A estranha lógica do capitalismo-chacal

Empresários e os donos do dinheiro costumavam celebrar o crescimento das economias – pois isso lhes permitia auferir mais lucros. Na era da financeirização, isso mudou: o desejável, para estes grupos, passou a ser a estagnação. Por que?

Imagem: Chacal (1973), de Rufino Tamayo
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Título original: A quem interessa a agenda da recessão e do desemprego?

O PIB médio per capita no Brasil ao longo dos governos Temer e Bolsonaro está abaixo dos US$ 8.500, ainda inferior ao PIB médio per capita dos governos Dilma, que ficou ligeiramente acima de US$8.9001.

O país não cresce e isso vem se tornando o “novo normal”.

Ao mesmo tempo, representantes do “mercado” e das maiores empresas parecem seguir alheios à agenda do crescimento, da renda e do emprego.

Mais que isso. Em suas aparições diárias na grande mídia, a atenção desses atores permanece centrada na manutenção do teto de gastos e de uma reforma trabalhista que não gera empregos.

Face a essa indiferença, parece legítimo perguntar se a agenda do crescimento não seria, afinal de contas, consensual.

Entre dezembro de 2011 e dezembro de 2021 (uma década), o PIB brasileiro medido em US$ recuou de US$ 2,62 trilhões para US$ 1,61 trilhão2. Uma queda de 38%.

Exatamente no mesmo período, e medidos na mesma moeda, os Ativos sob Gestão dos Fundos de Investimento no Brasil passaram de US$ 1,05 trilhão para US$ 1,23 trilhão3. Um crescimento de 17%.

É uma discrepância que chama a atenção: -38% vs +17%.

Essa relação inversa e aparentemente contraintuitiva entre crescimento econômico e o volume de dinheiro aplicado nos fundos de investimento – leia-se “mercado” – não chega a ser surpreendente, nem tampouco uma exclusividade verde-amarela.

O estoque de dinheiro “estacionado” globalmente nos fundos de investimento em 2018 era de US$ 79,1 trilhões. Em 2021 esse número saltou para US$ 112,3 trilhões4. Ou seja, durante os três anos da crise da Covid-19, a mesma que desmantelou inúmeras cadeias produtivas mundo afora, provocando uma das maiores recessões já registradas, os fundos cresceram nada menos que 42%. Isso mostra claramente o quão distante o crescimento econômico está da agenda do “mercado”.

E não é difícil entender o porquê.

Em períodos de crescimento acelerado, as empresas são praticamente forçadas a direcionar seus lucros e disponibilidades financeiras para suportar seus investimentos em expansão, pois do contrário, serão simplesmente engolidas pela concorrência. É uma questão de sobrevivência.

Da mesma forma, quando a economia cresce e os índices de desemprego caem, as famílias sentem-se mais seguras para adquirir um imóvel, trocar de carro ou mesmo planejar uma viagem.

E em ambos os casos isso significa menos dinheiro “estacionado” nos fundos de investimento, como também menos demanda desses fundos por ativos financeiros, cujos preços tendem a ficar mais deprimidos.

Já em períodos de recessão ou estagnação a situação se inverte. Como os investimentos em expansão despencam, as empresas tendem a direcionar parcelas crescentes de seus lucros ao pagamento de dividendos, recursos esses que os acionistas direcionam aos fundos, que por sua vez são obrigados a ir ao mercado comprar mais ativos financeiros, cujos preços tendem a se apreciar.

As famílias, com o risco de desemprego agora ampliado, passam também a gastar menos, mantendo suas parcas economias aplicadas nos fundos, para eventuais emergências.

Se considerarmos ainda que os riscos de inflação são claramente maiores quando as economias crescem (salários mais altos, pontos de estrangulamento nas cadeias produtivas, tudo isso pressionando preços), e que inflação é sabidamente ruim para as taxas de retorno dos ativos financeiros (em sua vasta maioria não-indexados), não chega a ser surpreendente o fato da agenda do crescimento ser nitidamente incômoda para o “mercado”.

Estudo conduzido por Dimson, Marsh e Staunton5, da London Business School, abarcando as 19 maiores economias do mundo no período compreendidio entre 1900 e 2011, aponta para uma significativa correlação inversa (-0.39) entre o crescimento do PIB e as taxas de retorno dos mercados de ações.

A mesma análise rodada para 15 economias emergentes entre 1988 e 2011 apontou para uma correlação surpreendentemente similar entre PIB e as taxas de retorno nos mercados financeiros (-0,41).

Ou seja, os mercados performam melhor quando a economia vai mal.

Crescimento econômico significa para os fundos de investimento não apenas um volume menor de recursos (sobre os quais eles cobram suas taxas de administração), como também taxas de retorno mais baixas sobre os ativos financeiros (retorno sobre o qual os fundos cobram suas taxas de performance). Em resumo, com crescimento econômico, nada a ganhar e muito a perder sob a ótica do “mercado”.

Não é por outra razão que você nunca ouviu um economista de “mercado” dizer que é preciso deslanchar a economia. Mas ouve diariamente eles dizerem que os governos precisam cortar gastos.

E quando algum governo insiste em ressuscitar sua economia, ele é severamente punido pelo “mercado”. A vítima mais recente foi o Reino Unido, que decidiu aquecer a economia fazendo um corte de impostos (teoricamente isso aumenta a renda disponível das famílias e empresas, que podem assim gastar mais). Os fundos não gostaram. Venderam suas posições de títulos do Tesouro Britânico. A libra despencou e a carreira da primeira-ministra Liz Truss durou exatos 44 dias, sendo substituida por Rishi Sunak, ex-Goldman Sachs e sócio de dois fundos de investimento – o TCI e o Theleme Partners.

O volume de recursos hoje administrados globalmente pelos fundos (US$ 112,3 trilhões)6 é bem superior ao PIB mundial (US$ 96,1 trilhões)7. Quando esses atores decidem comprar ou vender alguma coisa, eles não produzem marolas. Produzem tsunamis.

Mas e no caso das empresas? O crescimento da renda e do emprego não seriam essenciais à ampliação de suas receitas e lucros?

A resposta aqui é sim e não, a depender do porte da empresa e da posição que ela ocupa dentro de seu segmento de atuação.

Para a grande maioria das pequenas e médias empresas a resposta é sim. O crescimento econômico é claramente o caminho mais óbvio para a expansão de sua receita e de seus lucros.

Já para as grandes empresas, líderes de mercado, a resposta quase sempre é não. Essas empresas contam com um outro caminho estratégico bem mais interessante para o seu crescimento: as Fusões e Aquisições.

Essas operações vem batendo recordes sucessivos em todo o mundo. E no Brasil não tem sido diferente. O número dessas transações saltou aqui de 838 em 2018, para 1901 operações em 20218. Um crescimento de 126% em apenas 3 anos.

As razões pelas quais as grandes empresas vêm privilegiando cada vez mais essa estratégia – também conhecida como Crescimento Inorgânico – são várias, mas duas delas essenciais:

– Minimização de Riscos: as incertezas envolvidas na aquisição de uma empresa ou na fusão de duas empresas já existentes são claramente menores que aquelas contidas no desenvolvimento de um novo projeto. No caso de uma aquisição, por exemplo, o mercado controlado pela empresa adquirida é totalmente conhecido, como são conhecidos sua estrutura de custos, tecnologia, rentabilidade, fluxo de caixa, excelências e pontos fracos. Isso torna essa estratégia de crescimento muito mais segura para os investidores, pois elimina qualquer tipo de “aposta no escuro”.­­­

– Maximização de Resultados: diferentemente de um projeto novo, que pode levar dois ou três anos para alcançar seu estágio operacional, e outros tantos para a construção de uma nova base de clientes, no caso do Crescimento Inorgânico tudo isso é instantaneamente absorvido pela empresa adquirente, o que encurta em muito o tempo de retorno do investimento. Com essa estratégia é possível crescer 30, 40 ou 50% em um único ano. Além disso, as chamadas “sinergias”, consubstanciadas em economias de escala e poder de mercado são fatores decisivos para a rentabilidade. Uma empresa que adquire um concorrente passa a ter duas áreas financeiras, duas áreas de marketing, duas áreas de compra, o que torna possível a eliminação quase que imediata dessas redundâncias, resultando em cortes significativos nos custos com pessoal.

Além disso, o poder de mercado da empresa – agora ampliado – possibilita a renegociação de custos junto aos fornecedores, e de preços junto aos clientes, em bases obviamente mais favoráveis para a empresa, alavancando ainda mais sua rentabilidade.

É fato que as práticas gerenciais descritas acima são absolutamente legítimas – empresas têm todo o direito de decidir como querem crescer, da mesma forma que fundos de investimento têm todo o direito de decidir o que comprar ou vender.

Todavia, seus impactos na economia não são neutros, sobretudo nas duas dimensões que examinamos a seguir:

  1. PIB e Emprego
  2. Déficit e Endividamento Público

Em relação ao primeiro aspecto, PIB e Emprego, cabe salientar que as decisões tomadas pelas empresas de investir ou não investir, de contratar a construção de uma nova planta, ou de comprar uma fábrica já existente não são, de forma alguma, neutras do ponto de vista do crescimento econômico, da renda e do emprego. Quando se decide pela compra de um concorrente, por exemplo, o “investimento” realizado pela empresa adquirente não se traduz na produção de nenhum bem ou serviço novo e, portanto, seu impacto sobre o PIB é rigorosamente zero (na melhor das hipóteses).

O que ocorre aqui é tão somente uma troca de ativos: a empresa adquirente resgata recursos que estavam aplicados em fundos de investimento e os entrega aos acionistas da empresa adquirida. Esses, por sua vez, voltam a aplicá-los nos fundos de investimento. Nada aconteceu. O mesmo raciocínio – cabe aqui lembrar – se aplica às privatizações. Elas significam apenas troca de ativos, se encaixando perfeitamente na estratégia de Crescimento Inorgânico.

De outro lado, após essas aquisições, o número de empregos em geral cai significativamente, reduzindo a massa de salários e ampliando, na mesma medida, a massa de lucros, com implicações também óbvias sobre a distribuição funcional da renda (salários vs lucros).

Não apenas isso. Empresas menores e menos eficientes ficam em geral financeiramente fragilizadas durante períodos de recessão ou estagnação prolongados, o que avilta o valor das mesmas, desestimulando seus acionistas a continuarem no negócio.

Portanto, é muito mais fácil e barato para as grandes empresas líderes adquirirem concorrentes numa economia estagnada do que numa economia em rápido crescimento, onde existe espaço para todos, inclusive para as empresas menos eficientes. Assim, é perfeitamente possível para as grandes empresas crescer de forma acelerada, ampliando seus lucros e suas participações de mercado, mesmo quando a economia esteja andando para trás.

Em outras palavras, não só a estratégia de Crescimento Inorgânico não contribui para o crescimento da renda e do emprego, como períodos de estagnação prolongada configuram um cenário ideal para a implementação dessa estratégia.

Essa é a razão pela qual a agenda do crescimento da renda e do emprego também não sensibiliza as maiores empresas. E em certa medida até mesmo colide com seus objetivos estratégicos.

Em relação ao segundo aspecto – Déficit e Endividamento Público – é importante notar que economias em recessão ou estagnadas acabam necessariamente por produzir déficits públicos e aumento no endividamento dos governos.

O equilíbrio fiscal (arrecadação de impostos = gastos do governo) depende de uma relação muito simples e fácil de compreender.

P / G = (1 / t) – 1

Na equação acima, P representa os gastos do setor privado (consumo das famílias mais os investimentos “novos” das empresas; a compra de ativos produtivos já existentes não entra na composição de P); G representa os gastos do governo; t representa a chamada carga tributária, que nada mais é que o percentual de impostos arrecadados em relação ao PIB. O PIB é simplesmente P + G (ou seja, a soma dos gastos do setor privado, mais os gastos do governo).

Digamos, a título de ilustração, que a carga tributária numa dada economia seja de 25% do PIB, ou seja, t = 0,25. Nessa economia o equilíbrio fiscal (impostos arrecadados = gastos do governo) só ocorrerá se a relação P / G for exatamente igual a 3. Essa relação pode ser facilmente calculada dividindo-se 1 por t (nesse exemplo 1 / 0,25 = 4), subtraindo-se em seguida 1 desse resultado (4 – 1 = 3).

Digamos que no exemplo acima o setor privado esteja gastando $300 e o governo gastando $100. A soma desses dois gastos (que é o PIB) totaliza $400. Como a carga tributária é de 25% do PIB, isso significa que o governo estará arrecadando $100, que corresponde exatamente ao que ele gasta no mesmo período. O equilíbrio fiscal está assegurado.

Essa identidade que acabamos de descrever, a despeito de sua simplicidade, nos mostra algo muito importante: no exemplo acima o déficit público vai ocorrer caso o governo gaste mais do que $100. Isso é o que todos nós já sabemos, pois esse mantra é entoado inúmeras vezes por dia em toda a grande mídia. O que a grande mídia sempre se esquece de dizer (ou talvez tenha alguma dificuldade para compreender) é que, partindo-se de uma posição de equilíbrio fiscal, o governo também fará déficit caso o setor privado gaste menos do que $300. Em outras palavras, o resultado fiscal é determinado simultaneamente pelos gastos públicos e privados, e não apenas pelos primeiros.

Mais precisamente, o que determina o resultado fiscal dos governos num dado período (déficit, equilíbrio ou superávit) não é quanto os governos gastam, nem quanto o setor privado gasta, mas sim a relação entre esses dois gastos (P / G), dada uma determinada carga tributária (t).

Quando as empresas – buscando reduzir seus riscos e maximizar seu retorno – optam pelo caminho do Crescimento Inorgânico – direcionando seus lucros não para a compra de ativos produtivos novos, mas sim para a compra de ativos já existentes, isso significa gastos privados (P) menores. O mesmo ocorre quando as empresas decidem direcionar todo o seu lucro ao pagamento de dividendos. Recursos que poderiam estar gerando novos investimentos, e portanto mais PIB e mais empregos, são integralmente direcionados aos acionistas, que por sua vez vão “estacionar” esse dinheiro nos fundos de investimento. Isso também significa uma redução nos gastos privados (P). E quando isso ocorre, a relação P / G se desequilibra, gerando déficit fiscal mesmo na ausência de qualquer aumento nos gastos do governo.

Esse comportamento das empresas – é importante frisar – expressa uma prática atualmente predominante em todo o mundo. Não é por outra razão que mesmo as economias do G20 vêm apresentando déficits fiscais consistentes. Será que todos esses países, que incluem EUA, Japão, China, França, Alemanha, Reino Unido, Canadá, Coreia do Sul, são fiscalmente irresponsáveis? Muito provavelmente não.

Da mesma forma, quando os fundos de investimento decidem não comprar ativos financeiros novos que poderiam estar financiando a expansão ou criação de novas empresas, e em lugar disso optam pela compra de títulos nos mercados secundários, essa decisão também compromete o crescimento, o emprego e o equilíbrio das contas públicas.

E quando os governos fazem déficit por conta de economias que não crescem e não geram empregos, qual a receita sugerida pelo “mercado”? O corte dos gastos públicos!

Em outras palavras, na visão do “mercado”, quando o setor privado decide gastar menos, os governos também devem apertar o cinto para manter em equilíbrio a relação P / G, dando assim sua valorosa contribuição ao aprofundamento da recessão e do desemprego…

Já quando o setor privado resolve gastar mais (o que a bem da verdade não vem ocorrendo nas últimas décadas), os governos também ficam autorizados a ampliar seus gastos (dado que sua arrecadação aumenta), contribuindo dessa forma para o superaquecimento da economia e da inflação…

Ou seja, na visão do “mercado”, o gasto público deve ser pró-cíclico, e não anti-cíclico, o que é um atentado à lógica. Sistemas complexos e intrinsecamente instáveis – como são as economias capitalistas – precisam de feedbacks negativos que lhes garantam um mínimo de estabilidade. E não o contrário.

Obrigar governos a cortar seus gastos todas as vezes que o setor privado decide cortar os seus, em nome de um sacrossanto “equilíbrio” das contas públicas, é uma ideia tão exótica quanto seria a de obrigar famílias e empresas a gastarem mais – gerando assim mais impostos – todas as vezes que os governos decidissem ampliar seus dispêndios.

As empresas e o “mercado”, enquanto entes privados, são inteiramente livres para gerir seus negócios de forma a atender aos melhores interesses de seus acionistas e cotistas. E em princípio não há nada de errado nisso. Por essa razão esses atores não incluem entre seus objetivos sociais o crescimento da renda, do emprego, ou a garantia de acesso à saúde, educação ou habitação.

No entanto, essas são exatamente as obrigações intrínsecas e indeclináveis de qualquer Estado Constitucional Democrático.

E o que ocorre atualmente quando Estados tentam cumprir suas obrigações intrínsecas e indeclináveis? Basta perguntar à Sra. Liz Truss, ex-primeira-ministra do Reino Unido.

Essa assimetria inédita e descomunal parece estar na essência do imbróglio em que estamos metidos.

De um lado, entes privados que, ao exercerem de forma plena e vigorosa seus direitos constitucionais, revelam-se incapazes de suprir oportunidades de renda e emprego minimamente dignos.

De outro, Estados (outrora soberanos) vivendo sob a permanente ameaça de aniquilação, caso ousem cumprir seus deveres constitucionais mais elementares.

Nesse cenário a insegurança, o medo e o ressentimento transbordam. As pessoas se sentem impotentes e não sabem exatamente a quem recorrer, ou a quem dirigir suas frustrações.

Esse talvez seja o principal combustível que move, nos dias de hoje, os embates políticos mundo afora.

E não faltam “outsiders” dispostos a riscar o fósforo.


1 https://tradingeconomics.com/brazil/gdp-per-capita

2 https://tradingeconomics.com/brazil/gdp

3https://www.anbima.com.br/data/files/3E/B4/89/66/6E70F71056DEBDE76B2BA2A8/IFs%20Report%20-ANBIMA-202201.xlsx

4 https://www.statista.com/statistics/323928/global-assets-under-management/

5 https://www.ft.com/content/8b5ae298-a065-11e2-a6e1-00144feabdc0

6 https://www.statista.com/statistics/323928/global-assets-under-management/

7 https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD

8 https://fusoesaquisicoes.com/acontece-no-setor/fusoes-e-aquisicoes-1-901-transacoes-realizadas-em-2021-crescimento-de-65/

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