Por trás do engodo de “Brasil quebrado”

A velha mídia tenta enquadrar Lula, alegando rombo nas contas públicas e necessidade de “austeridade”. Mas a reconstrução nacional não se dará através de medidas provisórias. Será preciso revogar o Teto de Gastos, em nome do desenvolvimento econômico e social

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Mal terminou o segundo turno das eleições presidenciais e os grandes meios de comunicação já anunciam o fim da lua-de-mel, meio relâmpago e a contragosto, que ensaiaram com Lula. Bastou que os resultados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) confirmassem a derrota de Jair Bolsonaro para que tivesse início o bombardeio da imprensa tradicional contra qualquer possibilidade de flexibilização nas regras da política fiscal e mesmo de implementação de medidas anunciadas ao longo da campanha visando a solução de problemas emergenciais e também de médio e longo prazos. Clamam pela manutenção da austeridade contra o povo e contra o Brasil.

Na verdade, tal estratégia já vinha sendo desenhada desde antes mesmo da realização do primeiro turno. Uma vez constatada a inviabilidade política e eleitoral da chamada “terceira via”, os poderosos da comunicação começaram a refletir em suas linhas editoriais o sentimento de parcela das nossas classes dominantes. O receio da reeleição de Bolsonaro terminou por invocar uma tática de voto útil de tais setores em Lula, apesar de todas as divergências que ainda existissem da burguesia tupiniquim quanto à figura do ex presidente e com relação aos 14 anos de governo do PT. No entanto, apesar desse apoio contrariado, o caminho passaria por criar dificuldades para que o terceiro mandato e, assim, impedir que o mesmo pudesse ser um momento de maior liberdade para um governo de conteúdo progressista e desenvolvimentista.

Todos os dias saíam editoriais e matérias “exigindo” que o futuro presidente já anunciasse seu comandante da economia, uma espécie de Guedes do lado de cá. E dá-lhe pressão e chantagem de todo o tipo para que o perfil do indicado coubesse no figurino de um Henrique Meirelles, de um Pérsio Arida ou qualquer outro que seja comprometido até a medula com a agenda econômica do financismo. Por outro lado, começava a ser criado o clima de catastrofismo bem típico desse tipo de conjuntura, onde o anúncio do caos é combinado com a oferta, nada ingênua nem descomprometida, de um pacote de austeridade na economia.

Lulalá e o fim de Bolsonaro

De qualquer forma, o fato é que já na segunda-feira pela manhã, no próprio dia 31 de outubro, a grande imprensa se viu obrigada a assumir o sentimento geral que passou a vigorar no ambiente político interno e internacional. Rei morto, rei posto. Lula conseguia a proeza de ser imediatamente cumprimentado por Putin e Zelensky, por Biden e Díaz-Canel, pela União Europeia e pelos governantes daquele continente, por Xi Jinping, pela totalidade de governantes latino-americanos e por uma quantidade impressionante de chefes de Estado de todos os continentes. Internamente, o Centrão e os líderes do fisiologismo não esperaram nem 24 horas para abandonar o barco em naufrágio de Bolsonaro. Desde então, sinalizam para Lula a intenção de “colaborar” com seu governo, mas sabemos bem quais são o preço e as condições de tal oferta.

Mas os grandes meios de comunicação não se acomodam com o vácuo de poder nessa fase de transição complexa, onde o chefe do governo que sai simplesmente desaparece da cena política e sabota todas as inciativas previstas em lei para facilitar a passagem do bastão para a nova equipe. As manchetes passam a repetir “ad nauseam” um quadro falacioso de “país quebrado” e de “rombo fiscal de centenas de bilhões de reais”. Esse é o discurso recorrente dos arautos do financismo, aliás sempre muito bem-dispostos a oferecer ao País seus serviços de consultoria para solucionar, por meio de seus mais do que conhecidos remédios amargos, uma crise que eles mesmos criam artificialmente. Terminada a fase das “fake news” que infestaram o ambiente nacional nas eleições, eis que fica inaugurada a temporada das notícias falsas sobre a realidade econômica. Sai de cena a interpretação terraplanista do bolsonarismo relativo a temas como meio ambiente e covid, para ceder seu lugar ao terraplanismo dos “especialistas” a soldo do sistema financeiro.

A ser levada em conta a realidade paralela construída por esse pessoal, o Brasil estaria mesmo quebrado e o rombo fiscal criado pelas medidas eleitoreiras de última hora preparadas pela trinca Jair Bolsonaro/Paulo Guedes/Ciro Nogueira estaria provocando a inviabilidade de ações do próximo governo a partir de janeiro. Ora, diante de tais circunstâncias, o único caminho (infelizmente, chegam a lamentar alguns) seria a adoção de medidas duras na política econômica. Esse foi a estratégia de Palocci no primeiro Lula em 2003 e também de Joaquim Levy, chamado por Dilma para a Fazenda em 2015. Ambos apresentaram uma trilha de recessão, arrocho monetário e austeridade fiscal extrema para tentar “resolver” as dificuldades em cada momento, respectivamente.

O Brasil não está “quebrado”!

Na conjuntura atual, a tentativa é a mesma. Na visão do povo do financismo, Lula deve ser impedido de governar e de implementar o programa que foi o vencedor das eleições. Ao alardear para certa inevitabilidade da crise fiscal por conta do suposto “rombo”, os representantes da ortodoxia e do conservadorismo alertam para necessidade de não se mexer nas regras do teto de gastos. Como passaram a dizer, com a boca cheia de arrogância, os comentaristas nada simpáticos ao futuro governo: Lula não poderia ser beneficiado com uma “licença para gastar”. Ele deveria ter seus pés e mãos atados, sendo impedido de levar em frente o programa de seu governo. Uma loucura! O problema é que a narrativa do catastrofismo conta também com a colaboração de lideranças do campo progressista. Até mesmo dirigentes do próprio Partido dos Trabalhadores insistem em sua divulgação. Ao selecionarem de forma equivocada algumas linhas de crítica a Bolsonaro, fazem coro com o financismo a respeito de uma quebradeira nacional e de um rombo espetacular nas contas públicas.

Não se deve confundir as coisas. De um lado, é fundamental avançar rapidamente com os processos judiciais internos e internacionais, tendo por objetivo a responsabilização de Bolsonaro pela infinidade de crimes que ele cometeu ao longo de seu mandato. No entanto, isso não pode ser usado como argumento deseducador para a maioria da população, quando o campo progressista toma para si a tarefa de propagação de avaliações equivocadas a respeito da situação da economia e das alternativas para retomar o crescimento das atividades.

Não há “rombo” que inviabilize o futuro governo!

É urgente recolocar a conversa em bons termos. Temos que retirar o véu de terraplanismo que impede a verificação da realidade efetiva. Não! O Brasil não está quebrado! Bolsonaro bem que tentou destruir o Estado, promover o desmonte completo das políticas públicas e eliminar direitos básicos dos trabalhadores. Mas a sociedade resistiu, as urnas confirmaram o desejo de mudança de rota e o fato concreto é que, felizmente, ainda existe bastante espaço para a reconstrução.

Não! Não existe um “rombo” catastrófico nas contas públicas que apontariam para a inevitabilidade de uma austeridade fiscal! Não existe nenhuma cratera irrecuperável na contabilidade econômico-financeira do governo, como se na Esplanada um meteoro ou a ação irresponsável de uma grande mineradora. O fato é que as necessidades orçamentárias para dar conta das tarefas de reconstrução nacional podem e devem ser cumpridas. Existe folga nas contas públicas para que sejam criadas as condições de financiamento público para as medidas de emergência de curtíssimo prazo, bem como para os programas de fôlego mais longo.

O principal obstáculo para que isso se concretize é justamente a existência de um garrote introduzido na Constituição por ninguém mais nem menos do que o próprio Henrique Meirelles, em 2016. É importante lembrar que, em dezembro daquele ano, logo depois do golpe que afastou Dilma Roussef do Palácio do Planalto, o governo Temer apresentou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que criou a regra do teto de gastos por 20 anos. Assim, desde então a EC 95 impede que as despesas públicas cresçam de um ano para outro, independentemente das condições econômicas ou sociais, e mesmo diante de eventual aumento da arrecadação tributária. Uma jabuticaba que faz rir a maioria dos analistas internacionais, mas que tem provocado a recessão e a dificuldade de superar as sucessivas crises que o Brasil tem atravessado.

Não é possível que Lula leve à frente o programa pelo qual foi eleito sob a vigência da regra draconiana do teto de gastos. Mas o interesse do financismo não é bem esse. Eles até topam dar uma “flexibilizadinha” no limite de gastos por um outro exercício, como aconteceu durante o governo que está se despedindo. Vamos lembrar que Bolsonaro obteve meios de burlar as regras da EC 95 durante a pandemia e agora no desespero das eleições que pressentia perder. Nos caminhos tortuosos da institucionalidade tecnocrática temperada pelo arranjo político, ele conseguiu aprovar no Congresso Nacional uma situação de calamidade para furar o teto e depois mais recentemente a tal da PEC do desespero, para liberar despesas de forma escandalosamente oportunista às vésperas do pleito. Mas os defensores do sistema financeiro se recusam a aceitar aquilo que o País mais necessita: a revogação da EC 95 e o fim definitivo da atual regra do teto de gastos.

Pois o debate atual envolvendo a equipe de transição e a construção de alternativas e de instrumentos com o objetivo de oferecer musculatura nas contas públicas e segurança jurídica para o futuro governo parece estar emperrado neste ponto. Alguns interlocutores avaliam que bastaria uma Medida Provisória para criar um crédito extraordinário para implementar o programo de auxílio emergencial no valor de R$ 600 e para o aumento do salário mínimo, tal como apresentado por Lula nos debates. O problema é que, ao contrário das mentiras espalhadas por Bolsonaro, ele não havia incluído a continuidade de tais rubricas no orçamento de 2023. O mesmo acontece com uma série de outras medidas necessárias ao futuro governo, tais como Farmácia Popular, medidas extraordinárias contra a fome, adoção de um conjunto de obras em articulação com governadores e prefeitos para dar início à retomada das atividades econômicas, entre tantas.

Revogar a EC 95 e cumprir o programa das eleições.

No entanto, é bastante injusto e temerário que o governo legitimado pelo voto popular fique dependendo a cada instante de uma nova autorização do Congresso Nacional para viabilizar cada programa ou necessidade que pretenda colocar em funcionamento. O mais correto seria passar uma borracha nesse período pós golpe e trazer o Brasil de volta à sua normalidade democrática e republicana anterior a 2016. Se existe a opção de apresentar uma PEC para que o futuro governo possa cumprir com seu programa e o País possa reencontrar a rota do de crescimento e do desenvolvimento, então que esse grande esforço de conseguir 3/5 de votos em 2 votações em cada Casa do Congresso Nacional seja o de eliminar de vez esse estorvo da herança maldita de Temer e Meirelles, mantida e aprofundada por Paulo Guedes a partir de 2019.

A totalidade dos países do mundo desenvolvido já flexibilizou a orientação de austeridade fiscal extremada das décadas passadas. Desde a crise de econômico-financeira de 2008/9 e da atual da covid, percebeu-se a importância da recuperação do protagonismo do Estado e da elevação das despesas públicas como caminho para a superação das respectivas dificuldades nacionais. Nos Estados Unidos, logo após sua vitória contra Trump, Biden anunciou um plano trilionário de investimentos e despesas públicas. E na pátria mãe do liberalismo econômico, ninguém a maior parte do establishment não ficou acusando o novo presidente de irresponsabilidade fiscal e essa lengalenga que se ouve por aqui. Afinal, eles bem conhecem a importância daquilo que o economês chama de “efeito multiplicador do gasto”. A sociedade no seu conjunto se beneficia desse movimento para a recuperação das atividades, em especial nos momentos de recessão e de crise.

Mas a espada ameaçadora da EC 95 sobre o pescoço de todo o governante de plantão impede que o Brasil adote essa opção de reforço das políticas públicas. Um elemento que conta a favor da mudança é que os membros do nosso Congresso Nacional sabem da importância das despesas orçamentárias para viabilizar os programas governamentais. Tanto é que terminaram por criar subterfúgios para isso, a exemplo da excrescência do orçamento secreto e de suas emendas do relator sem nenhuma transparência. Espera-se que o STF confirme a inconstitucionalidade do mecanismo e restabeleça a regra democrática e republicana na configuração da peça orçamentária.

A questão é não se deixar influenciar pelas ameaças do financismo. O Brasil não está quebrado e existe espaço para reforçar a política fiscal com o necessário aumento no patamar de despesas. O objetivo fundamental deve ser o atendimento às demandas mais imediatas da maioria da população, bem como a criação dos meios de financiar os programas estratégicos de desenvolvimento econômico e social. Para tanto, o primeiro passo é revogar a EC 95 e a política atual de teto de gastos.

Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

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