Por que o carnaval de rua está sob ataque?

Ex-coordenador da festa que se enraizou na capital paulista explica o que levou vários blocos a cancelar os desfiles. E alfineta: boicote da prefeitura é ação conservadora contra uma manifestação cultural que reivindica o direito à cidade… e à folia!

.

Guilherme Varella em entrevista a Maura Martins, no Escotilha

Para entender mais sobre os impactos das questões relatadas pelos representantes dos blocos em reportagem publicada na Escotilha, conversamos com o advogado Guilherme Varella, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em 2015, Varella foi um dos coordenadores da política para o Carnaval de rua de São Paulo, criada durante a gestão de Fernando Haddad. Ele também é autor do livro Direito à folia – O direito ao Carnaval e a política pública do Carnaval de rua na cidade de São Paulo (editora Alameda), fruto de sua pesquisa de doutorado.

Escotilha » Na conversa com os representantes dos blocos, vários deles apontam a uma má vontade política dos gestores municipal para executar o Carnaval de rua deste ano, algo que teria ocorrido principalmente a partir da gestão de Ricardo Nunes. Você tem acompanhado essa situação? E qual é a sua avaliação?

Existe uma mudança da visão do poder público da Prefeitura em relação à importância do Carnaval de rua de São Paulo. De uns anos pra cá (a partir principalmente de 2017, mas sobretudo com o governo de Ricardo Nunes), a Prefeitura tem encarado o Carnaval como algo que atrapalha e desordena a cidade, e não como um ativo da diversidade cultural paulistana, com muitas manifestações que abarcam a cidade inteira

Essa mudança de visão proporciona uma crise da política pública voltada ao desenvolvimento do Carnaval de rua. Para se ter uma ideia, a Secretaria de Cultura deixou de ser o setor que coordena a política pública do Carnaval de rua. É como se uma política de medicamento deixasse de ser da Secretaria da Saúde, ou de livros escolares deixasse de ser da Secretaria de Educação.

Também acabou o diálogo com os blocos. Sem o diálogo, não se sabe quais são as demandas que eles têm, quais as reivindicações, a fim de prestar os serviços adequados. Ao invés de apoiar e valorizar os blocos de rua, o que tem acontecido é uma diretriz para que eles sejam cada vez mais coibidos e reprimidos.

Isso se dá de duas formas. A primeira é pelo aumento da burocratização na relação com os blocos, com cada vez mais exigências, penalizações e pedidos que os blocos não conseguem atender. A segunda é por meio da força policial atuando violentamente na repressão.

Além disso, por não haver uma política efetiva de financiamento do Carnaval, os blocos dependem efetivamente dos patrocínios, e as grandes marcas preferem apoiar poucos e grandes blocos que permitem ativação publicitária. A maioria dos blocos então não conta com dinheiro de patrocínio e nem pode contar com o recurso do poder público para sair às ruas.

Então o que vemos em São Paulo é a união da falha de gestão com a pouca visão sobre Carnaval de rua e a ideia de que o Carnaval mais atrapalha que ajuda a cidade. Isso tudo cria um cenário muito crítico aos blocos e eles começam a desistir de seus desfiles.

Outro fator apontado por eles é que o Carnaval não está sendo bem gerido pelas secretarias – sobretudo pela Secretaria de Cultura. E um dos sintomas desse descaso com a festa também tem a ver com ele ter sido deslocado para as Subprefeituras. Como você enxerga isso?

A Secretaria de Subprefeituras cuida da zeladoria, da engenharia urbana. A proeminência da dimensão cultural do Carnaval se perdeu, e é ela que deveria ditar as outras dimensões da festa: a econômica, a turística, a segurança pública. É por conta dessa dinâmica cultural que se organizam os serviços, a força policial e tudo aquilo que envolve os seus ativos.

Com a saída do Carnaval da Secretaria de Cultura, se perde também a ideia de uma política pública una, que serve para a cidade toda e que compreende que há uma diversidade muito grande na realidade dos blocos – grandes e pequenos, com intuito de lucro ou não, etc. A perda da compreensão cultural do Carnaval leva a uma falha crucial de gestão.

Além disso, jogar a administração dos blocos para setores que não fazem parte de uma política municipal íntegra de Carnaval promove uma “curralização” do Carnaval de rua: em cada região, ele passa a ser tratado de forma diferente, sem atender essa intenção de cidade.

Essa curralização tem sido vista do ponto de vista prático e não apenas simbólico: há uma tentativa de controlar esses blocos e imprimir uma exclusividade para os patrocinadores. Por conta disso, os blocos têm sido confinados a gradis, em uma contenção de uma festa que é livre e democrática. Isso está se perdendo na cidade de São Paulo.

Você participou do grupo que discutiu e institui novas políticas para o Carnaval de rua de São Paulo, na gestão Haddad. Pode-se avaliar que está ocorrendo um retrocesso em relação às conquistas anteriores? E isso realmente ocorre a partir da atual gestão da Prefeitura?

O Carnaval de rua está consolidado na cidade de São Paulo como manifestação cultural. Na verdade, ele sempre existiu de forma forte, ligado a uma tradição de samba, em bairros como Barra Funda, Bixiga, Glicério. A questão é que nunca havia um apoio e valorização do Carnaval de rua, algo que começou a acontecer a partir de 2013.

Hoje, as pessoas vivem plenamente o Carnaval em São Paulo. As pessoas não saem para viajar, ficam aqui, organizam seus blocos, há gente que vem pra cá pular o Carnaval. Ele é uma realidade. O que está em risco é a política pública que cuida para que o Carnaval seja exercido plenamente como um direito.

E o Carnaval é um direito porque é um conjunto de linguagens artísticas a que todos temos direito. Ele faz parte de nosso patrimônio imaterial, da nossa memória, da nossa conformação identitária histórica. Também faz parte da nossa liberdade artística e cultural, o que é um direito fundamental do artigo V da Constituição. Então o Estado não pode coibir esse direito.

Por fim, o Carnaval também é uma plataforma de direito à cidade, de reivindicação de um outro uso do espaço público, além de um direito de protesto. É uma manifestação política que nos é garantida por lei. A política pública então deveria servir para reduzir impactos, mitigar efeitos e conciliar todos esses direitos.

Em 2024, como a população da cidade enxerga o Carnaval?

A população de São Paulo enxerga o Carnaval de rua como uma realidade. Claro que uns gostam mais, outros menos, mas é uma expressão cultural importante da vida da cidade, e assim deve ser tratado.

É preciso dizer que o Carnaval de rua – que é uma incisão lúdica radical no território, que contesta esse modo de vida normatizado em que as pessoas usam a cidade só para morar e trabalhar – disputa um ethos de cidade. São Paulo cristalizou uma imagem de ser a cidade do trabalho, a locomotiva, a “cidade que nunca dorme”.

Mas o Carnaval também enuncia que São Paulo é a cidade que brinca, dança, tem lazer e alegria. Essa cidade também existe e convive com a outra. E cada vez mais a população se convence que é possível também ter essa outra vida mais alegre.

O que é preciso acontecer para que essa situação melhore em 2025?

É preciso retomar o Carnaval como um objeto de política cultural e um ativo da cultura paulistana. Ele precisa voltar a ser promovido, respeitado e valorizado em todas as regiões da cidade. Precisa deixar de ser criticado, desmoralizado e perseguido, como tem ocorrido nessa última gestão e nas anteriores.

Para isso ocorrer, a Prefeitura precisa compreender como se dá o Carnaval de São Paulo. Os blocos e os cordões são os protagonistas da festa, e eles precisam ter suas reivindicações atendidas. A principal delas é a desburocratização: o cadastro dos blocos precisa ser feito para organizar os serviços e não para perseguir.

É preciso também equilibrar a gestão financeira. Não é possível que só poucos e imensos blocos consigam patrocínio, e que a maioria dos blocos, que é formada pelos pequenos e médios, fique fadada à ausência de recursos financeiros para os seus desfiles.

Por fim, é preciso que haja uma radicalização na ideia de que o Carnaval é público. Não pode existir nenhum tipo de privatização do espaço público durante o Carnaval, para garantir que todo mundo possa pular em qualquer festa, mas não é o que está acontecendo hoje.

Mas o fundamental é que se volte a dialogar com os blocos de Carnaval. Esse diálogo, que foi interrompido, é fundamental para compreender a dinâmica da cidade de São Paulo para que o Carnaval finalmente aconteça.

Leia Também: