Argentina: a disputa política chega ao Boca Juniors

Torcedores saem às ruas para evitar mercantilização do time. Ex-craque Riquelme disputa a presidência. Maurício Macri, ultraliberal, tenta sabotá-lo – em favor de um clube-empresa e de trocar o lendário estádio La Bombonera por uma “arena”.

Foto: AP Foto/Gustavo Garello
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Uma multidão de torcedores do Boca Juniors marchou neste domingo (3) nas proximidades do histórico estádio La Bombonera, na cidade de Buenos Aires, em protesto contra a suspensão das eleições que iriam decidir, no mesmo dia, o novo presidente do clube.

A votação não aconteceu por conta de uma medida cautelar concedida pela juíza Alejandra Débora Abrevaya, após o recebimento de uma ação do candidato da oposição Andrés Ibarra apontando supostas irregularidades na lista dos sócios que podiam votar. Nesta segunda-feira (4), ela se afastou do caso após a atual gestão do Boca ter contestado a decisão, considerada “um verdadeiro absurdo que viola todas as disposições legais vigentes”.

O embate reúne duas figuras emblemáticas da história do clube e da própria Argentina. O candidato da situação é o atual vice-presidente Juan Román Riquelme. Histórico camisa dez do time, foi protagonista de três títulos da Libertadores dos seis que os xeneizes possuem. Um ídolo esportivo que despertou admiração além das fronteiras, tanto que, no Brasil, segundo o censo do IBGE, há 14.391 pessoas registradas com o nome “Riquelme”, além de outras com nomes similares (Rikelme, Rikelmy, Riquelmi…).

Em 2019, ele fez parte da chapa que derrubou uma dinastia de 24 anos do grupo de Mauricio Macri. Pessoalmente, o ex-presidente argentino dirigiu o clube entre 1995 e 2007. Hoje, ele concorre como vice de Ibarra e tem como prioridade retomar seu comando do Boca.

Sociedades anônimas no futebol argentino

Um dos grandes fiadores da governabilidade no futuro governo de Javier Milei, já que a próxima gestão dependerá dos votos do grupo macrista no Congresso Nacional, o ex-presidente conseguiu emplacar o seu ex-ministro da Economia na mesma pasta. E já ocupa boa parte do centro decisório no desenho do Poder Executivo. Muitos veem que a condução da política econômica pode ser uma versão “Macri II”, com o mesmo receituário neoliberal, mas sem a dolarização e a extinção do Banco Central prometidos pelo eleito.

E a receita que planeja aplicar no Boca é a mesma. Macri é um entusiasta das chamadas sociedades anônimas no futebol, que tem ganho força no Brasil e está presente em oito clubes da Série A de 2023. Quando era presidente do Boca Juniors, apresentou uma proposta de introdução das sociedades anônimas no país à Associação do Futebol Argentino (AFA), em 1998, mas foi o único voto favorável dos 25 dirigentes que analisaram o projeto.

Entre os planos apresentados pela chapa Ibarra-Macri estão ainda a construção de um novo estádio em substituição ao lendário La Bombonera, com venda de naming rights e um formato do tipo arena, com estabelecimentos comerciais e restaurantes. Uma ideia, aliás, antiga e que contaria com possíveis patrocinadores estrangeiros. Em 2018, a gestão macrista do clube fechou um acordo com a Qatar Airways para estampar sua marca na camisa do time até o fim de 2022, e a proximidade do capital árabe estaria relacionada à construção do novo estádio.

Com a derrota para a chapa de Riquelme em 2019, o projeto não andou e a relação ainda passou por uma situação constrangedora. A Qatar Airways exigiu que o atacante Almoez Ali, do Al-Duhail SC e da seleção do país, fosse integrado ao Boca para promover a Copa do Mundo de 2022, mas Riquelme não aceitou. Depois do episódio, a empresa não fez proposta de renovação do patrocínio.

O projeto de um novo estádio também é uma tentativa de dialogar com sócios que não conseguem assistir às partidas da equipe na Bombonera, por conta da redução de espaço do público ao longo dos anos e também pelo expressivo quadro associativo xeneize: são aproximadamente 350 mil sócios ativos, colocando o clube atrás apenas do Real Madrid no mundo. Mesmo assim, segundo pesquisa realizada com 1,8 mil associados, 71,06% dos entrevistados defendem uma ampliação do atual estádio, contra 27,94% que apoiam que seja feito um novo.

Questão de identidade

Há alguns meses, em entrevista, Javier Milei também defendeu as sociedades anônimas no futebol. Na sequência, clubes da primeira divisão do país emitiram notas em repúdio ao modelo, que também não encontra muitos apoiadores entre os torcedores. Na Argentina, mesmo os clubes grandes guardam uma relação íntima com os locais em que estão e a vivência e participação de sócios e torcedores é bem mais próxima.

“A sensação de que o Boca é um saque político e um objetivo empresarial para Macri já é uma certeza que ultrapassa os torcedores do clube. A manipulação judicial era visível para qualquer mortal. As últimas entrevistas públicas do ex-presidente confirmaram que a sua perspectiva empresarial vai além de qualquer história”, pontua a jornalista e advogada Gabriela Pepe. “O atraso na data das eleições tem um objetivo óbvio: a intervenção do clube, que poderá ocorrer através da Inspeção Geral de Justiça (IGJ) após a assunção de Javier Milei. Tomar à força o que não se ganha nas urnas.”

A Inspeção Geral de Justiça é uma espécie de Junta Comercial da Argentina e é a entidade responsável pela fiscalização e regulação das associações civis como os clubes de futebol. Como ela terá uma nova gestão a partir do governo Milei, o temor da jornalista tem base concreta.

Em seu discurso neste domingo, Riquelme tentou sintetizar o que acredita estar em jogo. “O escudo é extremamente importante, as cores são extremamente importantes. Mas acima de tudo estão os torcedores. Os torcedores são sagrados, não se brinca com isso. E aqui estão mexendo com isso a cada dia, o que incomoda muito. Temos as eleições mais simples da história do nosso clube. Porque temos futebol e outras disciplinas, não é apenas um clube de futebol. Ou escolhem que arranquem seus corações. Essa é a verdade. Eles vão vender a vários estrangeiros, não seremos mais parte nem proprietários do clube.”

O contexto mostra que a disputa pela presidência do Boca vai muito além dos muros da Bombonera, constituindo o conflito de duas visões de mundo muito distintas e que também compõem hoje o campo de batalha da política nacional.

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