O que se pode perder com o MediaLab-Prado

No coração cultural de Madri, um laboratório de prototipagem e invenção social – aberto, acolhedor e desmercantil – destoa do turismo previsível e da formalidade dos museus. Como funciona e por que a direita, no governo municipal, quer desalojá-lo

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Por Antonio Lafuente | Tradução: Antonio Martins

No final de fevereiro, a prefeitura de Madrid desencadeou um conjunto de ações contra o experimento notável do Medialab-Prado (MLP), descrito no texto a seguir. Primeiro demitiu o seu diretor, Marcos García, que o coordenava desde 2014. Agora, todo o centro está sendo desalojado de seu espaço, para que ali seja instalado um Museu Municipal de Arte Contemporânea, por meio de um processo pouco transparente e que ignorou totalmente a comunidade afetada. A interferência do poder público desfaz de um projeto sustentável e criativo. De quebra, arrisca perder a chance de ver toda a chama “área do Prado” transformada em Patrimônio Cultural da Humanidade, já que MLP fazia parte do projeto apresentado à Unesco, como pretensão do próprio município.

Uma grande campanha internacional, denominada “We Are The Lab”, avança na internet e ultrapassou as fronteiras da própria Espanha. Criado em 2000, o Medialab- Prado é um laboratório cidadão que tem como centro de produção de projetos culturais abertos. Significa que qualquer cidadão pode compor grupos para realizar suas ideias de forma colaborativa, associando ciência e trabalho, discutindo os temas mais variados. Ele é um programa da governança das Artes, Desporto e Turismo da Câmara Municipal e está instalado na Serrería Belga, um prédio industrial cuja arquitetura foi revigorada para recebê-lo, no centro da cidade, junto ao Paseo del Prado, desde 2013. Por sua importância como centro de inovação social, o MLP ganhou o Prêmio Princesa Margarita dos Países Baixos concedido pela Fundação Cultural Europeia em 2016. (

Tristear é caminhar para trás, não encontrar o tom de uma canção e não se atrever a dizer tristeza. Não está nos dicionários. Tristear é sentir-se só sabendo estar acompanhado. E assim me sinto ao saber que o MediaLab-Prado vai se desvanecer. Somos muitos os que queremos fazer algo e nos solidarizamos dando-nos consolo recíproco. Mar quero explicar, aos que ainda não se deixaram afetar, por que estamos tristeando ou, em outros termos, por que será impossível destruir seu legado, ainda que bombardeiem a serraria belga que o alojava

Como centro cultural, o MediaLab-Prado sempre foi muito singular. Em algum momento, sei diretor, então recém-chegado, decidiu que em vez de um espaço de exibição, seria de produção. As consequências foram impressionantes. Imaginado como um lugar para mostrar a obra de autores consagrados, dedicou-se, em vez disso, a promover projetos experimentais colaborativos. Deixou de ser um lugar para afamar e converteu-se num território amateur: um espaço para os amantes do impossível, o improvável e o inaudito. Um lugar habitado por gente anônima, curiosa e descredenciada. Um centro, aliás, onde ninguém tinha credenciais: o único que importava era o que podia aportar. Como os consagrados costumam ser gente de mais idade, desapareceram e foi um território jovem, mesmo que não faltassem as cãs.

Se alguém não tinha o que aportar, mas muito que aprender, o MediaLab-Prado também podia ser um paraíso. A hospitalidade sempre foi a regra de ouro. Isso implica muita inteligência emocional, mas a novidade é a forma em que se intraestruturaram os cuidados. Os projetos, por exemplo, eram selecionados por meio de convocatória internacional, mas, algo menos frequente, os colaboradores de cada projeto identificavam-se por outra convocatória aberta. No MediaLab-Prado, todxs éramos pares e podíamos ser partes. Qualquer pessoa podia propor uma iniciativa, pois as únicas condições para que fosse aceita é que criasse comunidade a seu redor, e que os resultados fossem compartilhados.

A noção de aberto sempre foi constitutivo. Aprendemos isso com os hackers, que só ganham a condição de autor quando revelam seu trabalho – um ato que converte a publicação em uma doação. Os hackers, por sua vez, aprenderam com os cientistas, que sempre atuaram assim até que as leis de propriedade intelectual animaram-nos a consid3erar a originalidade uma estrada que conduzia à propriedade. Os hackers converteram a prática comum de publicar numa ação cheia de conotações jurídicas, políticas e culturais, que chamam de “revelar o código”. Parece muito com publicar, mas não é o mesmo, pois um hacker autoriza que sua produção possa ser acessada, editada, modificada e publicada – com a única condição de que o resultado também seja livres. É fácil compreender o propósito desta prática: tornar o livre viral, pois contagiava com estes espírito tudo o que que contactava – e o convertia em livre. Assim foi sempre a ciência, antes de que obcecar com os delírios nacionalistas, ao retornos econômicos e as métricas do impacto. O conhecimento não precisa ter pátria, dono ou autor. O conhecimento pode ser de todxs.

Quando dizemos aberto, não estamos apenas evocando os imaginários da propriedade. Também apelamos a tudo o que nos conecta com os saberes plurais e interdisciplinares e com os coletivos heterogêneos. Aberto a tudo e a todas. As consequências são admiráveis, porque um coletivo de tais características tem que se configurar como uma comunidade de aprendizagem, cuja primeira urgência é construir um espaço comum que favoreça o intercâmbio. Por isso, o primeiro que um usuário do MediaLab-Prado aprende é escutar. Não é fácil, porque na academia somos treinados para diagnosticar, e pouco ou nada aprendemos de como afetar e nos deixar afetar pelo diferente, o anormal e o singular.

Os que defendemos o MediaLab-Prado amamos vê-lo como uma ateliê de prototipagem e como uma incubadora de comunidades. Os imaginários do empreendedorismo eram questionados por muitos motivos, impossíveis de resumir. Um empreendedor tende a ver o mundo como uma constelação de problemas aguardando uma solução, uma atitude que com frequência leva a simplificar excessivamente as coisas. Na cultura do empreendimento nunca há muito tempo e se privilegiam as soluções rentáveis, diante das sustentáveis ou humanitárias. Mutos empreendedores aceitam sem discussão que o mundo é como é e que nada podemos fazer para mudá-lo. Por isso, no MediaLab-Prado nos sentíamos satisfeitos de experimentar que a abertura a todos e a tudo ajudasse a criar comunidades mais inclusivas, mais empáticas e, em consequência, mais críticas. E ser crítico não equivale a estar mais pronto ou agir mais rápido, mas a ser mais afetivo e aberto.

Quem visitou o MediaLab-Prado viu muita gente trabalhando em grupos reduzidos, com intensidade inusitada e gestualidade vibrante. Soube que queria pertencer a este mundo, desde a primeira vez que o vi. E tive dois mestres que me ajudaram a entendê-lo: Marcos Garcia e Tiscar Lara. Eram muito jovens, porque ali os professores têm vinte anos menos que os aprendizes. E sei que não é fácil acreditar, e que minhas palavras podem parecer um elogio beato. Mas não é. Reportam algo que vivi milhares de vezes. A estes ambiente de trabalho chamávamos ateliê de prototipagem. Era um espaço de produção e por isso gostávamos da noção de ateliê. E pouco a pouco aprendemos a compreender a palavra protótipo. Um protótipo é algo tentativo, inacabado e imperfeito, construído coletiva e experimentalmente. Mas esta condição de objeto provisório, longe de habitá-lo como uma carência, a sentíamos como potência, pois continha um convite para que outras pessoas o alterassem, o redesenhassem ou o redirigissem. O segredo é mantê-lo sempre aberto, pois ninguém tem o poder de fechá-lo e ninguém é dono.

Prototipar, portanto, é muito mais que buscar soluções para os problemas. Prototipar é aprender a escutar o que os outros pensam e incorporar parte do que escutamos ao projeto. Quem prototipa não está obcecado por encontrar a melhor solução, mas apenas aquela que é possível aceitar, a que se faz possível nas circunstâncias reais presentes. E não os preocupa por dois motivos: um, porque as melhoras vão chegando conforme incorporamos novos atores e outros pontos de vista; e dois, porque ao publicitar coisas imperfeitos, podem-se acelerar os processos cognitivos e incorporar mais talentos. Prototipar, então, é uma forma de aprender a viver juntos, e isso explica a intensidade afetiva dos intercâmbios interpessoais no MediaLab-Prado.

O MediaLab-Prado é um espaço de aprendizagem singular. Basta um simples passeio por sua web para ver a enorme variedade de temas abordados. São tantos e tão distintos que provavelmente ninguém sabe com precisão o que se passa. Todo mundo anda conspirando e logicamente se produzem sinergias, que nenhum outro espaço cultural que eu conheça pode garantir. Não importa quão excêntrica seja a loucura que alguém quer desenvolver, com certeza encontrará outras e outros que desejaram fazer companhia. Tudo será tão artesanal, barato e tentativo que o momento de criação coincide com o de experimentação. Não há um plano ou um protocolo a seguir: o objeto produzido e o protocolo pra produzi-lo de coproduzem um ao outro recursivamente. O MediaLab-Prado está coalhado de momentos Eureka, e por isso há um ambiente tão festivo, porque à alegria de contribuir soma-se a de aprender.

E, sim! – a ninguém incomoda a denominação laboratório, como tampouco a de centro de inovação social. E aqui quero me deter outro minuto, porque desmantelar o MediaLab-Prado é colocar em risco todo o ecossistema de inovação da cidade. Os gestores querem que haja rios navegáveis por onde circulem navios repletos de mercadorias. Têm todo um sistema de indicadores que medem caudais, tonelagens, licenças e retornos. Mas para que haja rios navegáveis, é necessária a afluência de milhares de riachozinhos, acima da montanha, que não têm nome nem estão nos mapas, mas aportam quantidades intangíveis de caudal. Para estes fluxos não há indicadores claros, e quem fale em seu nome é provável que minta. É quase certo que seja um farsante.

Não há inovação sem aprendizagem e experimentação. E nunca teremos rios navegáveis se não protegermos toda a bacia, cuidarmos das margens, protegermos a vida selvagem e animarmos as formações híbridas, as condutas rebeles e as coreografias sutis.

Poderia ter falado da projeção internacional do MediaLab-Prado, de seu reconhecimento, apoios e ressonâncias. De seus aliados e prêmios. Poderia ter justificado sua continuidade mostrando sua popularidade ou impacto. Mas quis escrever em chave mais pessoal, e portanto mais política. Quis explicar por que o MediaLab-Prado configura um novo paradigma cognitivo: uma peça única de ourivesaria institucional, dificilmente replicável, porque não é um lugar ao qual se posa ir. O MediaLab-Prado é sua comunidade, é entre todxs, existe em rede e representa um novo estilo de vida. E por isso tristeamos, porque caminhamos ao revés e não nos basta estar acompanhados.

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