Pegadas: resistência brasileira em terras maias

Surpresa incomum: em plena Cidade do México, uma escola de capoeira e samba. Na dança, no batuque, no manejo do corpo, uma troca entre os países, a difusão e expressão da rebeldia negra, contradições e potências latino-americanas

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Por Roberta Traspadini, na coluna Pegadas

memória guardará o que valer a pena.
memória sabe de mim mais que eu;
e ela não perde o que merece ser salvo. (Eduardo Galeano)

Pegadas 3: minhas trilhas pela educação popular (México) – apresenta a experiência de conhecer o México Profundo que habita nos territórios populares da Cidade do México, a partir do encontro com o Grupo de Capoeira Angola Banda do Saci e o Projeto Expressão Popular.

São várias vozes, testemunhas vivas, da produção coletiva da beleza, narrados no vídeo. Lissete Picazo, Claudia Rios, Azul Islas, Guadalupe Carrasco e Marta Tapia reconstroem, após quase 20 anos transcorridos, a memória e a história forjadas pela cultura e a arte presentes em nossos trabalhos no cotidiano popular da cidade do México.

Banda do Saci

A vida, mesmo quando atrelada a causalidades estruturantes, também abriga casualidades. Ao chegar no México e alugar um quarto na colônia Condesa, da janela avistava-se uma placa: aulas de capoeira Angola. Imaginem o impacto. Após uma experiência angoleira de 1996-1998 em Uberlândia, inesperadamente esta aparecia em terras maias. À primeira hora do dia seguinte, já me encontrava entre ladainhas, berimbaus, rodas, coordenadas por Luiz Zuñega.

O casual virou causal ao conhecer o grupo Banda do Saci. Foram quatro anos de caminhar coletivo, entre uma relação amorosa permeada por conflitos e o encontro com diversos jovens que integravam ou passavam pelos processos do grupo.

Através da capoeira Angola, da dança e da batucada, outro México surgia, para além das zonas confortáveis do estabelecido circuito da indústria cultural ou do espaço acadêmico formal dos estudos na UNAM. Mariano Andrade, Claudia Rios e Luiz Garcia eram os principais expoentes do grupo.

Banda do Saci é vinculado à Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos de Mestre Curió (ECAIG). É impossível, ao tecermos um caminhar sob a condução de Mestre Curió, não remetermos nossos trabalhos à história das resistências negras na América Latina. Entre a cicatriz no rosto, a culinária preparada com axé, a manha narrativa de forma superlativa ao contar as histórias, e os silêncios que em muitos momentos habitavam nossas prosas, Mestre Curió revela-se como um grande e respeitável historiador brasileiro. E viaja socializando muitas histórias pelo mundo, com seus cantos e contos: Dona Isabel que história é essa/De ter feito a abolição/De ser princesa boazinha/Que libertou a escravidão/Tô cansado de conversa/Tô cansado de ilusão/Abolição se fez com sangue/Que inundava esse país/Que o negro transformou em luta/Cansado de ser infeliz…

A capoeira Angola tece, no mundo, um duplo movimento: 1) apresenta o Brasil no protagonismo das histórias das resistências dando voz e espaço real a muitos educadores populares negros não necessariamente reconhecidos no próprio país; 2) reforça o domínio fecundo da história oral, narrada nos cantos e ladainhas que abrem os espaços do jogo-arte: “Oi nos tempos de cativeiro, quando o senhor me batia, eu rezava pra nossa senhora, ai meu Deus, como a pancada doía.(…) Trabalha negro, olha negro trabalha, trabalha negro pra não apanhar”. Eis um paradoxo: no Brasil, esses homens e mulheres negros são trabalhadores excluídos pela lógica racial resultante do escravismo-colonialismo de nossa formação social, enquanto, no mundo, são mestres, doutores honoris causa, guardiões dos quilombos.

Nas apresentações públicas da capoeira Angola, do samba e das percussões, por diversas partes do México, outro Brasil afirmava-se, para além da propaganda midiática oficial: o Brasil negro, dos quilombos, da dança como manejo do corpo como resistência e rebeldia. A capoeira Angola e o samba narram, nos conflitos e contradições que os permeiam, potências formativas sobre a história sempre em disputa.

O projeto expressão popular

Da compreensão do papel da arte e da cultura no fomento da beleza, consolidamos o projeto Expressão Popular de 2001 a 2004. O objetivo principal era levar a capoeira, as percussões, a dança e outras expressões artísticas aos territórios populares, jogados à margem pela lógica sistêmica.

Aulas em albergues com jovens que vivenciaram múltiplos maus tratos, com destaque para a violência contra as crianças e as meninas; aulas embaixo da ponte, com jovens em situação de rua – destaque para Hilário (em memória), uma das pessoas que mais marcaram minha vida no atuar nas ruas da Progresso Nacional (quando pegava o pandeiro, ou o caxixi e, no seu ritmo, extasiava de alegria); em um espaço dentro do mercado popular da Progresso Nacional, com crianças filhas/os dos próprios trabalhadores do mercado e da região; e, nas praças e escolas públicas. Participamos de procissões à Virgem de Guadalupe, brindamos e consolidamos as festividades do dia de mortos (uma das mais ricas expressões populares de México) e desfilamos nas ruas mostrando o que fazíamos.

Nos trabalhos de Banda do Saci, o verbo transitivo fazia-se presente. A turma da Progresso Nacional (do projeto expressão popular) ia à UNAM, ocupava o auditório Flores Magón e Coyocán conosco, e a turma da UNAM adentrava o mercado e as regiões populares para trabalharmos coletivamente. Deste processo, produziam-se sínteses entre o acadêmico e o popular.

O México profundo que habita a colônia Progresso Nacional está presente naquilo que vivemos a partir da forma cuidadosa e respeitosa com que entramos neste lugar, e do conteúdo que, juntas/juntos, aprendemos a fazer, enquanto nos refazíamos. Expressão Popular foi uma escola de trabalho de base. Um festival de compromisso social com o popular, e nossas raízes populares. E uma revisão concreta sobre o papel da ciência no nosso cotidiano.

Projetar algo para realizar é fundamental. Mas viver o projetado é muito superior ao planejado. Esta experiência enraizou-se em muitas de nós para a vida.

A causalidade inicial constituiu uma causalidade: o trabalho com, para, desde o popular. Com isto, chegamos a muitos lugares, refizemos nossas próprias trilhas e recriamos nossos afetos. Também perdemos pessoas amadas ao longo do tempo: Hilário, Alicia, José Luiz. Mas seguem vivos em nossa caminhada. Com eles e elas rimos, choramos, zombamos da vida (chistes, albures), falamos sério e circulamos pelas ruas das cidades do México.

Este Pegadas é uma celebração aos encontros. Foram tão marcantes e tão profundos que seguem vivos, como verificamos nos relatos no vídeo. Há um tipo de família celular concebida a partir da lógica sanguínea. Há também um outro tipo: o da companhia, da camaradagem, do encontro para a produção coletiva de um sentido de vida que nos torne melhores como seres humanos. Foi isto o que significou Expressão Popular como trilha: a produção de um outro sentido de afetividade vinculado ao trabalho de base duro e certeiro. Com estes e estas jovens insistimos, resistimos e enfatizamos a beleza do encontro do México com o Brasil, nas trilhas da cultura popular. Como diz Brecht: amor é a arte de criar algo com a ajuda da capacidade do outro.

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