O teatro que vasculha traumas coletivos

A história do Tiempos Nuevos, grupo salvadorenho fundado há 30 anos por camponeses rebeldes e padres da Teologia da Libertação. Sua hipótese: pela educação popular é possível combater injustiças e cicatrizar as feridas da guerra civil

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MAIS:
Este texto integra o livro Por todos os caminhos — Pontos de Cultura na América Latina, de Célio Turino, lançado neste ano pela Editora Sesc. Vou pode adquiri-lo aqui. O autor, ex-secretaria da Cidadania Cultural do Ministério da Cultura (2004-2010), foi um dos idealizadores do Programa Cultura Viva. Outras Palavras republicará, toda segunda, uma série de textos do livro. Para ler outros textos da série, aqui

“Com esse povo não me custa ser bom pastor”

(Dom Oscar Romero)

Cuzcatlán, terra de preciosidades, em idioma nahuatl. Cuzcatlán, nome originário de El Salvador, país na América Central, com área de 21 mil quilômetros e pouco mais de 6 milhões de habitantes. Nesse lugar pequeno, abundam joias raras, dessas lapidadas pelo tempo e a aspereza da terra bruta.

Em um país dominado por terratenientes, latifundiários, com os direitos dos indígenas, camponeses e mulheres absolutamente desprezados, surge uma mulher, indígena e mãe solteira, Prudencia Ayala, uma joia rara. De família humilde, em 1930 é a primeira mulher das Américas a postular a Presidência da República, isso quando o direito ao voto nem era assegurado às salvadorenhas, que só vieram a obtê-lo em 1950. Antes disso, Prudencia foi escritora, poeta e jornalista, havendo fundado o jornal Redenção Feminina. No discurso de apresentação de sua candidatura, ela declara: “O homem e a mulher formam o casal do mundo: os dois formam a casa, os dois formam a sociedade, os dois devem formar o conceito de cidadania e constituir as leis democráticas contra a escravidão, os dois devem formar o governo”.Apesar de poetisa e autora de vários livros, era tratada como “A Analfabeta” pelos jornais locais. Ridicularizada e considerada louca, Prudencia empreende batalha judicial para garantir sua candidatura, ao final impedida pela Suprema Corte. Seu programa previa a união centro-americana, o rechaço às intervenções dos Estados Unidos nos países da América Central, direito de voto às mulheres, equidade, igualdade, reconhecimento legal dos filhos de mães solteiras, respeito aos sindicatos e honradez na administração pública. Sua corajosa campanha, em candidatura não reconhecida oficialmente, antecede as revoltas camponesas de 1932, das quais Farabundo Martí foi líder e mártir. À época, um dos poucos intelectuais a defender a postulação de Prudencia, o jornalista Alberto Masferrer já previa:

Prudencia apresenta um sério problema jurídico aos nossos legisladores, não lhes restando outro caminho que não seja reformar a Constituição para assegurar o direito à cidadania plena às mulheres. Ou dormir em uma longa siesta.

Dormiram, assim como a história de Prudencia Ayala, olvidada por décadas.

Por décadas, a história de El Salvador tem sido a história dos silêncios e dos silenciamentos. Passados quase cinquenta anos, em 1977, um padre jesuíta, Rutilio Grande, é emboscado ao lado de dois camponeses, Manoel Solórzano e Nelson Lemus, todos assassinados. Ele desenvolvia ação missionária junto a comunidades camponesas e foi executado por esquadrões da morte a serviço da mesma classe de terratenentes que ridicularizara a postulação de Prudencia Ayala. Filho de família oligarca, Rutilio se colocou a serviço dos oprimidos, defendendo camponeses expulsos de suas terras e com lideranças assassinadas. Em suas palavras, o que ele pretendia:

Queremos ser a voz dos que não têm voz para denunciar todos os abusos contra os direitos humanos. Que a justiça seja feita, que não fiquem impunes os criminosos, que se reconheça quem são os criminosos e que se dê uma indenização justa para as famílias que ficaram desamparadas.

Atribui-se ao assassinato de Rutilio Grande a conversão de dom Óscar Romero à causa de seu povo. Três dias antes da execução havia ocorrido reunião entre dom Romero, recém-empossado na função de arcebispo, com parte do clero salvadorenho; nesse encontro, Rutilio Grande o interpela: “Monsenhor, eu tenho muitas ovelhas que estão no monte, mas se o senhor diz que não há perseguição, terei que lhes dizer para que baixem ao vale. Não vou fazer isso”. Tão logo Rutilio é assassinado, a polícia e o exército, no lugar de investigar, ocupam a igreja em que ele era pároco, na cidade de Aguilares, transformando-a em quartel. Dom Romero, ao saber da chacina, desloca-se imediatamente para Aguilares e passa horas escutando histórias de sofrimento daquele povo que encontrara em Rutilio a sua voz. Romero também era originário de família oligarca e, como Rutilio, ao longo do sacerdócio foi se colocando a serviço dos oprimidos. Pela forte suspeita de que os assassinos tinham vínculos com o governo central, a partir daquela data (12 de março de 1977), o arcebispo nunca mais participou de atividades religiosas junto ao governo. No domingo seguinte ao massacre, cancela todas as missas do país e convoca os fiéis a celebrarem uma única missa na catedral em San Salvador, em homenagem a Rutilio Grande. Junto ao arcebispo, 150 padres e mais de 100 mil pessoas reunidas. Aos fiéis, Romero declara:

O padre Rutilio Grande era como um irmão para mim. Em momentos culminantes de minha vida, ele estava muito perto de mim e nunca esquecerei tais gestos, mas o momento não é para pensar pessoalmente, e sim para recolher deste corpo uma mensagem para que todos nós sigamos peregrinando. […] O verdadeiro amor pela igreja e o povo é que fez com que Rutilio Grande e os dois camponeses fossem martirizados. Assim amou a Igreja, morre com eles e os apresentou para a transcendência do céu.

Outra joia rara de Cuzcatlán, Rutilio tinha por objetivo fortalecer “pequenas comunidades vivas de mulheres e homens novos, conscientes da própria vocação humana, capazes de se tornarem protagonistas do seu próprio destino individual e social; alavancas de transformação […] pois a criação é uma mesa comum com toalhas largas para todos”. Um pequeno país com um povo valente e generoso, lutando para oferecer uma mesa comum com toalhas largas para todos.

Nove de março de 2017, piso pela quarta vez no solo de Cuzcatlán, quarenta anos após o assassinato do padre Rutilio. Esperando no aeroporto, Julio Monge, professor basco que, nos anos de 1980, decidiu mudar-se da Espanha para El Salvador para oferecer atividades artísticas e de Educação Popular nas áreas libertadas pela guerrilha da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN). No caminho, ele conta com entusiasmo sobre seu novo projeto: organizar orquestras juvenis em prisões para meninas e meninos em conflito com a lei. É uma conversa em disparo: “Priscila toca violino muito bem! É como uma filha para mim, será libertada no domingo. Virei buscá-la e ela poderá seguir em frente, pois agora tem um projeto de vida”. A sensação de vitória estampada no rosto dele tem razão de ser, pois, apesar de a guerra civil ter sido deixada para trás, El Salvador segue como um dos países mais violentos do mundo, com o registro de 5.278 homicídios em 2016. Antes de seguir para Los Ranchos, o pequeno município em que o Tiempos Nuevos Teatro tem sede, pernoite em pensão próxima à Universidade Nacional. A pensão serviu de “aparelho” para abrigar reuniões do Partido Comunista no período da clandestinidade e, até hoje, segue administrada por Alma e seu marido, médico e poeta da “geração comprometida”, quando jovens universitários dos anos de 1960-70 impulsionaram a resistência às injustiças e desigualdades no país. Uma pequena pensão que é museu, com quadros e cartazes revolucionários, livros de poesia, história e política.

Na manhã seguinte, percurso pela capital, San Salvador.

Primeira parada: Jardín de Rosas, na UCA El Salvador, uma universidade católica. Esse jardim foi regado com o sangue de seis padres jesuítas e duas mulheres, a mãe, Elba Ramos, que cuidava da casa pastoral, e sua filha, Celina. Os padres mártires: Ignacio de Ellacuría, reitor da Universidade, Segundo Montes, diretor do Centro de Direitos Humanos, Juan Ramón Moreno, diretor da biblioteca, Armando López, professor de Teologia, Joaquín López y López, fundador da universidade, e Ignacio Martín-Baró, vice-reitor e psicólogo social. Ellacuría era um dos principais artífices do acordo de paz entre o governo salvadorenho e a guerrilha e, entre os termos do acordo, estava a exclusão de militares ligados a atrocidades e massacres. No interior do governo havia setores que resistiam à paz. Coordenados pela agência de inteligência do governo estadunidense, a CIA, em 16 de novembro de 1989, uma unidade antiterrorista invade a universidade e executa os jesuítas à queima-roupa, com armas de alto calibre. Por 25 anos, o caso ficou sem solução, até que a juíza norte-americana Kimberly Swank profere sua sentença, isso por causa do comprovado envolvimento de instituições de Estado do país. Na sentença, foram declarados terroristas o coronel Orlando Montano e mais vinte militares. À época, Montano era vice-ministro da Defesa, estando no comando da polícia e da Guarda Nacional, tendo sido formado e treinado na Escola das Américas em Fort Benning, Geórgia, instituição das Forças Armadas dos Estados Unidos, mesmo país para o qual foi extraditado em 2016 e onde cumpre sentença. O coronel também fora aluno da UCA, tendo assistido aulas de alguns dos padres que assassinou.

Entre os mártires assassinados, Martín-Baró, precursor de conceitos-chave para a cultura viva e a cultura do encontro. Como psicanalista social ele buscava colocar o saber psicológico “a serviço de uma sociedade em que o bem-estar ‘de los menos’ não se assente sobre o mal-estar ‘de los más’, em que a realização de uns não se assente sobre a negação dos outros, em que o interesse dos poucos não exija a desumanização”. Martín-Baró promoveu uma profunda reflexão sobre a psicologia comunitária, buscando compreender, a partir da análise dos fatos, como se formam as ideias, formas de organização e modos de ser no contexto da situação de vida do povo, inseridas no tempo histórico.

Uma psicologia comunitária precisa compreender como o povo vive, e sobrevive, sempre a partir de suas problemáticas psicológicas, culturais e estruturais, e isso se dá a partir da vivência e da potencialização do fazer comunitário. Baró afirmava:

Enquanto os povos não contarem com poder social, suas necessidades serão ignoradas e sua voz, silenciada. Por isso, como psicólogos sociais devemos contribuir para fortalecer todas as mediações grupais […] que tenham por finalidade representar e promover os interesses das classes majoritárias […], pois de nada serviria uma conscientização sobre a própria identidade e sobre os próprios recursos, se não se encontrarem formas organizativas que levem ao âmbito da confrontação social dos interesses das maiorias populares.

Como base teórica para essa psicologia da libertação, Martín-Baró apresentava três tarefas: a) recuperação da memória histórica, para extrair lições a partir da experiência e das raízes da identidade; b) desideologizar a experiência cotidiana a partir do senso comum transmitido pelos meios de comunicação de massa, com forte componente enganador e manipulador; c) trabalhar exaustivamente para potenciar as virtudes dos povos. Quando desenvolvi a teoria para o programa Cultura Viva e os pontos de cultura, no Brasil, eu não conhecia os pensamentos de Martín-Baró, mas tão logo apresentado a eles, percebi a semelhança entre as ideias, como se houvesse uma simbiose. Em minhas outras viagens ao país eu ainda não havia passado por lá, nem reverenciado o Jardín de Rosas. A ideia do jardim foi do viúvo de Elba, a cuidadora da casa pastoral; enquanto ele viveu, por todos os seus dias, cuidou para que as rosas florescessem.

Próxima parada: Monumento a la Memoria y la Verdad. A história de um povo, o rosto de sua gente, seus nomes, seus sonhos. Vinte e cinco mil nomes registrados em um muro de granito negro, com 85 metros de extensão. Um memorial aos mortos, organizado ano por ano. Crianças, meninas e meninos, vítimas, combatentes, todos reunidos cuidadosamente pela sociedade civil de El Salvador. No memorial estão os nomes de apenas um terço do total de assassinatos cometidos no período da guerra civil, sem contar os desaparecidos. Um monumento idealizado, organizado e realizado pelo povo, incluindo a arrecadação dos recursos. “Um memorial para o Encontro, para nunca esquecer, para honrar a Memória, devolver a dignidade, não permitir que o horror se repita e sentar as bases para uma cultura de paz e de verdadeira reconciliação” é o que está expresso na lápide gigantesca. Memória e verdade expressas em monumento no Parque Cuzcatlán.

Tiempos Nuevos Teatro

Seguimos para o departamento de Chalatenango e a comunidade San Antonio Los Ranchos. Município com pouco mais de 1.400 habitantes, é onde está situada a sede do Tiempos Nuevos Teatro (TNT). A hospedagem foi em casa confortável, construída com recursos enviados por um natural da cidade, que migrou para os Estados Unidos; por estar vazia, o TNT a aluga a baixo custo, e assim pode oferecer hospedagem aos visitantes. Ao amanhecer, banho em balde (há muita falta d’água no país) e visita ao Centro Cultural Jon Cortina.

Jon Cortina foi padre jesuíta e professor de engenharia na UCA El Salvador; coube a ele substituir Rutilio Grande na paróquia de Aguilares, ainda em 1977. Novo processo de tomada de consciência. Assim como Óscar Romero, que estudara em Roma, Jon Cortina era um intelectual com sólida formação acadêmica, mas o contato dele com os pobres se dava através dos livros. Na substituição a Rutilio, Cortina descobre que

a única forma de saber sobre a vida dos pobres é quando te juntas com eles, e quando está com eles, e quando os acompanha. Se a pessoa vai a uma comunidade colocando-se como um ser superior a eles, possivelmente irão aceitar e respeitar a pessoa. Mas a pessoa não vai aprender nada. Não vai viver uma experiência formativa. Há que acudir e acompanhar o povo, e nesse acompanhamento ser capaz de aprender com eles.

Jon Cortina caminhou com o povo, e foi assim que chegou a Chalatenango e Los Ranchos. Anos depois de sua chegada, após a guerra civil, Cortina atuou no processo de repovoação do departamento, criando a Associação Pró-Busca de Meninas e Meninos Desaparecidos. Também foi fundador do TNT, em 1993, bem como, por vários anos, presidente do conselho diretivo. Ao final de sua vida, esse jesuíta, engenheiro e militante da causa social, era um entusiasta do Teatro e das Artes como meio de regeneração e recoesão social e humana. De origem basca, gostava de futebol e era apaixonado pelo Athletic de Bilbao, cujas partidas acompanhava pelo rádio. Também planejava uma última visita à sua cidade natal, Bilbao, onde esperava conhecer a maravilla do edifício do Museu Guggenheim, em viagens sempre adiadas. Não foi possível. Em 2005, Jon Cortina morre de derrame cerebral, na Guatemala, enquanto participava de uma conferência internacional pró-busca de meninas e meninos desaparecidos nas guerras.

Chegando ao Centro Cultural. Acompanhamento de ensaio para seleção de atores infantis e juvenis para participarem de filme, em formato de ficção, La Travessia.

No espaço multiuso do TNT, crianças de Los Ranchos representam a si mesmas, como se estivessem em uma balsa navegando na noite escura.

Três tipos mal-encarados aproximam-se em um barco e avançam sobre as crianças.

– Não quero ir; tenho medo! – dizem as crianças.

O diretor do filme sussurra:

– Sintam o calor, não exagerem. Só pensem, boca seca, noite, tudo escuro.

Surge uma luz e o barco atraca a balsa.

– Quem será? Quem são vocês?– perguntam os atores mirins.

Os homens capturam as crianças.

– Corta!

Bate a claquete.

A cena imaginária acontece em um rio na fronteira entre Estados Unidos e México, e visa retratar um processo específico da migração de centro-americanos para os Estados Unidos. Após os pais se estabelecerem no país, com trabalho e moradia, eles buscam trazer os filhos menores. Ocorre que as crianças e adolescentes precisam cruzar a fronteira sem a presença de adulto da família, pois os pais seguem não documentados e, por isso, precisam contratar “coiotes” que acompanhem os filhos na travessia.

O diretor da película, Noé Valladares, começou como documentarista da guerrilha da FMLN e trabalhando em rádio na selva. Agora faz cinema comunitário, tendo fundado a Acisam – Escuela de Cine Comunitario, que atua na Guatemala, em El Salvador e na Nicarágua. Todo o seu cinema é realista-ficcional, criado a partir de situações reais, em processos de improvisação que unem atores populares com profissionais. Ele sempre procura o realismo máximo.

O diretor retoma a gravação:

– Digam tudo o que ouviram de suas famílias, tudo o que seus amigos estão contando aqui em Chalatenango.

As crianças e jovens começam a falar ao mesmo tempo. E ele gravando.

– Não quero ficar aqui! Minha família está separada, nem lembro mais de como é meu pai.

– Queremos ir amanhã! Minha mãe está desesperada.

– Mas e as histórias de abusos e violações?

– Cuidado com La Bestia!

– Os coiotes não são confiáveis; vai entregar sua vida a eles? Vão nos matar!

– Muitas meninas são entregues para a prostituição.

– Querem ser abusadas na viagem? Ontem mataram duas mulheres.

– Vida de migrante está bem difícil.

– Degolaram duas chicas.

– Esse dinheiro que sua família está guardando para a viagem pode ser investido aqui.

– Meu pai migrou quando eu tinha 4 anos, teve que caminhar pelo deserto e depois foi preso.

Sigo anotando as falas.

Entra Emercilda na sala do teatro. Ela é funcionária do TNT e perdeu dois filhos na guerra cvil, uma com 24 anos e um com 16; os outros dois filhos vivem nos Estados Unidos e mensalmente enviam dinheiro para a mãe, entre US$ 100-200. Praticamente em todas as famílias há histórias assim. Entes mortos na guerra e parentes vivendo nos Estados Unidos; em Los Ranchos e em todo país. Como resultado da migração, 2 milhões de salvadorenhos vivem no exterior (1/4 da população total), e 30% do PIB é oriundo de remessas externas a familiares.

Desde a fundação do TNT, foram montados mais de quarenta espetáculos de teatro, a maioria em criação coletiva, inspirados na realidade cotidiana, com mais de seiscentas apresentações nos mais diversos cantos do país, de salas de teatro a escolas, galpões comunitários, praças e ruas. Em 2008, inauguraram o bem instalado Centro Cultural e lhe deram o nome de Jon Cortina, em homenagem ao querido mentor. Também realizaram diversas turnês pela Europa, Canadá e América Latina; como principal fonte de financiamento, a articulação comunitária e a cooperação internacional.

Quando do terremoto que assolou o país em 2001, a gente do TNT criou o projeto Desenhando Sorrisos, montando a obra Los perros mágicos de los volcanes (“os cães mágicos dos vulcões”, em tradução livre), do escritor salvadorenho Manlio Argueta. E assim foram construindo pontes entre El Salvador e o resto do mundo, em intensos processos de intercâmbio cultural; de dentro para fora, e por dentro das próprias comunidades, em processos sensíveis, com oficinas e cursos de dança, música, teatro, artes plásticas, sobretudo para jovens e crianças. Uniram localidade, encontro e criatividade, como no projeto Lo Creo, que foi financiado pelo governo da Finlândia.

Com o Centro Cultural passaram a contar com um dinamizador comunitário, além de permitir uma homenagem perene ao padre que tanto admiravam. E foram tecendo redes. Movimento de Arte Comunitária Centro-Americana (Maraca), Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidades, Arte para a Transformação Social e Plataforma Puente Cultura Viva Comunitaria. Levando teatro para escolas públicas e experimentando novas metodologias de arte e educação, com criação de jogos educativos (mais de sessenta) e Manual de teatro aplicado à educação, costuraram alianças com o sistema educativo, governos, casas de cultura. Sempre escutando e formando novos gestores.

O atual diretor executivo do TNT é Walter Romero, um jovem de 26 anos, praticamente o tempo de vida da entidade; a formação dele se deu em sessões do cineclube, teatro, biblioteca, exposições, reuniões de planejamento e intercâmbios. Tudo em um rincão esquecido desta vasta Latinoamérica, na fronteira entre El Salvador e Honduras. Walter, visivelmente, tem uma vocação política, e seria muito bom para El Salvador se jovens como ele ocupassem novos espaços na formulação e gestão de políticas públicas, bem como na representação política. Julio Monge, com a paciência de um monge a cultivar vidas, gosta de citar histórias de jovens do TNT, vários com bolsa de estudo na Europa, se preparando como diretores de cinema, teatro, um deles dirigindo o Teatro Nacional, outros em gestão comunitária. Até o prefeito de Los Ranchos é um jovem que passou pelo Tiempos Nuevos Teatro.

Essa bem-sucedida história de organização cultural não é somente do TNT. Como o TNT há muitos em El Salvador, na América Latina e no mundo. Em El Salvador, com base na organização social das cofradías e guachivales, remonta a antes do etnocídio de 1932, quando dezenas de milhares de indígenas, operários e camponeses foram massacrados por protestarem contra a exploração da oligarquia, ou das 14 famílias, como eles se referem a essa casta.

Nas cofradías se estabelecia a coesão social indígena, já mesclada com a fé católica e impulsionadora das práticas culturais ancestrais. Com as guachivales o povo exercitava sua devoção em festas religiosas, com organização própria, por fora da hierarquia eclesiástica, toda ela com base na confiança que só a vida em comunidade pode oferecer. Também tem por raiz a luta de libertação nacional nos anos 1970-80 e a ênfase que deram para a Arte e a Educação Popular. Em El Salvador, a insurreição popular se fazia com armas, livros e roupas de palhaços. Diferentemente de outros processos insurgentes, a presença enraizada das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) explica em grande parte essa preocupação emancipadora. Sem esse processo de empoderamento comunitário, experiências como a do TNT seriam mais difíceis de acontecer.

Com a guerra civil, áreas inteiras desse pequeno país foram devastadas. Em El Salvador, houve ataque com armas químicas, fornecidas pelo governo estadunidense. O agente laranja era jogado sobre florestas e cafezais; o napalm, utilizado no Vietnã, também o foi na América Central, queimando tudo, inclusive gente. Passado um quarto de século do fim da insurreição popular, ainda há morros, antes cobertos por árvores frondosas ou pés de café, em que não cresce mais nada; rios secaram ou seguem contaminados pela química da guerra, provocando escassez de água potável até os dias atuais. No auge da guerra civil, nas montanhas de Chalatenango e Los Ranchos, todas as famílias tiveram que partir, lá permanecendo somente guerrilheiros e soldados do exército. Mas a lúdica e a arte nunca foram abandonadas. Em pleno estado de sítio, em 1983, trabalhadores da cultura criaram uma associação nacional, e dessa ação surgiram os principais conjuntos musicais do país, que seguem atuando até hoje, como Torogoces de Morazán, Los Farabundos. Eu próprio, como estudante universitário brasileiro, participei do comitê em solidariedade ao povo de El Salvador, nos anos 1980, e recordo de quando trouxemos o grupo Cutumay Camones para apresentação artística e arrecadação de fundos em apoio à luta do povo de El Salvador. Para jovens do mundo todo, esse país era um sendero.

Foi essa compreensão sobre o papel da arte e da educação popular, inspirada em Paulo Freire, que permitiu forjar “processos de ressignificação e construção de novos imaginários, adotando novas práticas, formas de vida e de celebração”, conforme aponta o amigo Julio Monge. Sobretudo nos períodos de refúgio, pós-deslocamento, retorno e repovoação. Em sua luta pela libertação, o povo salvadorenho aprendeu “jogando”, cantando, brincando e preservando histórias de vida. Foi assim que o TNT promoveu, e promove, um processo de cicatrização das feridas do povo, potenciando as virtudes desse povo, conforme os ensinamentos de outro padre jesuíta, Martín-Baró.

Irma

María Irma Orellana fundou o Tiempos Nuevos Teatro (TNT), junto com o padre Jon Cortina e Julio Monge, seu marido e companheiro. Ela nasceu em 15 de maio de 1954, na cidade de Potonico, que pode ser avistada pelo mirante de Los Ranchos. Em 1974 sua cidade natal foi inundada pela represa Cerrón Grande e foi transferida para as margens do lago; em tempos de seca é possível avistar a torre da antiga igreja despontando sobre o lago. Irma teve uma infância camponesa, estudando até a sexta série, quando precisou se mudar para a capital, San Salvador, onde foi trabalhar como doméstica. Lá, conheceu a vida dos ricos e viu opulência e miséria convivendo lado a lado. Foi um choque parecido ao que teve Jon Cortina quando foi trabalhar no principal colégio de elite do país, o Externato dos Jesuítas:

O que me impressionava era quando via que os pais iam buscar seus filhos no externato e saíam do jeep com a pistola no cinturão. Certa vez, fui auxiliar o padre que ministrava ginástica. Alunos de 17 anos, no máximo, e a maioria deles estava armada! O padre pediu as pistolas e, de 35 alunos, 27 a sacaram e entregaram para que eu as guardasse. Era um mundo diferente. Havia muita pobreza com muitíssima riqueza. Havia muita impunidade também. Todos esses rapazes do colégio de jesuítas iam armados! Quando lhes perguntei sobre o motivo de andarem armados, me responderam que era necessário para se defender de algum pobre, algum campônio.

A diferença é que o jovem jesuíta estava amparado pela Igreja e gozava de relativo respeito, mesmo com pouca idade; quanto a Irma, era uma adolescente pobre, vinda do interior, sozinha, tendo que trabalhar nas casas das famílias daqueles alunos que iam armados à escola.

Anos difíceis, em contato direto com a iniquidade e a injustiça. Ela regressa à sua cidade natal e começa a participar da Comunidade Eclesial de Base. Eram entre cinquenta, sessenta jovens, um terço deles mais comprometido, e ela se torna catequista, lembrando com carinho a freira Eima e os retiros espirituais com reflexão política. A par do trabalho na igreja, os jovens foram se aproximando dos muchachos, primeiro da luta sindical dos camponeses, depois, da luta guerrilheira.

Por duas vezes Irma teve contato próximo com o arcebispo Óscar Romero, “tão cercano, humilde”, ela se recorda. Com alegria ela rememora um almoço coletivo com o arcebispo realizado na região, com o povo em mesa farta; naquele domingo 16 de dezembro de 1979, a homilia havia sido sobre “A sociedade cristã que Deus quer”. Naquela homilia, o arcebispo pregou:

Não há pessoas de duas categorias. Não há uns que nasceram para ter tudo e deixar sem nada os demais, e uma maioria que não tem nada e que não pode desfrutar da felicidade que Deus criou para todos. Essa é a sociedade cristã que Deus quer, em que compartilhemos o bem que Deus deu a todos.

Após a missa, no almoço, dom Romero se levanta e pede: “Antes de comer, temos que nos alegrar, comecem a dançar!”. E a banda toca “La cucaracha”, com dom Romero pondo-se a bailar, junto com sua gente, em roda. Esta é a lembrança afetiva de Irma.

Ao final dos anos 1970, a energia elétrica mal havia chegado a Potonico, poucas casas tinham televisão e o rádio era o principal meio de comunicação. Foi no convívio comunitário, e praticando o que se pregava nas homilias de dom Romero, escutadas por rádio e depois debatidas, que aqueles jovens formaram sua consciência e foram se sentindo seguros em suas definições de vida. Era um caminho pacífico, mas muito firme no enfrentamento às injustiças e às oligarquias do país. As homilias do monsenhor Romero, transmitidas para todo o país e escutadas por centenas de milhares de pessoas, sintetizavam todo o sofrimento do povo salvadorenho, fazendo denúncias e apontando caminhos. A cada semana eram mais fortes, porque integradas à vida do povo e à agudização da vida social. Em sua última homilia, dom Romero esclarece como as preparava:

Peço ao Senhor, durante toda a semana, enquanto vou recolhendo o clamor do povo e a dor por tantos crimes, a ignomínia de tanta violência, que me dê a palavra oportuna para consolar, para denunciar, para chamar ao arrependimento, e, embora eu continue sendo uma voz que clama no deserto, sei que a Igreja está fazendo esforço para cumprir sua missão.

Em cada cidade, cada pueblo, daquele pequenito país havia pessoas escutando sua mensagem através do rádio, em uma intervenção cada vez mais consciente:

Eu sei que há muitos que se escandalizam com essa palavra e querem acusá-la de ter deixado a pregação do evangelho para se meter na política. Mas eu não aceito essa acusação, e faço um esforço para que tudo o que o Concílio Vaticano II, as Conferências de Medellín e de Puebla quiseram nos impulsionar, não só o tenhamos nas páginas e estudemos teoricamente, mas também que o vivamos e o traduzamos nessa conflitiva realidade de pregar o evangelho para o nosso povo como se deve.

Em 15 de outubro de 1979, a oligarquia e as Forças Armadas promovem um novo golpe de Estado no país, recrudescendo a luta social. Apenas nos meses de janeiro e fevereiro de 1980, portanto antes do início da luta armada de libertação, a repressão do Estado assassina mais de seiscentas lideranças populares. Dom Romero não se cala:

Eu gostaria de fazer um chamado especial aos homens do Exército e, concretamente, às bases da Guarda Nacional, da polícia, dos quartéis. Irmãos, vocês são nosso mesmo povo, matam os seus próprios irmãos camponeses e, diante de uma ordem de matar dada por um homem, deve prevalecer a lei de Deus que diz “Não matarás!”. Nenhum soldado está obrigado a obedecer a uma ordem contra a lei de Deus. Uma lei imoral, ninguém tem que cumprir. Já é tempo de vocês recuperarem a sua consciência, e obedeçam antes à sua consciência que à ordem do pecado. A Igreja, defensora dos direitos de Deus, da lei de Deus, da dignidade humana, da pessoa, não pode ficar calada diante de tanta abominação. Queremos que o governo leve a sério que de nada servem as reformas se são manchadas de tanto sangue. Em nome de Deus, pois, e em nome desse sofrido povo, cujos lamentos sobem até o céu cada dia mais tumultuosos, eu lhes suplico, lhes rogo, lhes ordeno em nome de Deus: cessem a repressão!1

No dia seguinte, 24 de março de 1980, ao cair da tarde, os sinos dobram no campanário da igreja de Potonico. Dom Romero fora assassinado na capela do Hospital da Divina Providência para doentes com câncer. Suas últimas palavras:

Que este corpo imolado e esta carne sacrificada pelos homens nos alimente também para dar o nosso corpo e o nosso sangue ao sofrimento e à dor, como Cristo, não para si, mas para dar conceitos de justiça e de paz ao nosso povo.

Soa um sino na alma de Irma, triste como a vida. Em um misto de desespero e revolta, os moradores dirigem-se à praça da igreja, muitos chorando. Ao fundo, Irma ouve uma mulher direitista dar vivas à morte de San Romero de las Américas, o protetor dos desvalidos e dos injustiçados, a voz dos pequenos e esquecidos. Ela não reage, mas o grito de ódio daquela mulher, vibrando pelo assassinato de um santo homem, cala fundo no coração de Irma.

Foi uma comoção nacional. Partem caravanas de todos os lugares e por todos os meios, de ônibus, caminhões, a cavalo, a pé. O povo queria render uma última homenagem àquele que, do púlpito, se fez povo. Era Domingo de Ramos. Na capital, um número incontável de pessoas, centenas de milhares, cada qual com sua mensagem, fotos, cartazes, terços, muita fé e agradecimento. Irma seguiu na caravana do Bloco Popular Revolucionário, que havia sido formado por jovens universitários e lideranças populares com origem nas CEBs, entre os quais, um irmão dela. A praça da Liberdade, entre o Palácio Nacional e a catedral, estava tomada pela multidão. Francoatiradores, acoitados no alto de edifícios públicos, começaram a disparar. Tiros a esmo. Gente caindo no chão em desespero. Para se proteger, as pessoas se escondiam sob marquises e na catedral. A Guarda Nacional e os soldados do Exército perseguiam as pessoas, fazendo-as voltar para o campo aberto da praça, todas com as mãos para o alto. Foram centenas de feridos e ao menos quarenta mortos. Irma consegue escapar e volta para sua cidade. Na estrada, barricadas e postos militares.

No dia seguinte, o irmão dela passa a integrar o movimento guerrilheiro da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN). Em pouco tempo, a irmã e os sobrinhos adolescentes também ingressam na luta armada. Irma opta por vida dupla, entre a clandestinidade e o movimento popular de massas, até que, ao final de 1981, ameaçada por esquadrões da morte, quando já não podia voltar para casa, também se incorpora à guerrilha.

Como guerrilheira, o trabalho de Irma foi de contato com a população civil, fortalecendo redes de apoio. Coube à unidade guerrilheira da qual ela participava a estruturação de reserva de alimentos (milho, feijão, arroz e batatas) em granéis graneleiros enterrados na floresta. Foi um tempo de compartir, de sentir-se um em todos, de perigo a cada momento. Também eram responsáveis pela reutilização da carga de fuzis e recolhimento de armas e granadas que os soldados deixavam para trás. Como base, o acampamento de El Alto. Lá aprenderam a fazer a trampa, com varas de bambu tramadas, além de diversas armas de autodefesa, das quais o irmão dela era um hábil preparador. A vida de Irma acontecia nas montanhas e, do cume delas, sempre buscava avistar sua cidade, em que deixara a filha aos cuidados da avó.

Em 1983, começa a fase de expansão da guerrilha, e Irma, junto com a irmã, é deslocada para a organização popular e formação de novas colunas de milicianos. Atua na base de apoio, com rede de compras e suprimentos junto a comerciantes e camponeses simpatizantes, também no transporte de guerrilheiras grávidas ou doentes e feridos necessitando de hospitais, médicos e farmácias. Com o passar dos anos, todos os irmãos e sobrinhos dela morrem na guerrilha, o primeiro deles, com 18 anos de idade.

Irma é testemunha viva do martírio de seu povo. Com a chegada de Ronald Reagan à presidência dos Estados Unidos, as ditaduras da América Central sentiram-se amparadas para cometerem os piores tipos de atrocidades e foram orientadas e supervisionadas por agentes do Estado norte-americano nas mais bárbaras técnicas de genocídio, tortura e assassinato. Nos 12 anos de guerra civil em El Salvador, o governo dos Estados Unidos despejou US$ 4 bilhões, em valores da época, em aviões, helicópteros, fuzis, tanques de guerra, morteiros, granadas e armas químicas. Houvesse justiça internacional, o governo estadunidense teria que indenizar o povo de salvadorenho ao menos no mesmo valor que aplicou na morte e destruição daquela gente.

Foram muitos massacres e histórias de horror. Rufina Amaya, camponesa, foi uma das poucas sobreviventes do massacre de El Mozote. Em dezembro de 1981, ela tinha 38 anos e era mãe de quatro filhos. Em 1992, ela revelou ao mundo o que acontecera naquela comunidade camponesa, em que mil pessoas foram mortas pelo exército:

Chegou uma grande quantidade de soldados do exército. Entraram mais ou menos às seis da tarde e nos encerraram. Às cinco da manhã, colocaram na praça uma fila de mulheres e outra de homens. As crianças choravam de fome e frio. Eu estava na fila com meus quatro filhos. Às sete da manhã, aterrissou um helicóptero do qual desceram vários soldados. Nos separaram dos homens e, ao meio-dia, haviam matado todos. E foram buscar as mulheres, que choravam e gritavam. As crianças que choravam mais forte eram tiradas das mães. Às cinco da tarde, me colocaram com um grupo de 22 mulheres, eu era a última da fila. Os soldados terminaram de matar esse grupo de mulheres sem se dar conta de que eu havia me escondido. Às sete da noite, ouvi soldados dizendo: “Já terminamos com os velhos e as velhas, agora só há uma grande quantidade de crianças. A ordem que temos é de que não devemos deixar ninguém, porque são colaboradores da guerrilha, mas eu não queria matar crianças”. No que veio a ordem: “Sim, já terminaram de matar a gente velha, agora passem fogo nos demais”.

Rufina perdeu os quatro filhos naquele massacre, e sua história só veio a ser contada anos depois, estando registrada na Comissão de Verdade e Justiça. À época do massacre, nenhum daqueles camponeses sabia sobre a FMLN ou tinha qualquer envolvimento com a guerrilha. O governo dos Estados Unidos jamais se pronunciou sobre o massacre, mesmo com provas de que foram utilizados armamentos e helicópteros cedidos pelas Forças Armadas dos país, com assessoria de seus agentes. O governo de El Salvador também negou por uma década que o massacre teria acontecido, até que as ossadas foram encontradas.

E esse não foi o único massacre. Outro, acontecido próximo a Los Ranchos, foi transformado em filme curta-metragem: O massacre do rio Sumpul. Com participação de Irma, como atriz de sua própria vida. Um massacre não, dois. Era início da guerra civil, 14 de maio de 1980. Sob orientação da CIA, a Guarda Nacional e o grupo paramilitar, Orden, iniciaram um processo de expulsão da população civil residente no departamento de Chalatenango. Aos que decidissem permanecer, o terror de Estado. No pueblo La Aradasurgem helicópteros com soldados, disparando do alto. Quando descem, mulheres são torturadas e violentadas antes de serem mortas, e crianças são atiradas para o alto, para serem fuziladas. Aos que conseguem fugir, buscando atravessar o rio Sumpul, na fronteira com Honduras, os exércitos dos dois países preparam uma emboscada e os metralham, tingindo o rio de sangue. Mais seiscentos assassinados.

No mesmo rio, dois anos depois, em 12 de junho de 1982, mais trezentos mortos, agora com a população de Las Cabañas. Igualmente, por décadas, a negativa da existência do massacre, inclusive por parte de observadores da OEA, até que a história se revela. Irma chegou a resgatar uma mulher grávida, três sobrinhos e uma menina, crianças escondidas e assustadas na mata, isso no massacre de Casedillo del Rabulo, em Cerro Alemán (9 de novembro de 1982), às margens do lago Chutitlán. Quanto aos homens adultos, os soldados queimaram as casas e mataram 16 pessoas, picadas com facões. Esses depoimentos são da própria Irma, como testemunha, ou foram colhidos no acampamento de refugiados de Mesa Grande, em Honduras, que chegou a ter 30 mil pessoas, e atualmente encontram-se publicados.

Entre as muitas tarefas da guerrilheira Irma, coube a ela o projeto Retorno dos Refugiados, em 1986. Eram centenas de milhares de salvadorenhos vivendo em Honduras, e esse povo queria voltar para seu lugar. Ativistas da defesa de direitos humanos articularam um movimento ecumênico, sobretudo com as igrejas católica e luterana, além de organizações de solidariedade internacional, para o retorno desses refugiados. Mas antes cabia organizar os refugiados no acampamento de Mesa Grande. O governo de El Salvador não queria que essa população regressasse, temendo que muitas histórias de massacre viessem à tona, como vieram, por isso alegava que não poderia garantir a segurança daquelas pessoas. Mas eles resolvem regressar assim mesmo. Das 30 mil pessoas, 15 mil decidem partir de Mesa Grande no caminho de volta para casa, Irma à frente. Dá um filme (fica a sugestão). Foram dias de caminhada, basicamente com mulheres, velhos e crianças, até que conseguem mobilizar a ONU e anunciam que atravessariam a fronteira em qualquer situação, mesmo que para isso tivessem que enfrentar os soldados. El Salvador era o país deles e eles queriam voltar. Passados trinta anos, praticamente toda a população adulta, com menos de 35 anos de idade e que atualmente vive em Los Ranchos, nasceu no campo de refugiados de Mesa Grande.

A guerra civil chegou ao final, alguns anos depois, sem vencedores, mas com muitos vencidos. Passados 25 anos do Acordo de Paz, com a FMLN transformada em partido político e governando o país por várias gestões, além da capital San Salvador e inúmeras cidades, pergunto a Irma qual o sonho dela. Ela responde assertiva: “Cambiar o sistema pela raiz!”. É nesse processo de intensa luta e mobilização que Irma conhece Julio Monge e eles se casam, estando juntos até hoje. Desde então, o casal decide morar em Los Ranchos. Vivem guindeando – de guindear, uma gíria dos guerrilheiros que significa escapar da morte –, movendo-se de acordo com o terreno. Juntos, combinam ação local com articulação internacional e participação em diversos festivais, em inúmeros países.

Ao observar aquela mulher com tantas cicatrizes, apesar de estar sempre sorrindo e disposta, percebo que Irma vive suas contradições internas, que ela mesma logo revela: “Sigo ou não sigo na luta? Tenho vontade de algum dia descansar, pois no tempo da guerra foi uma batalha sem fim, depois também. Queria um tempo para mim”. Ela não é explícita, mas percebo frustrações de quando fala sobre o governo tão sonhado, pelo qual tanta gente deu a vida. Há derrapagens diante da fria burocracia da administração pública, dos jogos de poder e das imposições do sistema, que não mudou em sua essência. É fato que essas “derrapagens” estão em dimensão muito menor que em outros governos progressistas na América Latina, pois percebe-se que, em El Salvador, o trabalho de base nunca foi abandonado. Mas sinto também que eles seguem em frente, realizando a profecia de San Romero de las Américas, que, para aquele povo, já é santo: “Se me matam, ressuscitarei no povo”.

Daí pergunto a Irma por que não para, por que não reserva um tempo para si, e ela responde:

Não consigo me separar de minha gente. Nos necessitamos mutuamente. Quando vejo esses muchachos fazendo arte, me sinto viva. O importante é que estamos vivos, tanta gente que perdemos, tantos que deram a sua vida pelo que estamos tendo hoje. Por isso também me pergunto: por que tudo é tão decepcionante? Mas daí descubro que, quando juntos, nos damos ânimo e seguimos sonhando.

Me quedo em silêncio.

Do fundo de minh’alma, canto “El Sombrero Azul”, quase que o hino nacional de El Salvador, de autoria de Ali Primera:

El Pueblo salvadoreño

tiene el cielo por sombrero

tan alta es su dignidad

en la búsqueda del tiempo

en que florezca la tierra

por los que han ido cayendo

y que venga la alegría

a lavar el sufrimiento.

Dale que la marcha es lenta

pero sigue siendo marcha

dale que empujando al sol

se acerca la madrugada

dale que la lucha tuya

es pura como una muchacha

cuando se entrega al amor

con el alma liberada.

Dale salvadoreño

que no hay pájaro pequeño

que después de alzar vuelo

se detenga en su volar.

Al verde que yo le canto

es el color de tus maizales

no al verde de las boinas

de matanzas tropicales

Las que fueran al Vietnam

a quemar los arrozales

y hoy andan por estas tierras

como andar por sus corrales.

Dale salvadoreño…

Hermano salvadoreño

viva tu sombrero azul

dale que tu limpia sangre

germinará sobre el mar

y será una enorme rosa

de amor por la humanidad

Hermano salvadoreño

viva tu sombrero azul.

Tendrán que llenar al mundo

con masacres del Sumpul

para quitarte las ganas

del amor que tienes tú

¡Dale salvadoreño!!!2

Dale!


1 Homilia de 23 de março de1980.

2 “Chapéu azul”: O povo salvadorenho/tem o céu como um chapéu/tão alta é a sua dignidade/na busca do tempo/em que a terra floresce/por aqueles que caíram/e que venha a alegria/para lavar o sofrimento.// Dá-lhe, que a marcha é lenta/mas segue sendo marcha/dá-lhe, que empurrando o sol/se aproxima o amanhecer/dá-lhe, que a luta de vocês/é pura como uma menina/quando ela se entrega ao amor/ com a alma libertada.//Dá-lhe, salvadorenho,/que não há pássaro pequeno/que depois de alçar voo/seja detido no voar.//O verde que eu canto/é a cor dos seus campos de milho/não o verde das boinas/de matanças tropicais/Aquelas que foram ao Vietnã/para queimar os campos de arroz/e agora andam por essas terras/como andassem pelos currais.//Dá-lhe, salvadorenho[…]//Irmão salvadorenho/viva seu chapéu azul/dá-lhe seu sangue limpo/que vai germinar no mar/e será uma rosa enorme/de amor pela humanidade/Irmão salvadorenho/viva seu chapéu azul.//Eles terão que encher o mundo/com massacres de Sumpul/para tirar o desejo de amor que você tem.//Dá-lhe, salvadorenho!!!

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Um comentario para "O teatro que vasculha traumas coletivos"

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