Megafundos financeiros: Abrimos a caixa-preta

Casas. Hospitais. Estradas. Redes hídricas. Fazendas eólicas. Infraestruturas indispensáveis à vida estão sendo capturadas por “gestoras de investimento” como a BlackRock. Quais são? Como surgiram? De que forma afetam as sociedades?

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Brett Christophers em entrevista a Derek Seidman, no Truthout | Tradução: Antonio Martins

A quem o mundo pertence? Nos últimos anos, um tipo de ator financeiro despontou como resposta a esta questão: as empresas de administração de ativos.

As “administradoras de ativos” supervisionam dezenas de trilhões de dólares em investimentos em ativos em todo o mundo. As empresas mais conhecidas são as “Três Grandes”: BlackRock, Vanguard e State Street Global Advisors. Seu modelo de negócios baseia-se em grande parte nos chamados fundos de índice “passivos”, cujos investimentos em ações tornam essas empresas os principais acionistas de milhares de corporações.

Mas as administradoras de ativos não possuem apenas instrumentos financeiros como ações e títulos da dívida de empresas e Estados. Elas são cada vez mais as proprietárias diretas dos ativos “reais que moldam nossos meios de subsistência. De casas a hospitais, redes de água a parques eólicos – as empresas de administração de ativos [asset management firms, em inglês] com nomes como Blackstone, Brookfield e Macquarie estão devorando as estruturas básicas das quais todos dependemos para existir. E com o objetivo de extrair grandes lucros da forma mais implacável e rápida possível, essa nova sociedade não é um bom presságio para a humanidade.

Este é o tema do novo livro de Brett Christophers, Our Lives in Their Portfolios: Why Asset Managers Own the World [“Nossas vidas em seus portfólios: Por que as administradoras de ativos governam o mundo”, em tradução aproximada], publicado pela Verso press. Christophers abre a cortina de um setor notoriamente opaco e o desmistifica, examinando clara e minuciosamente o que é, as forças que o impulsionam a extrair lucro impiedosamente e o que tudo isso significa para o nosso futuro coletivo.

Christophers é professor do departamento de Geografia Social e Econômica da Universidade de Uppsala, na Suécia. Ele é o autor ou coautor de cinco livros anteriores, incluindo Rentier Capitalism: Who Owns the Economy, and Who Pays for It?

Nesta entrevista exclusiva a Truthout, Christophers discute o que as administradoras de ativos fazem, como são programadas para ampliar agressivamente os lucros, como capturam cada vez mais “ativos reais” como habitação e infraestrutura de energia, e o que podemos fazer a respeito.

Embora as administradoras de ativos tenham muito poder em nossa sociedade, muitas pessoas não sabem o que são, como operam e por que são tão poderosos. Você pode nos propor um breve resumo?

Brett Christophers : Na realidade, é um negócio simples. Administradoras de ativos são empresas que investem em nome de terceiros. Eles captam dinheiro de investidores finais, — tanto indivíduos ricos quanto investidores institucionais, como planos de aposentadoria privados e seguradoras. As administradoras de ativos realizam seus investimentos e esses investidores pagam taxas por esse serviço.

Isso é basicamente o que as administradoras de ativos fazem: investem o dinheiro dos outros e ganham comissões por isso. Elas podem investir em muitas coisas diferentes, como ativos financeiros (ações, títulos, ou outros) – qualquer coisa, na verdade.

Elas deixaram de ser atores marginais na economia há algumas décadas, para serem muito significativas hoje. A forma tradicional de medir seu tamanho ou importância é a quantidade de capital que administram. Na década de 1970, era menos de um trilhão de dólares globalmente. Hoje, esse número é da ordem de US$ 100 trilhões — mais que o PIB de todo o planeta.

Ou seja: elas passaram de nada, essencialmente, a extremamente grandes, em um espaço de tempo relativamente curto.

Qual é o papel dos “fundos” no negócio de administração de ativos?

Se você é um administrador de ativos que reúne capital de clientes, precisa de um veículo que lhe permita amealhar estes recursos e investi-los. O fundo de investimento é o principal veículo utilizado para isso. Esses fundos vêm em diferentes formas e tamanhos – fundos de riqueza privada [private equity], fundos de índice, fundos mútuos – mas são todos criações da indústria de administração de ativos.

Quando você lê que, digamos, a BlackRock comprou este ou aquele ativo, é uma forma abreviada de dizer que um fundo de investimento administrado pela BlackRock comprou o ativo. Na verdade, isso significa que os verdadeiros proprietários do ativo não são os gestores de ativos, mas as diferentes entidades – e pode haver centenas delas – que destinaram dinheiro a esse fundo de investimento. A BlackRock pode colocar uma pequena quantia de seu próprio capital em seus fundos – normalmente, cerca de 2% — mas a maior parte do capital do fundo é de fundos privados de aposentadoria, seguradoras e indivíduos de alto patrimônio líquido.

O fundo está no cerne do setor porque é o veículo por meio do qual os administradores de ativos fazem o que fazem. É por isso que eles costumam ser chamados de “gerentes de fundos”.

Administradoras de ativos como a BlackRock e Vanguard recebem muita atenção. Têm participações acionárias significativas em milhares de empresas. Mas você quer colocar o foco em administradoras que controlam diretamente “ativos reais”, como residências, serviços públicos e hospitais. Por que achou importante fazer essa distinção em sua análise?

As administradoras de ativos convencionais investem principalmente em ações de empresas de capital aberto, como as da Apple e Google, e títulos de dívida emitidos por essas empresas e por governos. Normalmente, fazem isso por meio dos chamados “fundos de índice” que replicam o desempenho dos principais índices do mercado, como o S&P 500.

Há uma boa razão pela qual as administradoras de ativos convencionais estão no foco. É aí que a ocorre a maior parte do investimento, em termos de números absolutos. Se você olhar o registro de acionistas de qualquer grande empresa listada nos Estados Unidos, verá os BlackRocks e os Vanguards.

Eu mudo o foco por alguns motivos. Por um lado, gestores de ativos convencionais como BlackRock e Vanguard já receberam muita atenção como proprietários de corporações capitalistas contemporâneas. Mas também argumento que seu significado é superestimado. Argumenta-se que, como essas empresas possuem 7% ou 8% de todas as grandes empresas, elas de alguma forma controlam a economia global. Não acho que tenham esse tipo de controle, nem mesmo que o desejem. Esse não é seu modelo de negócios.

Argumento que há toda uma outra área de gerenciamento de ativos, muito mais diretamente relevante para a vida cotidiana das pessoas: a propriedade e controle, pelos administradores de fundos, de “ativos reais” dos quais dependemos fundamentalmente — como habitação e infraestrutura: redes elétricas, sistemas de estacionamento em centros urbanos, estradas com pedágio, hospitais, escolas, terras agrícolas e assim por diante.

Na medida em que os gestores de ativos são proprietários de moradias e infraestruturas das quais dependemos, e que determinam quanto custa para nós morarmos naquela moradia e usarmos essa infraestrutura, eles também determinam as condições em que esses ativos existem e têm um enorme impacto sobre nossas vidas diárias. É algo que tem sido muito pouco abordado e debatido.

Às vezes, você usa palavras como “extrativo” e “colonizador” para descrever a relação entre os gestores de ativos e os ativos reais que eles controlam. Você pode elaborar?

Embora todos os proprietários privados tentem obter lucro, os administradores de ativos tendem a ser particularmente implacáveis e obstinados em ganhar com os ativos que supervisionam.

Há várias razões estruturais para isso. Uma delas são os altíssimos salários nessas empresas. Um artigo no Financial Times relatou que o salário médio na Blackstone agora é de cerca de US$ 2 milhões anuais. Não é possível pagar esse tipo de salário, a menos que você seja bastante implacável em extrair lucros dos ativos que possui. Você não pode ser um proprietário que oferece descontos no aluguel aos inquilinos e paga US$ 2 milhões para seus diretores.

Da mesma forma, os fundos de investimento administrados por gestores de ativos reais cobram taxas muito altas, em comparação com os fundos de índice. A norma do setor é cobrar dos investidores uma taxa de administração de 2% ao ano e uma taxa de desempenho de 20%. Isso só é possível quando se promete aos investidores retornos muito altos. E você só pode entregar esses altos retornos se for muito implacável e focado em extrair lucro. Como gerente de ativos, você é compelido pela natureza do seu negócio a ser implacável.

Outro fator importante são os horizontes de tempo de curto prazo envolvidos na gestão de ativos reais. Os gestores de ativos afirmam ser guardiões comprometidos e cuidadosos de habitação e infraestrutura. Mas, na realidade, seus investimentos em ativos reais são realizados principalmente por meio de fundos “fechados” que têm uma vida fixa – digamos, 10 anos. Isso significa que — e esta é uma das coisas mais importantes a entender sobre todo o setor de gestão de ativos — quando os gestores de ativos compram casas e infraestrutura, quase sempre os compram com a intenção de vendê-los dentro de sete ou oito anos – ou mesmo dois ou três anos, se puderem obter um grande lucro.

Em outras palavras, assim que um gestor de ativos investe em um ativo habitacional ou de infraestrutura, a primeira coisa em sua mente é: “Como podemos maximizar o preço de venda o mais rápido possível?” Se estamos falando sobre habitação, isso significa aumentar os aluguéis o mais rápido e o mais alto possível. Significa minimizar os custos operacionais relacionados a investir dinheiro e ser um bom proprietário, e aderir a soluções Band Aid para manutenção.

Você pode dizer mais sobre como a necessidade humana básica de habitação caiu sob o domínio dos gestores de ativos e as implicações disso?

No início da década de 1990, os gestores de ativos começaram a comprar significativamente nos mercados imobiliários globais, mas isso aumentou após a crise financeira de 2008. De repente, você tinha enormes estoques de “moradias problemáticas” por causa de execuções hipotecárias maciças, especialmente nos Estados Unidos. Muitas casas ficaram rapidamente disponíveis e muito baratas. Vergonhosamente, o governo dos Estados Unidos permitiu que grandes gestores de ativos comprassem grandes quantidades de imóveis em condições muito favoráveis.

Desde então, o investimento das administradoras de ativos em habitação cresceu cada vez mais. Não surpreende que os aluguéis subam tanto, nos Estados Unidos e internacionalmente. Não há casas suficientes sendo construídas em muitos lugares, os aluguéis estão subindo, e isso é algo em que os gestores de ativos querem investir. Os governos não impediram que as administradoras comprassem uma imensa quantidade de moradias. Na verdade, eles as encorajaram.

As implicações foram muito negativas. Por um lado, o rápido aumento dos aluguéis em moradias que ficaram sob o controle das administradoras de ativos. Por outro lado, resultados deletérios em outros aspectos da habitação além do aluguel, como despejos. Se você observar os índices de despejo em uma determinada região metropolitana e comparar as moradias alugadas pertencentes a administradoras de ativos com as habitações pertencentes a outros tipos de proprietários, verá que os índices de despejo tendem a ser substancialmente mais altas quando os proprietários são gestores de ativos.

Você aponta como os gerentes de ativos capturaram grande parte de nossa infraestrutura. E é provocativo ao dizer que “a transição dos combustíveis fósseis para os renováveis também representa uma transição para a sociedade de administração de ativos”. Você pode elaborar essa afirmação?

Uma coisa que quase nunca se fala em relação à transição energética é o que isso significa em termos de propriedade. A infraestrutura de energia baseada em combustíveis fósseis foi, em todo o mundo mais ou menos dividida entre o setor público e o setor privado. Empresas estatais são grandes proprietárias de reservas de combustíveis fósseis. Mas, no Ocidente, o Estado está ausente das instalações de energia limpa. É algo que ficou, em sua maior parte, nas mãos do setor privado.

Por isso, à medida que fazemos a transição da energia fóssil para a verde, estamos migrando, nas condições atuais, para um tipo de infraestrutura predominantemente de propriedade privada. Isso não deveria ser surpreendente. A propriedade privada tornou-se o padrão para a governança neoliberal nos últimos 30 ou 40 anos, quando a transição para a energia verde começou.

Em todo o mundo, usando várias formas de incentivos, os governos contam com o setor privado para construir infraestruturas de energia verde. E onde, no setor privado, está a maior parte do capital para investimento? É mantido por administradoras de ativos. Elas têm o maior capital disponível para realizar esse investimento.

Por exemplo, a Brookfield Asset Management, sobre a qual escrevo, é uma das maiores proprietárias de ativos de energia limpa de qualquer tipo. Se for aos bosques da Suécia, onde moro, e vir um parque eólico, são muito altas as chances de que a BlackRock seja a proprietária.

Assim, à medida em que fazemos a transição de combustíveis fósseis para energia limpa, também estamos cada vez mais transitando para o que chamo de “sociedade gestora de ativos”. E precisamos ter muito cuidado com isso. Quando as administradoras de ativos são proprietárias da infraestrutura, os resultados geralmente não são bons para a sociedade.

Além disso, ao contar com o setor privado em geral e com os gestores de ativos em particular para conduzir a transição energética, estamos de fato contando com o contínuo subsídio do Estado a esses investimentos. As administradoras de ativos são avessas ao risco. Quando se trata de energia limpa, eles esperam que os Estados reduzam o risco desses investimentos com subsídios — exatamente como, por exemplo, o governo Biden fez, nos EUA, por meio da Lei de Redução da Inflação. Ao vincular as sociedades a subsídios de longo prazo à energia limpa de propriedade das administradoras de ativos, o setor público está assumindo grande parte do risco sem nenhuma recompensa.

A empresa de administração de ativos mais conhecida atualmente pode ser o Blackstone Group, que você discute em seu livro. Como a Blackstone incorpora os principais recursos da sociedade de gestão de ativos?

A Blackstone tornou-se um para-raios para uma crítica mais ampla aos gestores de ativos. Pode ser por causa dos personagens envolvidos. Stephen Schwarzman, que cofundou a Blackstone em 1985 e é seu CEO desde então, é um indivíduo de alto perfil e pitoresco. Era um defensor declarado de Donald Trump, o que atraiu muita atenção para ele. Sempre que os políticos nos Estados Unidos tentam controlar o setor de gestão de ativos, ele revida com muita agressividade.

É também o tamanho de Blackstone. É o maior proprietário mundial de imóveis. Tornou-se a maior proprietária de residências unifamiliares nos Estados Unidos. Mas embora seja muito importante, ela não está fazendo nada fundamentalmente diferente de outras administradoras de ativos. Todas adotam o mesmo tipo de modelos. A Blackstone consegue levantar mais capital de investidores, mas não está conduzindo seus negócios de maneira fundamentalmente diferente.

A sociedade de administração de ativos representa, para você, uma forma fundamentalmente nova de capitalismo?

Não acho que o papel mais proeminente dos gestores de ativos represente uma nova forma de capitalismo. No entanto, acredito que é a principal manifestação da dimensão rentista do o capitalismo contemporâneo.

Sempre houve um aspecto do capitalismo que trata controlar, de modo monopolista, os recursos ou ativos essenciais — e ganhar renta por meio desse controle. Nas últimas décadas, entramos em uma etapa do capitalismo em que esse aspecto rentista é particularmente proeminente, e onde os rentistas acumularam muito mais poder e lucro que anteriormente. A política neoliberal criou as condições para um ressurgimento do rentista , e as administradoras de ativos são uma personificação primária dessa re-rentização do capitalismo.

Você apresenta um caso convincente sobre o poder e o alcance das administradoras de ativos sobre nossas vidas e como elas são estruturadas para hiperexplorar trabalhadores e inquilinos. O que deve ser feito para desafiar seu poder?

Acho que as administradoras de ativos estão pouco vulneráveis no momento. Parte de sua força vem do fato de serem praticamente invisíveis para a maior parte das pessoas. E conseguiram enganar com sucesso muitos formuladores de políticas. De alguma forma, persuadiram os governos de que são guardiões decentes dos ativos que controlam e também estão ajudando os aposentados comuns a obter bons retornos de suas economias para a aposentadoria.

Mas elas têm uma vulnerabilidade. Muitas pesquisas mostram que os tipos de gestores de ativos que examino em meu livro não fornecem retornos particularmente fortes. Quando deduzidas as taxas que cobram, elas não estão entregando retornos muito melhores, em média, do que um fundo de índice básico. E os casos de falência catastrófica são comuns.

Há algo a fazer? Claro. Você pode simplesmente impedi- los de possuir certos tipos de coisas. Não há nada que impeça os governos de dizerem que certos tipos de ativos simplesmente não deveriam pertencer a certos tipos de atores, como gestores de ativos. Você poderia proibi-lo e isso seria provavelmente bastante popular.

Você também pode tornar ativos reais pouco atraentes para investir. Por exemplo, a Blackstone começou a comprar muitas casas em Berlim em 2017, mas o governo local introduziu uma nova regulamentação que limitou a capacidade dos proprietários de aumentar os aluguéis e até forçou uma redução. A Blackstone disse imediatamente: “Ok, não estamos mais investindo em moradias em Berlim”. É possível pode fazer coisas assim. Infelizmente, cerca de um ano depois, a lei de aluguel de Berlim foi anulada , mas o fato de a Blackstone ter dito que não iria mais investir mostra que você pode aprovar medidas para tornar esses ativos pouco atraentes.

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Um comentario para "Megafundos financeiros: Abrimos a caixa-preta"

  1. Alvaro Abrantes Cerqueira disse:

    Excelente, necessária e inadiável debate sobre os metafundos de investimento; uma nova forma de capitalismo, com a maior concentração de poder da história humana. Uma armad
    ilha da qual não conseguiremos escapar, mas conhecê-la é fundamental. Pelo menos não poderão dizer que nós fizeram de bobos.

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