sempre esteve de acordo com as irrupções inesperadas na história, do desejo de “ação revolucionária direta das massas”.vi

Por isso, muito ao contrário dos leitores e leitoras desatentos, e os com atenção também, que leem de perto, Rosa jamais se voltou contra a Revolução Russa e a posição dos bolcheviques. Em A Revolução Russa, notas que escreveu em setembro de 1918 da prisãovii, as divergências apresentadas por ela ao partido de Lênin não eram acerca de se deveriam ou não empreender a organização da conquista do poder por parte dos sovietes, os conselhos de trabalhadores, camponeses e soldados; no plano das táticas mais convenientes naquelas circunstâncias é que o debate foi travado. O equívoco dos revolucionários de outubro, para Rosa Luxemburgo constituiu-se em três atitudes: a distribuição de terra aos camponeses, a concessão dos direitos à autodeterminação de nacionalidades oprimidas (da Ucrânia, sobretudo) e sobre o fechamento da Assembleia Constituinte em 1918viii. Nas duas primeiras, haveria que se perguntar quais as possibilidades tinham Lênin, Trotski, Kamenev, Zinoviev, Lunacharski, Tomski, Riazanov e Bukharin de agir de outra maneira; os camponeses ficariam convencidos da aliança com a cidade tendo de esperar mais alguns anos pela nacionalização-democratização total das terras para solucionar seus problemas e não a divisão parcelizada imediata e para sua sobrevivência depois de décadas de opressão? E as nações oprimidas, como teriam recebido tal incoerência de quem defendia, corajosamente, a autodeterminação dos povos até então? Ademais, como fazer com que o país que estava se formando após uma revolução que desorganizava estruturas profundas de poder no espaço regional ao qual se localizava a Rússia (em meio a uma guerra entre potências imperialistas) mantivesse outra nação em um espaço geopolítico e geoeconômico complexo?ix (São indagações que o ensaio de Rosa poderia ter se aprofundado com mais vagarx.)

O fechamento da Assembleia Constituinte, é a ocasião que Rosa Luxemburgo se põe com maior presciência. Não porque ela defendia as tolices liberais cínicas de liberdade, igualdade (formais), etc. – “a concepção liberal [da] história [é] superficial”xi –, mas sim porque Lênin e os bolcheviques, ainda que afirmando com coerência empírica que a composição dos eleitos para a assembleia havia mudado no transcurso do processo revolucionário ao longo de 1917, não se atentaram para o que Rosa percebeu: na Assembleia Constituinte haveria a possibilidade de toda a massa do povo atuar e robustecer sua disposição em lutar pela revolução – estava em jogo a questão da subjetividade coletiva da classe trabalhadora, dos camponeses e soldados. O fogo e a “força criadora”xii da revolução ainda manter-se-iam acesos; e lançaria os contrários a ela no espaço da verdade, do real – de tramarem, tramarem e tramarem contra os interesses do povo ao expressarem suas posições políticas, sociais e econômicas no âmbito da assembleia.

Com efeito; a lealdade da teórica da espontaneidade era maciça: “a Revolução Russa é o fato mais prodigioso […] [de nosso tempo]. Sua explosão, seu radicalismo sem igual, seu efeito durável refuta admiravelmente o argumento utilizado pela social-democracia alemã oficial, no seu zelo para encobrir ideologicamente a campanha do imperialismo alemão”xiii. Mesmo convicta dos erros pontuais dos revolucionários russos, com Lênin à frente, Rosa Luxemburgo em nenhum momento se opôs à insurreição dos trabalhadores, camponeses e militares – que almejavam uma vida melhor, livre da exploração, da opressão e da humilhação imposta pelas forças do czarismo, dos partidos da ordem (os cadetes) e a burguesia russas. Explicitando fidelidade implacável, ela disse que “coube à tendência bolchevique o mérito histórico de ter proclamado e prosseguido desde o início, com uma coerência férrea, a única tática que podia salvar a democracia e fazer avançar a revolução, […] [que era] todo o poder às mãos das massas operárias e camponesas”xiv; agrupados com disposição incandescente em torno de Lênin, os bolcheviques, completa Rosa Luxemburgo, puderam “reunir”, após serem “caluniados e acuados por todos os lados e num curto espaço de tempo”xv, a maioria esmagadora de todo o povo trabalhador russo.

Como Lênin, mesmo sendo oponente dele por diversas vezes –Hannah Arendt diz que ela esteve em “desacordos” com ele “durante a Primeira Guerra Mundial”, pois, o entendimento dela jamais se conformou com fato de que as revoluções podem ser motivadas por circunstâncias não intencionadas da barbárie da guerra como teorizava o russo, essa era uma das divergências entre elesxvi –, Rosa Vermelha foi adepta da “coragem, energia, perspicácia revolucionária […] e capacidade de ação”xvii de todo povo insubmisso que recusa a ordem imposta pelas classes dominantes e se alçam no proscênio histórico-político em processos revolucionários, insurrecionais e de guerras civis: sempre com esperança por uma outra vida.

Essa era a sólida concepção que a fez em um dos seus últimos textos defender o governo dos conselhos. No artigo de 17/12/1918, Assembleia Nacional ou Governo dos Conselhos? (notem que foi escrito dois meses após a publicação de A Revolução Russa, no qual crítica os erros dos revolucionários russos por terem “fechado” a Assembleia Constituinte), Rosa Luxemburgo é enfática, “irredutível”, ao enunciar com voz trovejante que a questão colocada era “abandono do socialismo ou a mais resoluta luta de classes do proletariado armado contra a [classe dominante]”xviii. E mais à frente, e em franca oposição à social-democracia alemã: “realizar o socialismo pela via parlamentar, por simples decisão majoritária […] [é um] projeto idílico”xix.

O escrito em si, malgrado as poucas páginas, é um digno exercício de erudição em conhecimento histórico das sociedades europeias – erudição histórica (e cultural) essa que marcou toda a geração de teóricos e teóricas socialistas das primeiras décadas do século XX. Rosa analisa o desenvolvimento das instituições burguesas e de outros agrupamentos políticos descontentes com a monarquia e o clero, para argumentar sobre a necessidade impreterível naquele contexto da revolução alemã de forjar organizações de combate dos trabalhadores. A preocupação que a autora expressava em Assembleia Nacional ou Governo dos Conselhos? e os que a seguiam na Liga Espartaquista era que nas circunstâncias decisivas da revolução alemã predominasse a visão política dos sociais-democratas, sobretudo dos seus futuros algozes, a ala moderada representada por Ebert, Noske e Scheidemann; qual seja, que o parlamento se tornasse o local predominante de ação dos partidos e grupos socialistas e dos trabalhadores. Seu argumento baseou-se na história mesma das contendas de classe; ora mesmo na Inglaterra do século XVII em meio às convulsões dos anos 1640 que levaram à execução de Charles Stuart, não foram “os debates na abadia de Westminster […]” que decidiram a revolução, mas sim “nos campos de batalha de Marstor Moor e Naseby”xx que a situação teve seu desfecho positivo. Na França de 1789 após reunião dos Estados gerais – que “Mirabeau e […] outros declararam”xxi que com a presença da nobreza, do clero e do terceiro estado tal instituição deveria ser nomeada de Assembleia nacional – a vitória da revolução só ocorreu após a ampla democratização das ações políticas dos setores oprimidos por anos de poder da coroa, do clero e da nobreza. Quer dizer, Rosa argumenta em um certo momento que na França profana foi necessário “o Terror”: consequência da luta dos camponeses, pequena-burguesia, artesãos e burguesia radical no conflito contra as classes dominantes de então. E quanto à situação alemã, em 1918? Assembleia-Parlamento nacional ou organização conselheirista dos proletários? Com efeito; para Rosa, aqui sendo contraintuitiva como não poderia deixar de ser, a proposição aforística de Lassalle tinha de ser um emblema dos socialistas alemães: “o ato revolucionário consiste sempre em exprimir o que éxxii. Pois, o sentido que Rosa atribui à breve formulação de um dos fundadores do SPD é que na dinâmica mesma da luta entre as classes, os trabalhadores têm de forjar no combate político real suas próprias organizações. Por outras palavras, a democracia do povo que trabalha deve se “realizar presentemente”xxiii na histórica, vale dizer, deve ser um exercício de autorreflexão contingente e de ação prática (revolucionária).

Ora, se “o Parlamento, a Assembleia Nacional [e] o boletim de voto”xxiv são insuficientes para a resolução dos sofrimentos impostos pelo capitalismo – Rosa chega a dizer, que são “uma mentira”, tal o teor de seus preceitos – a forma-conteúdo dos modos de construção política dos de baixo só poderia ser: o conselho de trabalhadores, em que todo o poder tinha de estar nas mãos e pensamento das massas que laboram. A superação “revolucionária do capitalismo” somente se realizaria, com “a verdadeira democracia”xxv, a democracia insurrecional dos subalternos – como os russos já haviam demonstrado. Rosa Luxemburgo tinha lealdades (socialistas) inquestionáveis. (O que, talvez, esteja faltando para o conjunto da esquerda aqui e alhures…)


Notas

i Hannah Arendt tinha razão ao dizer que o “senso [de Rosa Luxemburgo] altamente desenvolvido quanto às diferenças teóricas e seu julgamento infalível sobre as pessoas, seus gostos e desgostos pessoais, impediram-na de reunir Lênin e Stálin indiscriminadamente sob quaisquer circunstâncias […]” [grifo meu]. Ver Hannah Arendt – Rosa Luxemburgo: 1871-1919, em Homens em Tempos Sombrios. Ed. Companhia das Letras.

ii Para os que conhecem, minimamente, os textos sabem que Lênin nas semanas anteriores à insurreição de outubro tinha ponderado a compreensão de Que Fazer?, de 1902; sua postura de ferrenha oposição aos círculos dirigentes do partido bolchevique que naquele momento específico não desejavam a revolução (Lênin dizia é “agora ou nunca”) e de apreender a subjetividade revolucionária entusiasmada dos sovietes é uma demonstração de circunspecção quanto à organização altamente disciplinada em contextos de luta de classes emergente. E além disso, contemporaneamente, não é ocasional que Susan Watkins, editora da New Left Review, tenha argumentado, em Nuevas Oposiciones, que “O novo Syriza estabeleceu uma estrutura partidária tradicional: um comitê central eleito, em que estavam representadas diferentes facções, uma secretaria e um grupo parlamentar, centrado em torno ao escritório de Tsipras […] [era um] centralismo democrático que Lênin haveria desprezado […]”, ver New Left Review, nº 98, 2016.

iii Ver Rosa Luxemburgo – Greve de Massas, Partido e Sindicatos. Ed. Kairós, 1979.

iv Ibidem.

v Ibidem.

vi Ibidem.

vii Ver Isabel Loureiro – Introdução – Rosa Luxemburgo: A Revolução Russa. Ed. Vozes, 1991.

viii Cf. Rosa Luxemburgo – A Revolução Russa. Ed. Vozes, 1991.

ix Os pontos do argumento de Rosa Luxemburgo eram consistentes, ainda que de compreensão problemática do quadro geral e específico da Revolução Russa: suas críticas eram que os camponeses se rebelariam no momento da nacionalização do campo, o que ocorreu anos depois, e que a autodeterminação permitiria às burguesias imperialistas que corrompessem as burguesias nacionais libertas para se voltarem contra a Rússia estabelecendo consequentemente um cerco militar contrarrevolucionário.

x É evidente que o tempo de revoluções naquela quadra histórica talvez não tenha permitido que Rosa tivesse realizado tais reflexões.

xi Ver Rosa Luxemburgo – A Revolução Russa. Ed. Vozes, 1991.

xii Ibidem.

xiii Ibidem.

xiv Ibidem.

xv Ibidem.

xvi Ver – Hannah Arendt, op. cit.

xvii Ver Rosa Luxemburgo – A Revolução Russa. Ed. Vozes, 1991.

xviii Ver – Rosa Luxemburgo – Assembleia Nacional ou Governo dos Conselhos, em O Estado Burguês e a Revolução. Ed. Antídoto, 1979.

xix Ibidem.

xx Ibidem.

xxi Ibidem.

xxii Ibidem.

xxiii Ibidem.

xxiv Ibidem.

xxv Ibidem.

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