Dowbor: a indústria submissa à financeirização

Em novo capítulo de seu livro sobre capitalismo contemporâneo, economista sustenta: vivemos o fim da livre concorrência industrial. Mercados fluidos deram lugar a oligopólios e manipulações. Intervenção pública tornou-se indispensável

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MAIS:
> Este texto é a parte final do segundo capítulo da obra
O pão nosso de cada dia, de Ladislau Dowbor
Editora Autonomia Literária | 202 págs. | R$ 35

> O lançamento aconteceu no último dia 14. Assista a entrevista de Dowbor a Antonio Martins
> Outras Palavras publica o livro, em capítulos, às quartas-feiras
> Leia também: introdução; capítulo 1; capítulo 2 – partes 1, 2 e 3

Indústria de transformação

A indústria de transformação, que produz desde carros a brinquedos e papinhas para bebês, mas também metralhadoras e desfolhantes químicos, além de um sem-número de bugigangas de utilidade duvidosa – vendidas ou empurradas por meio de um massacre publicitário –, constitui uma área onde o mercado, através da concorrência, ainda funciona razoavelmente. A razão é simples: a concorrência representa, sim, um instrumento regulador importante, ainda que para um conjunto cada vez mais limitado de setores.

Como serve de ponto de referência para muita gente, é útil explicitar o mecanismo, como vem no texto de 1776 de Adam Smith. Um padeiro, pensando no próprio bolso e não na fome dos pobres, produzirá bastante pão, para que o negócio renda. E terá de ser de razoável qualidade, senão as pessoas não comprarão. E se o padeiro cobrar muito caro, poderá aparecer outra padaria na vizinhança, para vender mais barato. Assim, por procurar cuidar dos seus próprios interesses, o padeiro vai assegurar pão em quantidade, com qualidade e preços razoáveis. Apesar dos volumes escritos para refutar o argumento, o fato é que o mecanismo funciona. E funciona porque é muito fácil abrir outra padaria na esquina seguinte. Mas não vai aparecer outra Friboi ou outra Odebrecht na esquina. Falar em liberdade de mercado quando o poder dos agentes econômicos é radicalmente desigual não faz sentido. A razão do mais forte é a que prevalece.

A questão não está, portanto, em saber se esse mecanismo funciona ou não, mas sim em que circunstâncias funciona, e para que produtos. Para já, como vimos nas páginas anteriores, não funciona para recursos de oferta limitada, como terra, água e florestas, ou recursos não renováveis, como reservas minerais. Não vai aparecer mais ébano nas florestas porque o preço no mercado da madeira subiu, nem mais baleias nos oceanos para satisfazer um maior apetite dos japoneses. Onde o mercado funciona, na sua dimensão racionalizadora através da concorrência, é para pão, camisetas, brinquedos, sapatos e outros produtos em que frente ao aumento de preços no mercado, a oferta pode reagir rapidamente oferecendo mais produtos.

O problema é que a indústria tem um papel cada vez mais limitado nas nossas economias. A totalidade da mão de obra industrial nos Estados Unidos não chega a 10% da população ativa, isso incluindo a mão de obra burocrática das empresas industriais. Com a automação que as novas tecnologias permitem, vemos os produtos industriais de consumo de massa abarrotando não só a 25 de Março, mas qualquer mercado equivalente em qualquer parte do mundo. As nossas necessidades, e o peso relativo dos diversos processos produtivos, estão se deslocando para outro tipo de consumo, como saúde, educação e a economia imaterial, onde o mercado simplesmente não funciona, conforme veremos adiante. Aqui queremos marcar o fato de que os produtos industriais, onde a concorrência funciona, são hoje bastante restritos.

Como a concorrência tende a baixar os preços, e com isso também os lucros, os grandes grupos no sistema econômico vigente buscaram mecanismos que têm uma fachada de mercado, mas que funcionam de maneira diferente. Basicamente, o que está mudando as regras do jogo é um conjunto de iniciativas que restringem o acesso aos produtos, o que inverte as vantagens do padeiro de Adam Smith. Aliás, quem tomou um café acompanhado de um salgadinho no aeroporto de Congonhas, pagando 20 reais, deve se perguntar com que matéria-prima são feitos esses produtos. Em economia, chamamos isso de monopólio de localização. O cliente não tem alternativa. A monopolização, ou a formação de oligopólios, tem justamente esta característica central: não temos alternativas.

Os artifícios para cercear os mecanismos de mercado são inúmeros e criativos, e adotados em inúmeras atividades que se vestem com o manto de respeitabilidade dos “mercados”. Para os produtos farmacêuticos temos patentes (vinte anos, nesta era de transformações tecnológicas aceleradas), que permitem manter preços astronômicos porque outras empresas são proibidas de produzir. Para as grandes marcas, temos a proteção legal, o que permite que se venda a 150 dólares um tênis que custou 10 dólares na produção; ou 1.500 reais uma bolsa fabricada no Pari, modesto bairro de pequenos produtores de São Paulo, mas que aparece com uma grife famosa; alguns setores conseguem, através de pressões políticas, restringir as importações, o que permite ao cartel do automóvel, por exemplo, manter preços excepcionalmente elevados no Brasil 1.

A publicidade tem um papel fundamental. É impressionante, por exemplo, tanta gente da classe média comprar água Nestlé em supermercados, quando qualquer filtro razoável assegura água da mesma qualidade, com custo e impacto ambiental incomparavelmente menores. Pagar royalties aos suíços por água brasileira é bastante impressionante. O marketing moderno, tendo à disposição os avançados meios de comunicação, assumiu um papel-chave na deformação de atitudes de consumo, ao vender estilo de vida e empurrar mudanças comportamentais. Haveria uma gigantesca área de oportunidades no fornecimento de informações adequadas ao consumidor, introduzindo transparência onde predomina a manipulação, mas não há recursos para isso, pois o que financia a publicidade é o preço que pagamos no produto. Nesse setor industrial funciona, portanto, o mercado, mas de maneira limitada, mediado por uma máquina mundial que gera o chamado consumismo. O valor gerado para nós, curiosamente, é cada vez menos a utilidade do uso do produto, e sim o ato da compra.

Há três eixos suplementares de mudança que devemos levar em conta. Primeiro, a indústria de transformação é a que mais facilmente automatiza os processos produtivos, e, portanto, nunca mais será um grande empregador. Nos EUA, que são uma potência industrial, o operariado que trabalha efetivamente com máquinas em fábricas representa cerca de 5% da mão de obra (10%, como vimos, se acrescentarmos o emprego burocrático na indústria). Segundo, as novas tecnologias também transformam o mecanismo de preços: fabricar livros pode ser mais barato, mas o oligopólio que domina o setor leva a um descasamento radical entre o custo de produção e o preço de venda, deslocando o ponto de apropriação do excedente para o oligopólio de comercialização 2. As novas tecnologias permitem articulações interempresariais em rede de forma muito ágil, transformando o próprio ambiente que chamávamos de “mercado”. Terceiro, as grandes empresas são hoje empresas abertas, em que os acionistas exigem maior rentabilidade no curto prazo, nem que seja às custas da qualidade inferior do produto, da obsolescência programada, do preço exorbitante ou da descapitalização da empresa. Já não estamos no tempo em que teria mais sucesso o produtor que melhor serve o consumidor, competindo elegantemente no “livre mercado”.

Algumas ideias podem ajudar a pensar alternativas:

• Gerar uma capacidade de controle efetiva de formação de monopólios e oligopólios, hoje limitada ao CADE inoperante: parece pouco realista, mas até nos EUA está se ampliando o movimento para fragmentar os gigantes corporativos;

• Assegurar políticas de apoio à pequena e média empresa, e as chamadas economias de proximidade, para inverter o processo de desindustrialização do país: a pandemia gerou um movimento planetário de revalorização do conceito de autossuficiência dos países, pelo menos em produtos básicos;

• Assegurar políticas de crédito efetivamente acessíveis às empresas, reduzindo o espaço da agiotagem utilizada pelas principais instituições financeiras: o dinheiro, como vemos na China, tem de ser produtivo;

• Temos de voltar a tributar os lucros e dividendos distribuídos, com particular incidência sobre os dividendos, que constituem rentismo improdutivo: ao ver que ganhar sem produzir é tributado, poderão esses grupos voltar a se interessar por processos produtivos;

• Gerar políticas de apoio ao desenvolvimento local integrado, em particular com complementaridades interindustriais e a economia circular de reutilização: as novas tecnologias também permitem formas descentralizadas de produção, tanto pelas técnicas de produção como pela facilidade de conexão com mercados mais amplos 3.

• Planejar de forma adequada infraestruturas de transporte, comunicação, energia e acesso a água e saneamento, que podem assegurar “economias externas” para os produtores: produzir mais barato e de forma competitiva depende muito das infraestruturas que dão suporte aos processos produtivos.

Sobrevoamos aqui muito rapidamente seis áreas de produção material: agricultura e pecuária, exploração florestal, pesca, mineração, construção e indústria de transformação. Constatamos que de forma geral predominam os mecanismos de mercado, mas que não são suficientes. Uma reorientação básica consiste em passar a utilizar de maneira inteligente e sustentável os recursos não renováveis, pois com quase 8 bilhões de habitantes no mundo, e 80 milhões de pessoas a mais a cada ano, todos querendo consumir mais, estamos beirando a catástrofe. No Brasil, além do desafio da sustentabilidade, temos uma impressionante subutilização dos fatores de produção. Impera a irracionalidade nas grandes escolhas, em que não conseguimos nem o desenvolvimento econômico, nem o equilíbrio social, nem a preservação ambiental. A própria cultura de consumismo obsessivo, empurrada pelos meios de comunicação, nos leva ao colapso.

O caminho é conhecido: mudar o sistema linear, em que esgotamos os recursos naturais, produzimos de maneira não sustentável, consumimos além do que precisamos, e contaminamos o meio ambiente com os resíduos. Temos de evoluir do sistema linear para um sistema circular, em que os resíduos de um ciclo produtivo sirvam de matéria-prima para o ciclo seguinte, evitando tanto o esgotamento dos recursos como a contaminação do planeta.

Ao mesmo tempo, enfrentamos um desequilíbrio profundo entre as formas tradicionais de produção, com muitas empresas pequenas ou familiares, que geram, de longe, o maior número de empregos, e os gigantes corporativos planetários que, por estarem no espaço mundial, não são controlados em lugar algum, e que inundam os mercados mundiais com produtos gerados por quem aceita salários mais baixos, ou cobra menos impostos, ou, ainda, pelo país que for mais tolerante para as transgressões ambientais, provocando a chamada corrida para baixo, com guerras fiscais, desastres ambientais e conflitos sociais. Os grandes grupos deixam pouco para o país onde estão instalados: a geração de emprego é muito limitada, pagam poucos impostos, e penetram a linha de menor resistência dos governos, apropriando-se, pelo peso financeiro das suas atividades, do próprio processo legislativo, e frequentemente do judiciário, desses países.

Uma atenção crescente tem sido dada às relações interempresariais. Nenhuma empresa de carros, por exemplo, vai comprar “no mercado” as peças de que precisa: a linha de montagem depende de um universo de acordos interempresariais de fornecimento de componentes, em que são previamente especificados todos os parâmetros dos produtos. No caso de uma empresa automobilística, tipicamente a montadora administra uma galáxia de cerca de 4 mil empresas fornecedoras situadas frequentemente em diferentes países, com acordos interempresariais vinculantes. Isso nos leva a um sistema que seria mais bem caracterizado como sistema articulado interempresarial, do que “mercado”. No mínimo, é um mercado “viscoso” e não fluido, e essas galáxias econômicas, como as chamam os estudos da ONU, passam a ter forte presença política.

Gera-se ainda um sistema interdependente planetário. Quando alguns portos da costa lesse dos Estados Unidos entraram em greve, rapidamente empresas das mais diversas regiões precisaram paralisar a produção, por falta, por exemplo, de um componente que era produzido na Indonésia. Com segmentos da cadeia produtiva espalhados pelo planeta, e minimização de estoques para evitar custos financeiros – estamos na era do just-in-time – os riscos sistêmicos do conjunto tornam-se crescentes, levando ao que tem sido chamado de vulnerabilidade sistêmica e de crises que se propagam. A questão aqui não é demonizar, mas entender como evoluem os mecanismos, e gerar os contrapesos necessários. A União Europeia descobrir, em plena pandemia, que precisa importar máscaras da China e o Brasil se dar conta da falta de produção de agulhas para as seringas no momento de começar a vacinação configuram este novo panorama de nações atreladas às multinacionais que esqueceram que o desenvolvimento se planeja.

Mais importante ainda é que as empresas como unidades de organização racional dos processos produtivos se veem crescentemente controladas pelos sistemas financeiros, que envolvem investidores institucionais, holdings, bancos e uma diversidade de formas de apropriação e controle por quem não produz, mas extrai. É o caso de grande parte de empresas de capital aberto, mas também das pequenas e médias empresas cada vez mais reduzidas a subcontratadas das grandes corporações. O que chamávamos de “livre mercado” é cada vez mais substituído por pirâmides de controle oligopolizado. Veremos isso mais adiante, ao tratar dos sistemas de intermediação financeira, no quadro do que tem sido chamado de financeirização.

De toda forma, esse universo hoje extremamente diversificado e desigual de produção tem, sim, como base a unidade empresarial, gerida no quadro do direito comercial privado. Em geral, nos referimos a esse universo como “os mercados”, ainda que os mecanismos de concorrência sejam cada vez mais restritos no seu funcionamento, passando a predominar os acordos interempresariais e os jogos políticos de poder. Os mecanismos de regulação têm de ser diferenciados: é natural deixar a pequena empresa buscar nichos de demanda insatisfeita, e investir criativamente de acordo com as oportunidades. Essa criatividade é preciosa numa economia. Mas os gigantes que geram impactos sistêmicos em termos sociais, de meio ambiente ou de política precisam de sistemas de regulação muito mais performantes do que as “agências reguladoras” que herdamos, e que são, na realidade, cooptadas pelo poder maior da corporação. As próprias corporações são conscientes da crescente vulnerabilidade do sistema caótico que geraram 4.

Um apontamento ainda para o caso dos setores em que empresas privadas se apropriam de bens naturais, que não precisaram produzir, como é o caso da terra, dos recursos minerais e semelhantes. A propriedade privada aqui deve servir, como está na Constituição, a objetivos sociais. Quando se privatiza a Vale do Rio Doce, os recursos gerados pela exportação, em vez de servir para financiar educação e saúde pelo setor público, por exemplo, passam a ser apropriados por acionistas que enriquecem descapitalizando o país de um minério que não produziram. E nos lembremos de que lucros e dividendos no Brasil são isentos de impostos, desde 1995. A propriedade dos bens naturais precisa ser submetida a regras mais estritas do que a produção manufatureira.

Isso dito, vamos ver outra área de atividade econômica, a das infraestruturas. A verdade é que todo o sistema de unidades produtivas hoje depende vitalmente das redes de infraestruturas, da teia que conecta o conjunto.

1 Joseph Stiglitz apresenta de forma detalhada a redução do papel da concorrência nos diversos setores da economia, com a formação de oligopólios e liquidação dos mecanismos de regulação pública. People, Power and Profits, Norton, Nova York, 2019

2Ver o artigo do Guardian sobre o processo movido contra a Amazon e os “Big Five”, os cinco grandes da edição – Penguin Random House, Hachette, HarperCollins, Macmillan e Simon & Schuster – “que foram acusados de colusão no arranjo dos preços dos ebooks, num processo instaurado por uma empresa de advocacia que já moveu com sucesso um processo contra Apple e os Big Five pelas mesma causa 10 anos atrás”.

3Apresentamos um conjunto de propostas práticas no relatório de pesquisa Política Nacional de Apoio ao Desenvolvimento Local.

4Frente aos desastres planetários, 181 das principais corporações norte-americanas, incluindo Amazon, Google, Johnson&Johnson e outros gigantes, publicaram em setembro de 2019 uma carta de compromissos éticos em cinco pontos, comprometendo-se com objetivos financeiros, sociais e ambientais. Ver a carta original.

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