Para tempos ásperos, guerrilha comunicativa!

Visita a El Rodillo, coletivo de publicidade anticapitalista em Barcelona. Em sintonia com novos movimentos, e para furar bolhas, irreverência, apropriação do pop e ressignificação simbólica. E um alerta: a ultradireita quer ser moderninha

Cartas de denúncia para a revista “La Directa”. Alusão à ação da polícia catalã, que tentou se apropriar de amostras do DNA de “suspeitos”
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Por José Durán Rodríguez, no El Salto | Tradução de Simone Paz

O funcionário de uma lavanderia, com suspeita semelhança ao humorista Eugenio, tem de limpar o sobretudo de Montserrat Tura, uma ex-deputada socialista do Parlamento da Catalunha. Para realizar essa tarefa, cobra 420 euros e, para cobrir esses custos, é lançado um crowdfunding, projeto de financiamento coletivo. A vestimenta foi suja na ação de protesto “Aturem el Parlament”, [“Parem o Parlamento”] em Barcelona, no dia 15 de junho de 2011, e pela qual oito pessoas foram condenadas a três anos de prisão. As manchas do sobretudo ainda hoje esperam que o parocínio popular reúna aquela quantia absurda de dinheiro para serem limpas.

Na verdade, tudo isso aconteceu e também não aconteceu. Vamos abrir o jogo. “Fizemos um curta-metragem de ficção humorística acompanhado de uma estratégia nas redes para uma campanha antirrepressão, em vez de recorrer ao típico cartaz de denúncias”, explicam os responsáveis ​​desta iniciativa de comunicação. Realizada em 2016, ela procurava colocar de novo o assunto em pauta: fazer barulho, para que se falasse novamente do “Aturem el Parlament” e do pedido de absolvição aos condenados, que seria apresentado ao Ministério da Justiça. E fazer isso com humor e risadas, mesmo que o assunto fosse sério. Ambos os objetivos foram alcançados.

Hoje, os autores dessa ação se apresentam como Rodillo, uma agência de publicidade anticapitalista. De acordo com o que eles mesmos contam, seu negócio é fazer piadas irreverentes, criar filmes, tirar um sarro da extrema-direita, hackear plataformas e fazer memes. As palavras-chave para os parágrafos seguintes: publicidade, trollagem, memes.

“Com frequência, fazemos campanhas gráficas para movimentos sociais com uma linguagem mais direta: de cartazes a videoclipes”. Assim o pessoal da própria agência Rodillo começa a falar sobre sua atividade: multifacetada, sem assinatura e voluntariamente desvinculada do rótulo de arte política. “Estamos cientes de que são necessários tons diferentes para objetivos diferentes, e consideramos que não devem ser excludentes e que podem — e devem — coexistir em uma esquerda diversa, com metas e públicos diferentes também. Embora alguns deles possam ser encontrados na web — como pôsteres de palestras, anúncios ou as artes que fizemos para [revista catalã] La Directa –, geralmente, não costumamos reivindicar nossa autoria, porque não faz muito sentido e tampouco é algo que queiramos promover; já que, de fato, a confusão é melhor para nós”.

Campanha da greve de aluguéis, na Espanha

Dizem que o que mais lhes interessa são os modelos de comunicação complicados, mais “arriscados, mas ao mesmo tempo mais disruptivos e com maior potencial de comunicação”. Vamos tomar nota de mais um conceito-chave nesta matéria: guerrilha de comunicação.

“Uma das características da guerrilha”, descrevem, aprofundando-se no assunto, é “o uso dos códigos pop, das imagens do próprio capitalismo alteradas para atravessar essas esferas. Aliás, normalmente, trabalhamos com referências absolutamente populares como Pantomima Full [algo como um Porta dos Fundos espanhol]ara a campanha do Sindicato dos Inquilinos da Catalunha ou a série Mad Men para a do “Adéu Bcn!” [“Adeus, Barcelona], promovida por sindicatos de bairro e de habitação”.

O coletivo de guerrilheiros da comunicação aponta que também busca esse choque de mundos nas intervenções que desenvolve nas redes sociais, “pensadas para atravessar e expandir as próprias bolhas: a ideia é que o público participe das ações e que interaja com elas, não necessariamente a favor, até que essas bolhas estourem, abrindo linhas de fuga”. Como exemplo de sucesso, eles citam a farsa que criaram junto com a produtora audiovisual Metromuster no outdoor do filme “Ciutat Morta” no festival de San Sebastián. A peça foi viralizando desde a cumplicidade de contas próximas do Twitter até gerar um grande barulho que chegou aos ouvidos da mídia e dos responsáveis ​​pela TV3, “conseguindo que o filme fosse veiculado neste canal após meses de adiamento da produtora por motivos puramente políticos”. Outras vezes, admitem que “você não é capaz de furar a bolha, mas você sempre dá risada e isso também é sempre saúde para a resistência”. E assim chegamos em outros dois protagonistas desta história: os fakes e o riso.

Campanha contra precarização e rerpressão no Starbucks

As primeiras experiências de comunicação política dos integrantes do Rodillo eram relacionadas à contracultura, ao punk e ao movimento de ocupar, com seus canais e modos de operar: colagens, fanzines, rádios pirata, faça-você-mesmo. Essas formas foram a sua escola. Depois evoluíram para as técnicas da guerrilha comunicacional e do culture jamming — sabotagem cultural — dos anos 90 e da primeira década do século XXI, seduzidos pela dinâmica de comunicação do movimento antiglobalização, pela apropriação dos símbolos zapatistas e pelos discursos de outros coletivos que se utilizavam de recursos como o exagero, a simulação, a superidentificação, subversão de códigos ou invenções muito críveis para criticar o consumismo, os partidos políticos e as mensagens da mídia. Com suas diferenças, faziam parte dessa liga de práticas que causavam confusão — e que muitas vezes eram subestimadas como uma piada sem importância política — nomes como o da Fiambrera Obrera, os Yes Men, Luther Blissett/Wu Ming ou a revista Adbusters, analisados ​​naquele título indispensável que era o Manual da Guerrilla da Comunicação, publicado em espanhol pela editora Virus no ano 2000

“Inverter a linguagem do poder é uma virada muito poderosa na criação, é uma forma de responder desde o lugar da ironia, um processo de afirmação que requer poucos recursos. Aquele foi um momento de eclosão, e houve um ponto de inflexão, pelo menos no Estado espanhol, em que essas influências passam a gerar fenômenos como os coletivos guerrilheiros Las Agencias ou Yomango. Já passamos por esses grupos e também por outros como o Metromuster, que surgiu a partir do 15M e se concentrava no vídeo-ativismo e no cinema-documentário. Também colaboramos ocasionalmente com muitas pessoas que podem não ter essa formação, mas nos encontramos ao longo do caminho”, ainda relembram o pessoal do Rodillo.

Mas com suas intervenções eles vêm colhendo e reunindo todo esse aprendizado, atualizando suas estratégias, levando em consideração as mutações do ambiente comunicativo e os movimentos do grande capital. “Pensando na rapidez com a qual devemos reagir na resistência cultural, considerando o ritmo em que as coisas andam, paramos por um momento e decidimos que se há táticas que se tornaram obsoletas. Por exemplo, todas as ações fake ativistas feitas no Twitter logo após o 15M, coletadas no vídeo The Troll Face, podem nos ajudar a propor ou desenvolver novas abordagens de comunicação — porque agora seriam inócuas ou até mesmo contraproducentes entre tantas fake news”.

Meme contra a invasão das cidades espanholas por turismo predatório

Em Rodillo, cria-se, mas também preserva-se, e se procuta constituir uma espécie de arquivo das práticas comunicativas desenvolvidas na última década, para além de suas próprias ações, já que muitas foram desenvolvidas de forma coletiva e anônima. “Desde o surgimento das redes sociais, a comunicação se acelerou, tendendo praticamente ao presente, ao modo direto. As imagens, hoje, são fantasmas que aparecem e desaparecem e talvez seja por isso que constituir uma memória por meio do arquivo das lutas culturais tornou-se mais necessário do que nunca. Essas ações não farão parte de nenhum relatório oficial, por isso sentimos a necessidade de compilar alguns dos trabalhos que fizemos ou com os quais temos colaborado”, resumem.

O dia em que a Contracultura morreu

Em setembro de 2003, a revista Adbusters começou a vender o tênis esportivo Black Spot, projetado e comercializado pelos ativistas contrapublicitários. Foi o momento no qual, segundo Joseph Heath e Andrew Potter, autores de The Rebel Sell (“O que é rebelde, vende”), ficou claro que a rebelião cultural, proposta pela Adbusters, não representa uma ameaça ao sistema, mas é o antissistema por definição. “Como poderia ser transgressor vender calçados esportivos?”, perguntavam-se retoricamente os dois pesquisadores em um exemplo que resumia a polêmica tese central do livro: que nunca houve um confronto entre a contracultura e a ideologia do sistema capitalista e que, desde o momento em que nasceu, a contracultura sempre teve um espírito empreendedor.

Heath e Potter denunciavam que as intervenções sobre o simbólico parecem não ter capacidade de transformação num sentido progressista. Nos últimos anos, ficou provado que a gramática contracultural pode ser uma ferramenta válida e eficaz para a disseminação de ideias conservadoras e reacionárias. A nova direita descobriu a semiótica, como podemos ler em “Leia, Rihanna & Trump” (2019), ensaio assinado pelo Projeto UNA que se debruça sobre os movimentos culturais mais relevantes dos últimos cinco anos e analisa os ambientes que levaram ao surgimento de poder de líderes autoritários como Trump ou Bolsonaro. Em suas páginas, aponta-se que a estratégia mais eficaz da alt-right — a direita alternativa, termo usado para a extrema-direita do século XXI nos Estados Unidos — continua a ser a reapropriação de símbolos aparentemente pacíficos, de estéticas infantis que são universais (desenhos animados, videogames, quadrinhos…), e ressignificar essa cultura popular para fazer com que a sua ideologia reacionária pareça inofensiva.

“Difundir ideias racistas e machistas através de memes nas redes sociais e mensagens virtuais torna-se muito mais eficaz do que qualquer outro meio de doutrinação”, dizem eles, sublinhando que não devemos esquecer que por trás de tudo isso “existem interesses políticos, corporações transnacionais  e grandes empresas publicitárias que lucram com a circulação maciça dessas ideias”.

Peças experimentais brincando com títulos da mídia empresarial espanhola

Questionados sobre os motivos pelos quais a extrema direita atual estaria utilizando práticas comunicativas desenvolvidas pela esquerda contracultural, o Proyecto UNA, que se define como uma coletividade millenial, cujo objetivo é desmascarar as novas formas do fascismo, destaca o caráter parasitário deste: “Ele nunca conseguiu criar coisas novas, mas se dedicou a roubar ou reinterpretar mitos e símbolos do passado e da cultura popular. A estética fascista sempre esteve a reboque da esquerda, como pode-se perceber claramente ao analisarmos a propaganda de ambos os lados durante a guerra civil [espanhola], ou na estética atual do fashwave, que nada mais é do que uma apropriação do movimento artístico do vaporwave”.

Em 2018, Angela Nagle publicou “Morte aos Normies” [“normie” refere-se a pessoas que usam mídias sociais populares e acreditam no senso comum], livro traduzido para o espanhol pela Orciny Press, onde ela indicava os nomes próprios e a dinâmica pela qual uma subcultura extremista, confinada à marginalidade, acabou permeando grandes camadas da população norte-americana, em algumas mídias e até na própria Casa Branca. Na época, Nagle disse a El Salto: “A ideia de que a vanguarda ou o radical são necessariamente de esquerda vem da maneira como entendemos as subculturas”, contando com o fato de que, para ela, ser provocador é uma ideia que já viveu dias melhores. “É hora de bani-la, desde o mundo da arte até a cultura pop. A vanguarda acabou. O desejo de ser um indivíduo único e diferente da norma é uma ideia muito manjada”. Nagle também expressa uma certa autocrítica sobre a crença numa capacidade emancipatória da internet: “Nossa ciber utopia muitas vezes nos faz supor que os movimentos online serão sempre de libertação”.

Na Rodillo confirmam que nos últimos tempos houve uma apropriação dos códigos e metodologias tradicionalmente utilizados pela esquerda, como memes ou fakes, mas também apontam diferenças significativas: “O fake tem sido usado pela esquerda como tática para atravessar a esfera pública e a grande mídia, especialmente antes ou nos começos da internet, até o surgimento dos primeiros anos do Twitter, o 15M e a Primavera Árabe. Agora, a extrema direita enche as redes de fake news, mas há uma diferença. É do interesse da esquerda rebelde que o que é falso seja revelado, porque isso lança luz sobre os fatos e coloca os próprios meios em xeque. A extrema direita não liga para isso. Outra diferença é que as fake news são feitas por agências e há muito dinheiro envolvido, existem lobbies”.

Campanha contra a especulação imobiliária em Barcelona

O Projeto UNA identifica esse ponto de inflexão por volta de 2010, quando as pessoas começaram a falar da “manosfera” (do inglês “man”, “homem”, e “esfera”) na internet. Também menciona a importância do 4Chan, um fórum anônimo que, apesar do seu potencial transformador, acabou virando um pântano de ódio para a extrema direita se esbaldar. Suas interações, caracterizadas por uma lógica de “vale tudo em nome da piada”, acabou sendo uma porta de entrada para o mais terrível machismo e racismo. Em “Leia, Rihanna e Trump” isso fica claro: “O 4Chan, nadando contra a corrente, conseguiu penetrar precisamente em nossa forma de ver o mundo como poucas criações digitais tiveram sucesso. Pelo fato dem os participantes deste fórum se enxergarem como perdedores, excluídos de um mundo que os rejeitava pela sua personalidade e hobbies, decidiram assumir o papel de “agitadores” sem nada a perder. Eles conseguiram redefinir e fixar o conceito de trolling: criando metade das piadas e do tipo de comunicação que ainda usamos hoje, os memes. Em última análise, seviram de berço para o Anonymous, entre outros movimentos. Hoje em dia, é impossível falar da internet sem falar na influência do 4Chan”.

No Proyecto UNA lembram que no início daquele fórum havia elementos subversivos, e de certa forma vanguardistas, em sua abordagem dos modos de produção cultural — autoria compartilhada, gosto pela remixagem e colagem, um aparente antiautoritarismo e a rejeição às lideranças escancaradas. Mas lamentam que o ressentimento, a inveja e a desconfiança tenham prevalecido, para dar lugar a um monstro.

Olhando para um futuro mais imediato, esses ativistas consideram que é necessário criar um imaginário e ter referências na ficção, mas também investir tempo e recursos para entender “como funcionam as grandes plataformas de vídeo e streaming e decidir conscientemente se queremos estar lá e de que forma”. O pessoal do Rodillo se propõe a investigá-los “não só para saber como usá-los, mas para hackeá-los o máximo possível. Se as fakes que foram feitas no Twitter, em 2011, hackeavam o próprio Twitter para criar contas falsas, agora teremos de procurar outras formas de contornar essas plataformas”.

O Projeto UNA recomenda fugir do dogmatismo e experimentar novos canais e formatos — e para isso, considera essencial a observação “do que a moçada anda fazendo, porque há muitos jovens criando conteúdos de altíssima qualidade com um discurso anticapitalista e feminista. A lacuna existente entre algumas dessas pessoas e os movimentos sociais do bairro é algo que em algum momento terá que ser resolvido”. E alerta, a título de síntese e conclusão, sobre os riscos de confiar na iniciativa política como mera questão de imagem: “Uma estética antissistema sem conteúdo e sem proposições, é muito perigosa; um bom exemplo disso é a luta contra as mudanças climáticas, onde temos que lutar e fazer um discurso para que não se transforme em capitalismo ou até mesmo num fascismo verde”.

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