Dowbor: de nada vale culpar a maldade

Mais um capítulo do livro sobre engrenagens da economia — agora sobre pesca e exploração florestal. Não é a “cobiça humana” que liquida mares e matas, explica a obra — mas a crença na suposta “virtude” dos mercados, quando “livres” de controle

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MAIS:

> Este texto é a segunda parte do segundo capítulo da obra
O pão nosso de cada dia, de Ladislau Dowbor
Editora. Autonomia Literária | 202 págs. | R$ 35
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> O lançamento aconteceu no último dia 14. Assista a entrevista de Dowbor a Antonio Martins

> Outras Palavras publica o livro, em capítulos, às quartas-feiras

> Leia também: introdução; capítulo 1; capítulo 2 – parte 1

Exploração florestal

A necessidade de articular economia e política torna-se mais clara ainda na área da exploração florestal. A madeira pode ser produzida, e o Brasil possui hoje grandes plantações, essencialmente de pínus e eucalipto, ocupando cerca de 5 milhões de hectares. Esta atividade pode ser considerada como agricultura de prazo mais longo. Mas o essencial do problema está na exploração da madeira nobre, a mata original. E aqui o mecanismo de mercado emperra.Quando se tira um pé de mogno no sul do Pará (ainda que clandestinamente desde 2001), move-se uma máquina internacional de interesses. Primeiro,uma árvore de mogno em pé é um capital natural, de reprodução limitada. Quem o extrai não precisou produzir, portanto, trata-se mais de uma apropriação de valor do que de produção. Segundo, com as novas tecnologias, motosserras, tratores de esteira e semelhantes, a extração é dramaticamente acelerada. Terceiro, gerou-se uma máquina internacional de apropriação dessa riqueza, com fortes enraizamentos na política nacional e local, que tritura, literalmente, as tentativas de proteção. O resultado é que a madeira nobre em geral, e não apenas o mogno, desaparece, aqui e no resto do mundo. Na África então, com governos frágeis e interesses internacionais poderosos, e na Indonésia, onde o governo é cúmplice, a devastação é dramática.

A economia busca claramente apropriar-se da política, e das próprias leis. Podemos partir de um exemplo prático. A Friboi é da JBS, o maior grupo mundial na área de carne. O pesquisador e jornalista Alceu Castilho constata: “Existe uma bancada da Friboi no Congresso, com 41 deputados federais eleitos e 7 senadores. Desses 41 deputados financiados pela empresa, apenas um, o gaúcho Vieira da Cunha, votou contra as modificações no Código Florestal. O próprio relator do Código, Paulo Piau, recebeu 1,25 milhão de reais de empresas agropecuárias, sendo que o total de doações para a sua campanha foi de 2,3 milhões de reais. Então temos algumas questões. Por que a Friboi patrocinou essas campanhas? Para que eles votassem contra os interesses da empresa? É evidente que a Friboi é a favor das mudanças no Código Florestal. A plantação de soja empurra os rebanhos de gado para o Norte, para a Amazônia, e a Friboi tem muito interesse nisso. Será que é mera coincidência que somente 1 entre 41 deputados financiados pela empresa votou contra o novo código?” 1

A imagem do braço de ferro aqui é bastante útil. O Brasil, em 2002, desmatou 28 mil quilômetros quadrados da floresta amazônica. Em 2014, foram cerca de 5 mil, o que representa ainda um desastre, mas também um imenso avanço. O sistema do agronegócio reagiu reforçando a bancada ruralista, e conseguiu truncar o Código Florestal, tornando legal o que era crime ambiental. A eleição de 2018 reforçou mais ainda a bancada ruralista. A natureza não vota, não elege deputado federal. E desmatar é uma maneira muito rápida de chegar ao dinheiro. Em 2019 ultrapassamos o patamar de 10 mil quilômetros quadrados, um desastre ambiental e econômico, na medida em que destrói o capital natural do país e tende a nos fechar mercados consumidores preocupados com a sustentabilidade.

Outro conceito que ajuda a entender os mecanismos é o de interesses articulados, de clusters de poder. O Arco do Fogo, assim chamado porque representa o avanço dos interesses econômicos sobre a Amazônia com queimadas, forma um arco que vai do Pará até o Acre. As madeireiras se apropriam da madeira. Em seguida mobilizam peões da região para fazer as queimadas, o que limpa a terra e incorpora cinza ao solo, tornando-o temporariamente mais fértil, o que, por sua vez, mobiliza os interesses dos produtores e comercializadores da soja. Depois de alguns anos de monocultura, esses solos frágeis e sujeitos a chuvas torrenciais sem a proteção da floresta tornam-se pouco produtivos, o que abre espaço para a pecuária extensiva vista previamente. E o ciclo tem de recomeçar empurrando a fronteira de destruição.

Entre os interesses nacionais e internacionais da madeira, da soja e da carne, gera-se um cluster de interesses comuns, e com a lei de 1997 que autorizou o financiamento corporativo das campanhas eleitorais (até fins de 2015), a própria legislação foi apropriada. Vemos aqui como se articulam os interesses da madeira, da soja e da carne, apoiados pelos gigantes financeiros internacionais que constituem os traders de commodities, e com a conivência do Legislativo e do Judiciário. Forma-se um cluster de poder difícil de ser enfrentado, já que é o próprio poder regulador, o Estado, que foi em grande parte apropriado.

Com o governo atual, o desastre se amplia. Lembremos que a BlackRock, importante trader de commodities e especulador financeiro, maneja ativos da ordem de 8,7 trilhões de dólares, cerca de seis vezes o PIB do Brasil. Ao liberar o desmatamento, não estamos exercendo nosso direito em explorar a Amazônia, estamos entregando um capital natural aos interesses dos traders.

O mecanismo econômico aqui é importante. Quanto mais as tecnologias avançam, mais caem os custos de extração, transporte e comercialização da madeira. E quanto mais escassas se tornam as madeiras nobres, mais se elevam os seus preços nos mercados internacionais. Estamos falando em milhares de dólares por tronco. O resultado é que quanto mais uma espécie é ameaçada, mais as empresas as tentam extrair. Hoje o mogno tem extração controlada no Brasil, mas como é muito lucrativo o negócio, continua de maneira clandestina, enquanto o grosso da extração legal se deslocou para o Peru, onde foi mais fácil se apropriar das leis. Assim, a liquidação das espécies nobres é tanto mais lucrativa quanto mais se tornam escassas, levando à extinção. Os mercados passam a destruir a própria base da economia.

Não há nenhuma “maldade” particular por parte das empresas envolvidas, é lógica econômica. Enquanto não houver sistemas públicos de regulação, e força suficiente para implementar a lei, a destruição deve continuar. E se as empresas são suficientemente poderosas para comprar legisladores, e com isso tornar a destruição legal, não há limites. O que aparece aqui com muita clareza é que não há como pensar a economia separada da política, nas suas diversas dimensões, incluindo o papel da mídia e do Judiciário.

Voltando às ideias e propostas que sabemos que funcionam e tendem a equilibrar os processos, sugerimos:

• Forte proteção legal das regiões ameaçadas: a apropriação privada de bens públicos precisa ser apresentada como é: apropriação indébita;

• Desenvolver atividades econômicas alternativas e exploração sustentável das florestas: existem inúmeras práticas no Brasil e em outros países;

• Apoiar as organizações da sociedade civil especializadas e organizações comunitárias que batalham pela sustentabilidade: gerar informação e transparência é essencial;

• Tributar fortemente a exploração de riquezas naturais não reproduzíveis, valorizando a produção sustentável.

Pesca

A pesca industrial confirma esses mecanismos. Temos, por um lado, a pesca artesanal tradicional, que emprega cerca de 300 milhões de pessoas pelo mundo afora e, pela escala de atividades, não prejudica a reprodução dos recursos pesqueiros, além de gerar empregos e de fornecer proteínas preciosas para as populações litorâneas. Por outro lado, o que se expandiu muito foi a pesca industrial, que usa grandes navios, sistemas gps que permitem o mapeamento das rotas de cardumes, identificação de concentração de biomassa por satélite, enormes capacidades de estocagem de frio a bordo, redes grandes e resistentes com as novas fibras, sistemas de dragagem das plataformas marítimas que capturam tudo que é vivo, e deixam um deserto por onde passam.

A lógica aqui é parecida com a da exploração das florestas. As novas tecnologias permitem a pesca em grande escala e com custos muito reduzidos. A pesca industrial com isso ultrapassa os 90 milhões de toneladas por ano. Não há vida oceânica que resista. Como no mundo há uma demanda crescente, enquanto o volume de pesca dos peixes comercialmente mais interessantes escasseia, os preços sobem. Aqui também vemos os custos caírem, graças às novas tecnologias, enquanto os preços sobem no mercado, em função da escassez, tornando o processo mais lucrativo. No estudo do WWF visto anteriormente, constatou-se a perda de 39% da fauna marítima entre 1970 e 2010, um desastre planetário.

Do ponto de vista das corporações da pesca, dirigidas por pessoas formadas e que entendem tudo de pesca, as opções são limitadas: se uma empresa decidir se limitar aos volumes de pesca sustentável – permitindo aos recursos pesqueiros se reconstituírem –, ela sabe que outra empresa vai buscar o mesmo peixe. Com uma situação dessa, enquanto não houver regras para todos, não haverá regras, apenas a exploração predatória. A livre competição, frente a recursos esgotáveis, é desastrosa.

No caso das florestas visto antes, há uma razoável possibilidade de regulação, pois as matas se situam em países com governos, e se eles puderem resistir às pressões das corporações, pode haver regulação, como foi o caso parcialmente no Brasil até 2016. Mas no caso dos mares, tirando as zonas exclusivas nas costas, ninguém regula as águas internacionais. E não há governo mundial. Assistimos assim a sucessivas reuniões internacionais que pedem aos países interessados que limitem os volumes, mas os resultados são precários. O que se conseguiu até agora são algumas limitações sazonais, redução de extração de algumas espécies mais ameaçadas e a formação de uma

zona de proibição total de pesca no Pacífico, visando assegurar espaços para os peixes se reproduzirem. Mas entre o avanço das tecnologias, o poder das corporações e os lucros gerados pela extração de uma riqueza que a corporação não precisou produzir, levando em conta a frágil governança internacional, a luta é desigual.

Com a exaustão crescente dos recursos, desenvolveu-se a produção de peixes em fazendas aquáticas, o fish-farming. Hoje quase a metade do peixe no mercado vem de produção industrial em fazendas desse tipo. A lógica aqui é um tanto parecida com a das florestas plantadas, que ajudam, mas não resolvem. No caso das fazendas aquáticas, o problema é que o peixe é confinado e precisa ser alimentado, o que, por sua vez, exige a captura de peixes para fabricar a ração. O resultado é, por exemplo, o salmão que compramos no mercado, e cuja cor característica se deve ao corante acrescentado, pois salmão em cativeiro não adquire naturalmente a cor do peixe solto na natureza. Ainda que muitos apresentem a criação em cativeiro como solução, a situação é bastante absurda, pois os mares e oceanos já representavam um gigantesco sistema natural de reprodução, não era preciso destruí-los.

Ponto importante: o esgotamento dos recursos pesqueiros naturais e sua substituição por peixes criados em cativeiro destrói os milhões de empregos da pequena pesca artesanal, e todos se verão obrigados a comprar o peixe das corporações que gerem os latifúndios aquáticos. As soluções econômicas nunca são apenas econômicas, sempre têm implicações sociais. Cerca de 300 milhões de pessoas no mundo, como vimos, vivem ou viviam da pesca artesanal. É só acompanhar os seus relatos sobre a diminuição dos recursos nas costas para entender o drama.

Vemos aqui, indo de setor em setor, problemas bastante parecidos: a empresa naturalmente busca maximizar o lucro, e a concorrência de outras empresas a leva a acelerar a extração, antes que outra empresa agarre o produto. O solo, a água, a madeira e o peixe são bens herdados da natureza, cujo custo de produção as empresas não tiveram de enfrentar, e passa a prevalecer a lógica do mais forte, de quem chega primeiro. O belíssimo ébano vê hoje desaparecer as últimas árvores no Madagascar. A compra de imen- sas regiões com solo e água na África, no Brasil, na Europa do Lesse e em outras localidades, por parte de grandes corporações, apostando na futura valorização e no controle sobre recursos escassos, faz parte dessa lógica.

O desafio de uma humanidade fadada a aprender a limitar a exploração da natureza é que não temos governança planetária – a fragilidade da ONU é bastante evidente –, mas temos, sim, corporações planetárias, e interesses ilimitados. Na linha das sugestões, lembrando que estamos apenas dando exemplos de iniciativas possíveis, que, inclusive, variam muito segundo países e regiões, podemos:

• Batalhar por acordos internacionais que permitam reverter a extinção de tantas espécies pela sobrepesca;

• Proibir o by-catch, que é o descarte de peixes de menor valor comercial, prática que destrói inutilmente e rompe as cadeias alimentares nos mares;

• Controlar os recursos tecnológicos utilizados pelas corporações da pesca: isso vai desde a dinamite usada nos rios até os tipos de redes;

• Assegurar apoio às organizações da sociedade civil, como o Greenpeace, e cooperativas de pesca que assegurem a pesca sustentável.

Os trabalhos de Elinor Ostrom sobre a governança dos bens comuns, constituem uma excelente sistematização de formas de gestão que escapam da simples estatização ou privatização. Prêmio Nobel muito merecido.

1 Alceu Castilho, Partido da terra: http://dowbor.org/2013/04/ha-um-sistema-politico-ruralista-no-brasil-afirma-autor-do-livro-partido–da-terra-abril-2012-6p.html/.

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