De que lado estamos

Richard Miskolci sempre esteve com o feminismo, as dissidências das sexualidades e dos gêneros, a teoria queer – inclusive correndo riscos. Agora, há quem queira cancelá-lo. O motivo: desconfiar dos conceitos de “cis” e “cisnormatividade”

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Por Berenice Bento, Karla Bessa, Larissa Pelúcio, Pedro Paulo Gomes Pereira e Tiago Duque

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> Uma visão inicial sobre as objeções de Richard Miskolci aos conceitos “cis” e “cisnormatividade” pode ser encontrada nesta entrevista concedida por ele, em outubro de 2021, ao site Extaclasse

Richard Miskolci é um professor e pesquisador com quem, ao longo das últimas décadas, temos trocado muito, o que sempre incluiu espaço para divergências. Elas, as divergências, nunca são fáceis, mas são necessárias e fazem parte da construção do pensamento crítico em arenas de embates de ideias, como são o campo político e o acadêmico.

Quando olhamos para a formação do campo de estudos de gênero e sexualidade no Brasil, Richard Miskolci está ali como um dos nomes centrais na construção de densas discussões teóricas a partir dos estudos queer e dos estudos culturais e feministas. Reconhecemos, ainda, sua contribuição para que os debates acadêmicos sobre gênero e sexualidade dissidentes ganhassem a dimensão política de hoje. Os debates são ferramentas críticas que têm se mostrado armas poderosas para o embate com setores ultraconservadores.

Richard Miskolci foi uma voz intelectual ativa contra as ofensivas da extrema direita em sua campanha global anti-igualitária. No auge do bolsonarismo, não teve medo de escrever textos, organizar eventos e buscar alianças contra os retrocessos e as necropolíticas promovidas de forma ostensiva desde o golpe que derrubou Dilma Rousseff.

Em sua trajetória, Richard Miskolci fez contribuições para as reflexões sobre as vidas trans na academia brasileira e estas nem sempre foram consensuadas, mesmo porque, quando produzimos críticas, as discordâncias se apresentam, as tensões se colocam, os ânimos se exaltam. Além disso, toda essa dimensão afetiva do processo é parte das disputas sobre formas de ver e viver o mundo. Por isso, acreditamos que o fazer acadêmico é sempre político.

Nesses embates, que extrapolam os muros acadêmicos, Richard Miskolci se posicionou sobre o direito ao nome social das pessoas trans nas universidades, ajudando a provocar estruturas burocráticas enrijecidas. Teve papel fundamental na realização do Curso Gênero e Diversidade Sexual na Escola (GDE-UFSCar), com produção de material educativo próprio para professores do Ensino Fundamental. Foi também um dos idealizadores do Congresso Internacional Desfazendo Gênero, evento no qual o transfeminismo mostrou sua potência acadêmica e política. Toda linguagem política é uma linguagem de disputas. Disputamos, mas, sobretudo, aprendemos com as pluralidades de vozes.

Em contexto de ofensiva antitrans que marcou o cenário legislativo neste ano, as vozes trans e travestis se mostraram fundamentais! O Seminário Identidades Trans e Travestis: cidadania, memória, realizado no início deste mês, vem como uma resposta histórica e necessária para o enfrentamento dos fascismos e do ultraconservadorismo. Foi deste encontro que saiu uma carta de rechaço ao professor.

Mais uma vez, reafirmamos que divergências enriquecem o debate. Foram nos embates em vários espaços que formamos nossa voz, nunca sozinhas/os. Nunca sem conflitos.

No entanto, queremos também pontuar que na dimensão da crítica intelectual que possa se fazer ao professor, não podemos perder de vista suas contribuições, que estão para além do seu último livro, no qual faz uma análise dos sentidos transversais que cortam a sociedade brasileira no reiterado desejo do silenciamento das divergências. Aponta, naquela obra, que a impossibilidade de coabitar e construir espaços de diálogo e convivência com posições diferentes, caracterizam a cultura política nacional, que, como sabemos, é violenta.

Esta declaração pública, não é uma confissão de fé. Não concordamos com todas as posições do professor (e isso é legítimo e parte do jogo democrático), mas reiteramos o direito ao pensamento (e do pensamento pensar o próprio pensamento), à crítica, à divergência como o tutano da vida acadêmica. Sem isso, fechem as universidades que, apesar de todas suas limitações, têm sido espaço profícuo de transformação social.

Nesse sentido, entendemos que a referida carta após o O Seminário Identidades Trans e Travestis: cidadania, memória, que tem sido assinada por organizações, ativistas e/ou intelectuais dificulta o processo de diálogo e reflexão crítica, assim como ameaça às políticas de alianças. Ainda que tenha um professor como alvo, com o histórico já apresentado aqui, ela representa um retrocesso nos avanços coletivos dos enfrentamentos que podemos fazer juntos para vencer a transfobia. 

Não se trata apenas de uma defesa à trajetória de um professor comprometido com os direitos humanos, trata-se também de garantir que possamos seguir tendo o direito (tão violentamente perseguido pelos antidemocráticos) de afirmar: “eu discordo”. “Eu não tenho certeza”. “Eu preciso pensar mais”. 

Conceitos não são, para nós, dogmas. São ferramentas que nos ajudam a interpretar o mundo, por isso podem ser tensionados, pois disputamos formas de interpretar e ocupar esse mesmo mundo. E nenhum conceito esgota a pluralidade das existências e identidades sociais.

O nosso lado é, enfim, o da força criadora das alianças e o da riqueza democrática das divergências.

Berenice Bento – Professora do Departamento de Sociologia da UnB/Pesquisadora do CNPq.

Karla Bessa – Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp e vice-coordenadora do INCT Caleidoscópio.

Larissa Pelúcio – Professora do Departamento de Ciências Humanas, Unesp, campus Bauru. Pesquisadora do CNPq.

Pedro Paulo Gomes Pereira – Professor do Departamento de Medicina Preventiva, Escola Paulista de Medicina, Unifesp, campus Vila Clementino. Pesquisador do CNPq.

Tiago Duque – Professor da Faculdade de Ciências Humanas, UFMS. Pesquisador CNPq.

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Um comentario para "De que lado estamos"

  1. Francine Oliveira disse:

    Não é “cancelamento”, é responsabilização pelo desserviço que vem fazendo em relação às pessoas trans, a quem nega o diálogo e até mesmo a possibilidade de que produzam suas epistemologias. Basta ouvir ao movimento social das pessoas trans para entender o descontentamento. Mas, na posição em que estão, não são capazes de “cancelar” um professor branco cisgênero, como as instituições (Pagu e ANPOCS) têm mostrado. Chega a ser patético acreditar que o movimento social tem esse poder…

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