Dowbor: os caminhos e impasses da Agropecuária

Em novo trecho do livro que expõe engrenagens da Economia, exame de setor em que produção típica é privada – mas ação do Estado é decisiva. É ela que poderá impedir a concentração e desperdício de terra e água, típicos do campo brasileiro

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Por Ladislau Dowbor

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> Este texto é a primeira parte do segundo capítulo da obra
O pão nosso de cada dia, de Ladislau Dowbor
Editora. Autonomia Literária | 202 págs. | R$ 35
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> O lançamento aconteceu no último dia 14. Assista a entrevista de Dowbor a Antonio Martins

> Outras Palavras publica o livro, em capítulos, às quartas-feiras

> Leia a introdução e o primeiro capítulo

A produção material é a que mais conhecemos, pois vemos os produtos nas prateleiras, os prédios construídos. Basicamente, trata-se aqui deseis setores de atividade: agricultura e pecuária, exploração fl orestal, pesca, mineração, construção e indústria de transformação. Não vamos entrar aqui no detalhe de cada um dos setores, pois o exercício que propomos não é apontar todos os problemas e soluções, mas identificar as “peças” e as suas funções no conjunto. Descreveremos em cada setor apenas o sufi ciente para possibilitar a compreensão mais geral: o que interessa é a engrenagem.

O importante para nós é que os setores de produção material se caracterizam geralmente por constituírem unidades empresariais, do setor privado, reguladas por mecanismos de mercado.

Dizemos “geralmente” pois existem também sistemas cooperativos, gestão comunitária, economia solidária, produção para autoconsumo e outras formas de organização, mas que raramente se tornaram dominantes na atualidade e nesse grupo de atividades. Importante, ainda, é lembrar que em cada setor, há atividades que se regem razoavelmente através de mecanismos de mercado, no livre jogo de interesses entre as empresas, mas que os sistemas de regulação e enquadramento por mecanismos públicos tornam-se cada vez mais importantes, em particular no quadro dos desafios ambientais ou de conglomerados de grande porte. Usa-se a imagem do passarinho na mão: se segurar com muita força, esmaga, se a mão ficar muito aberta, ele voa. Uma questão de equilíbrios. O mercado sozinho, mesmo nesta área, não resolve e não assegura o funcionamento adequado, ainda que seja necessário.

Agricultura e pecuária

É natural vermos a agricultura como produção regulada pelo mercado. Isso vale para os produtos, se os preços do tomate no mercado subirem, os agricultores vão produzir mais tomate. No entanto, a base da agricultura é solo e água, e ambos são recursos limitados. O Brasil tem aqui uma imensa reserva subutilizada. Nesse país de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, equivalentes a 850 milhões de hectares, temos cerca de 350 milhões de hectares em estabelecimentos agrícolas, dos quais 225 milhões constituem solo agricultável. Mas a subutilização é impressionante. Se somarmos a lavoura temporária e a lavoura permanente, ou seja, as formas razoavelmente produtivas de uso do solo, constatamos que utilizamos apenas 63 milhões de hectares. Isso significa que temos, de acordo com o Censo Agropecuário de 2017, do IBGE, cerca de 160 milhões de hectares de terra parada, usada como patrimônio que se valoriza, ou subutilizada com pecuária extensiva. Essa terra subutilizada equivale a cinco vezes o território da Itália.

Nas pastagens, com pouco mais de um boi por hectare, trata-se de uma gigantesca perda de produtividade potencial. Como, além disso, dispomos no Brasil de 12% das reservas mundiais de água doce, ainda que distribuídas de maneira desigual, há aqui um gigantesco potencial de expansão, representando, junto com as savanas africanas, a maior extensão mundial de solo agrícola subutilizado. Dizer que precisamos liberar o desmatamento da Amazônia para fins produtivos é simplesmente falso.

Essa subutilização está diretamente ligada à propriedade do solo. Basicamente 50 mil estabelecimentos com mais de 1 mil hectares, ou seja 1% do total de estabelecimentos,

concentram 43% da área (146,6 milhões de hectares). São os que mais subutilizam a terra. E como os grandes estabelecimentos empregam pouco, reforça-se a pressão demográfica sobre as cidades. O desafio, portanto, é em grande parte cumprir a Constituição, que define o uso social da propriedade rural. Quando gigantes financeiros se tornam proprietários que não usam e nem deixar usar, há uma perda de produtividade sistêmica para o país.

A tendência é mundial. “Hoje, estima-se que existam aproximadamente 608 milhões de propriedades rurais no mundo, e a maioria ainda é familiar. No entanto, o 1% das maiores fazendas controla mais de 70% das terras agrícolas do mundo e está integrado ao sistema alimentar corporativo, enquanto que mais de 80% das propriedades mundiais são pequenas, de menos de dois hectares, geralmente excluídas das cadeias alimentares globais.” 1 Aqui, o mercado não resolve, é preciso ter uma política, melhorar e aplicar as leis, pois não vai haver maior oferta de terra, por exemplo, se o preço da terra subir: a terra e a água são recursos naturalmente limitados. Onde são utilizados de maneira racional, são intensamente regulados, pelo Estado ou pelas comunidades.

As pessoas ainda pensam frequentemente na agricultura como setor “primário”, de pouco valor agregado. Na realidade, com as tecnologias modernas, o solo pode constituir uma base de produção tão sofisticada como as máquinas na indústria. A PNAD de 2017 estima que 8,7 milhões de pessoas estavam ocupadas na agricultura e na pecuária no Brasil, para um total de “pessoas ocupadas” de 91,4 milhões. Com 7,8 bilhões de habitantes no mundo, e 80 milhões a mais a cada ano, a demanda por alimento, ração animal, fibra e bioenergia explode no planeta. Entre a expansão da demanda e o potencial subutilizado, desenha-se uma visão estratégica. E só exportaremos em bruto se quisermos. Aqui também, precisamos de políticas. Na Europa, paga imposto elevado quem tem uma terra agrícola que não usa.

O Brasil herdou um setor de agricultura familiar que assegura cerca de três quartos da base alimentar do país. Usa o solo de maneira intensiva e ocupa pouca terra no seu conjunto, cerca de 20%. É um universo muito diferente dos gigantes do agronegócio, centrados na monocultura e na exportação, e diferente ainda dos que guardam a terra parada, com fins de especulação fundiária, atividade fragilmente disfarçada como “pecuária extensiva”. Com a pressão da demanda e o esgotamento das reservas mundiais de solo agrícola e água doce, um país como o Brasil, que tem essas reservas, que não cobra impostos sobre a terra – o ITR, Imposto Territorial Rural, é uma ficção –, sofre hoje uma invasão de interesses internacionais. Aqui também é indispensável uma política no sentido amplo.

A economia não gosta de vácuo. O capital desinteressado não existe. Por exemplo, cobrar um imposto sobre terra parada poderia estimular o proprietário a usá-la ou vendê-la para quem a cultivaria. Assim, nesse setor, enquanto a produção pode ser, sim, regulada por mecanismos de mercado com variações do preço do milho, por exemplo, a política de acesso à base produtiva, que são o solo e a água, deve ser organizada e regulada, inclusive para limitar ou reverter os desastres ambientais. E temos ainda amplos caminhos de atividade de política econômica, como, por exemplo, generalizar o apoio tecnológico, comercial e financeiro à principal base rural que é a agricultura familiar, ou estimular o agronegócio a enfrentar a segunda revolução verde, com menos

agrotóxicos e monocultura, maior valor agregado nos produtos antes de exportar e incorporação da sustentabilidade nos processos produtivos. Temos também uma “agricultura 4.0” pela frente, em vez do desastre das queimadas e destruição da Amazônia.

O que se constata aqui, portanto, é uma necessidade de se articular mecanismos de mercado com políticas públicas, com mais mercado na parte propriamente da produção, e mais política pública na parte de acesso aos principais fatores de produção, como solo, água e tecnologia, além dos sistemas de financiamento e de gestão de estoques de regulação. As simplificações do tipo “o mercado resolve” são, portanto, míopes, ao não ver a necessidade de um enfrentamento sistêmico dos desafios.

Abaixo, algumas ideias soltas, apenas para dar uma noção dos potenciais subutilizados, e baseadas em propostas que têm funcionalidade comprovada, e que podem ser generalizadas.

• Cinturões verdes hortifrutigranjeiros em torno das cidades: cidade por cidade vemos desemprego e terra parada no entorno;

• Núcleos de serviços de apoio técnico, comercial e de equipamentos ao pequeno e médio agricultor: funcionam frequentemente como cooperativas de serviços de apoio;

• Compras públicas municipais e garantia de preços: estabilizar a demanda para os agricultores constitui um estímulo poderoso;

• Regulação e controle de impactos ambientais: o Brasil está poluindo os aquíferos, rios e lagos, contaminando os alimentos;

• Assegurar o funcionamento do imposto territorial rural: quem tem terra parada, ou vai produzir, ou vender para quem produza.

1International Land Coalition, dez. 2020: https://www.landcoalition.org/en/uneven-ground/executive-summary/, ver também em: https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/desigualdade-fundiaria-drama-global/.

(continua)

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