Paulistas, mineiros e o “salto participante” dos concretos

Nos anos 1960, o encontro do grupo concretista Noigandres com o da revista mineira Tendência foi estratégico. Se este afirma-se como vanguarda, o primeiro recompõe alianças, após rupturas em SP e Rio, para a politizada arena cultural de então

Os poetas concretistas do grupo Noigandres, Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos
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Por João Victor Kosicki na coluna da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS)

Este ensaio foi publicado originalmente no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) como parte da série Hospedagem Vale quanto pesa, um experimento intelectual e estético inspirado na categoria de “hospedagem” de Silviano Santiago, voltado para as comemorações do seu segundo livro de ensaios, Vale quanto pesa, de 1982. O Blog da BVPS propôs um exercício de comentário, repetição, suplementação, hospedagem dos 18 textos nele reunidos. Autores e autoras de 40 anos ou menos comentam Vale quanto pesa em seus 40 anos ou mais. Para saber mais sobre a iniciativa, clique aqui.
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O capítulo “Paulistas e Mineiros”, penúltimo do livro Vale Quanto Pesa, de Silviano Santiago, levanta hipóteses interessantes sobre a aproximação do grupo de escritores mineiros da revista Tendências – no caso, Affonso Ávila, Fábio Lucas, Rui Mourão e Laís Correia de Araújo – com os escritores paulistas da revista Invenção – os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, José Lino Grünewald, Ronaldo Azeredo e o modernista verde-amarelo Cassiano Ricardo. Escrito em 1977, o texto revisita a aliança entre os grupos vanguardistas do início da década de 1960, tateando explicações para além do cotejamento dos critérios estéticos, da produção poética ou dos programas-manifestos produzidos em profusão pelos vanguardistas. O projeto comum que teria unido os dois grupos derivaria, segundo Santiago (1982, p. 183), “principalmente [d]o patamar das soluções comuns a uma série de dificuldades e impasses por que passam os movimentos vanguardistas brasileiros no impacto da onda populista.

A hipótese aventada no texto, de que o encontro entre Tendência e Noigandres-Invenção “tinha tudo para ser produtivo para ambos os partidos envolvidos”, me guiou em importante caminho para entender o grupo paulista e as tensões enfrentadas no ambiente intelectual da cidade de São Paulo, que aparecem, creio, arrevesadas nesta aproximação entre os grupos. O equilíbrio entre o aprofundamento da história brasileira e os estudos sobre o barroco possuídos pelo grupo mineiro encaixavam bem no cuidado programático e no domínio da literatura universal do grupo paulista. Como aponta Santiago, se, de um lado, o grupo mineiro tropeçava em certo provincianismo, de outro, o grupo paulista carecia de solo nativo, isto é, carecia de certa legitimidade sobre a pauta do nacionalismo, que atravessa as discussões intelectuais por inteiro no período.

Ciente disso, procurei encontrar uma dimensão telúrica da faceta “produtiva” dessa aliança, a partir de uma perspectiva preocupada em compreender o grupo paulista.[1] É importante apontar que o grupo paulista viveu, na década de 1950, importante pressão por especialização, expressa na maneira pela qual os concretistas erigiram a geração de 45 como adversária e apresentaram, de maneira teórica, as diretrizes de sua produção poética. Penso ser possível encontrar outra dimensão das transformações do campo intelectual paulista em sua obra no conhecido “salto participante” realizado em 1961 pelo grupo Noigandres – nesse momento quase grupo Invenção – e, portanto, transformações que jogam luz na aproximação entre o grupo paulista e o grupo mineiro.

Depois da divulgação nos maiores suplementos literários do Brasil, a saber, o Suplemento Literário do Jornal do Brasil, que dedicou matéria à Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, e passou a publicar textos dos poetas – com direito a benção de Manuel Bandeira (1957) – até 1958, e o Suplemento Literário d’O Estado de S. Paulo que, em junho de 1957, dedicou toda uma página a textos dos poetas paulistas, o grupo passava, então, por certa reconfiguração de espaços para divulgação no início da década de 1960. Sobretudo porque, depois da fisga neoconcreta, o grupo paulista perdera acesso ao suplemento literário do Jornal do Brasil.[2]

Quando os irmãos Campos convidam o grupo carioca para a Exposição de Arte Concreta de 1956, firma-se o acordo de fazer do JB o veículo oficial do concretismo. Com a ruptura neoconcreta e a decorrente perda do Jornal do Brasil como caixa de ressonância de suas poesias e textos críticos (Moura, 2011), os irmãos Campos e Décio Pignatari voltam-se aos laços e contatos possíveis em São Paulo. Criam, juntamente com Cassiano Ricardo, Edgar Braga e Mário Chamie, em 1960, o caderno Invenção no jornal Correio Paulistano e, mais tarde, a publicação independente Invenção: revista de arte de vanguarda, que saiu em 5 números (dois em 1962, um em 1963, um 1964 e o último entre dezembro e janeiro de 1966-1967). Comenta Cassiano Ricardo (1970, p. 238):

Vim a fundar mais tarde, em 1962, a Invenção, revista de arte de vanguarda, em companhia de Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos, Mário Chamie, José Lino Grünewald, Pedro Xisto, Edgard Braga, Mário da Silva Brito, Ronaldo Azeredo. Mas antes disso obtive do meu amigo João de Scantimburgo, então diretor do Correio Paulistano, que havia sido órgão da revolução modernista de 22, uma página inteira, em cada semana, a fim de que os poetas referidos tivessem onde colaborar e externar seu pensamento.

A maioria dos participantes da página do Jornal também participa da revista. À exceção de duas figuras importantes, Mário Chamie, que não participa, e Cassiano Ricardo, que contribui nos dois primeiros números – inclusive, ele foi responsável pela inauguração da revista com o texto “22 e a poesia hoje”, espécie de pedágio simbólico como gratificação pela articulação desse caderno. Vale lembrar que Cassiano Ricardo era presidente do Congresso de Poesia onde os poetas se encontraram e Mário Chamie era colega de faculdade e arcadas da Academia de Letras do Largo São Francisco.

Nos três primeiros anos da década de 1960, o grupo paulista se aproxima de modo mais pronunciado dos debates universitários e especializados. Em 1961, por exemplo, participam e são tema de mesa do 2º Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária (Antunes; Ferreira, 2014). Em 1963, organizam a I Semana de Poesia de Vanguarda na Universidade de Minas Gerais. Além disso, a partir de 1961, intensifica-se a participação dos poetas – sobretudo dos irmãos Campos – no Suplemento Literário do Estado de S. Paulo, espaço em que Antonio Candido era idealizador e organizador. Progressivamente, portanto, é desenvolvida uma aproximação com os integrantes do programa de pós-graduação e com professores da Universidade de São Paulo. Isso explica, de certo modo, o concretismo ser apresentado com maior centralidade, ocupando espaço nos debates universitários do período, conforme depoimento de Antonio Candido:

Houve um toque interessante: creio que, pela primeira vez, os poetas concretos foram postos em destaque. A novidade naquele tempo era a poesia concreta, e nós demos aos jovens poetas concretos a oportunidade de aparecerem em um evento importante e darem a sua mensagem (Candido, 2014).

A apresentação no 2º Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária manifestava uma resposta da poesia concreta ao contexto politizado que estava sendo vivenciado não apenas no país de maneira geral, mas também no ambiente universitário – tendo em vista o perfil dos integrantes do próprio congresso, mais propensos a uma posição progressista e mesmo inclinada ao materialismo histórico, como o próprio Antonio Candido e Roberto Schwarz. Realizado em junho de 1961, o famoso Congresso, organizado por Antonio Soares Amora, figura importante para a formação da Faculdade de Assis (futura Unesp), e Antonio Candido, convidado pelo primeiro para lecionar na instituição, contou com a fina flor de estudiosos da crítica literária brasileira: “Sérgio Buarque de Holanda, Anatol Rosenfeld, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Wilson Martins, Wilson Cardoso, Joel Pontes, Hélcio Martins, Benedito Nunes, Adolfo Casais Monteiro, Afonso Romano de Sant’Anna, Roberto Schwarz, João Alexandre Barbosa, Décio Pignatari, Augusto de Campos, Haroldo de Campos” (Vara, 1999, p. 234).

Embora Candido fosse uma figura importante na consecução do Suplemento Literário do Estado de S. Paulo – eminente espaço de discussão e consagração literária do período –, a ida para Assis é definitiva em termos do conflito no interior de sua trajetória entre a docência em sociologia e a produção de conhecimento no âmbito da crítica literária (Ramassote, 2008). Após o período de quase três anos nesta instituição, realizando cursos completamente dedicados à crítica literária e ao estudo textual da literatura, Candido como que acerta suas contas com essa disciplina, tornando-se um importante representante do perfil característico que a crítica literária vai assumir em São Paulo. Ademais, se o concretismo foi apresentado com certa centralidade nesse congresso, este também serviu para legitimar em definitivo a passagem de Candido para os estudos literários, consagrando o antigo professor de sociologia em uma posição central para a crítica literária do período, consagração que o livro a Formação da Literatura Brasileira, publicado em 1959, ajudava a sustentar.

Já a I Semana de Poesia de Vanguarda, apontada como desdobramento dos debates do congresso de Assis, ocorreu um ano após a ruptura da poesia-práxis, dois anos após o 2º Congresso e cinco anos após a ruptura formal entre o grupo concreto e neoconcreto. Tinha ares de manutenção da posição alcançada pelo grupo paulista entre seus pares, embora a postura mais engajada dos membros da revista Tendência também impusera ao grupo certa necessidade de adequação. Neste momento, o grupo ancorava-se em uma postura um tanto expansionista,[3] com vistas a estabelecer sua dianteira na chamada “poesia de vanguarda”. Depois das rusgas “neoconcreta” e “praxista”, da competição com os poetas engajados na revista Violão na Rua e considerando o cenário engajado universitário em São Paulo e em Minas Gerais, vemos certa disputa por quem teria o “melhor” discurso vanguardista – revelando a validação deste tipo de discurso (Simon, 1990) como meio de inserção no debate poético do período, abrindo, por outro lado, espaço para cizânias acerca de sua liderança (Moura, 2014).

Os dois congressos acadêmicos são, portanto, significativos e importantes para a compreensão da centralidade adquirida pela poesia concreta, bem como explicam muitas de suas singularidades.

Para o grupo Noigandres, embora a aproximação com a universidade representasse aprofundamento da guinada em direção à especialização da linguagem (Arruda, 2001), a posição na qual o grupo se encontrava era um tanto problemática, uma vez que, advogados de certa linhagem de cientificidade mais próximas do New Criticism, do formalismo russo e do estruturalismo, apareciam como outsiders do grupo que se consolidaria na Cadeira de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, sob a liderança de Antonio Candido a partir de 1961. Postulantes de uma posição ambígua sobre a literatura – misto de esteticismo e vanguardismo anti-literário, temperado com citações acadêmicas e escrita experimental/de manifesto –, o grupo se via sob fortes acusações de “alienados” da “ala” politizada da poesia, agrupada sob as asas do Centro Popular de Cultura do Rio de Janeiro, liderada pelo inconfidente Ferreira Gullar, e que tinha como canal de divulgação a série Violão de Rua [4], bem como os críticos literários que se consolidavam na universidades paulistas[5]. Depoimento disso é a conferência de Décio Pignatari no 2º Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária (Invenção, 1962), no qual expressa a preocupação acerca da politização do ambiente literário e do ambiente universitário ao qual vinham se aproximando – elementos que impunham outra dificuldade ao grupo e explicam o “salto-participante”. Conferir um elemento crítico ao próprio projeto da poesia concreta era estar a par com os interlocutores diretos da universidade, sob orientação de Antonio Candido, bem como dar conta da crescente politização da vida intelectual dos anos 1960.

Durante toda a década de 1960, os concretos mantiveram a artilharia pesada na empreitada intelectual e acadêmica que vai desaguar nas defesas de doutorado em 1970, com diversas publicações de livros de crítica musical e literária, com o processo de revisão e recuperação de poetas como Kilkerry e Sousândrade, e de tradução de autores como Ezra Pound, Maiakovski e Mallarmé. Este processo de aproximação teve, no entanto, um entrave. Se Antonio Candido teve um papel importante de inserção da discussão da poesia concreta no debate universitário, bem como na orientação de Décio Pignatari e Haroldo de Campos, a participação desses membros do grupo nunca encontrou acolhida entre os discípulos do escritor da Formação da Literatura Brasileira. O contexto de competição pelos postos no interior da universidade teve desdobramentos que distanciaram os concretistas do grupo de discípulos da cadeira de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.

A aproximação do grupo Noigandres do grupo de artistas concretos e a adoção das discussões das artes plásticas para a poesia combinada a um empenho de estar a par nos debates sobre literatura – que progressivamente iam se tornando universitários –, com uma constante incorporação da citação e da especialização, funcionaram como meio de afirmação e consolidação de um projeto poético próprio do grupo. Posteriormente, uma aproximação mais contundente ao grupo de críticos paulistas reunidos no entorno da figura de Antonio Candido, sobretudo em virtude do Suplemento Literário do Estado de S. Paulo explica, a meu ver, certa readequação do discurso de vanguarda, incorporando o famoso salto-participante. Neste contexto, a aproximação com o grupo mineiro foi realmente produtiva e estratégica, posto que amparava sua circulação – a I Semana Nacional de Poesia de Vanguarda como grande exemplo – e a situava no interior do debate.

Notas

[1] O artigo a que me refiro está no prelo, com o título “Itinerário de Vanguarda: a poesia concreta entre as arcadas, a academia e a teoria literária”.

[2] Importante frisar que dos 28 textos publicados no livro Teoria da Poesia Concreta – compilação de textos e manifestos do grupo no período de “vigência” do movimento concretista, reunindo textos de 1950 a 1965 – 9 deles foram publicados no Jornal do Brasil, enquanto 5 saíram na revista ad – arquitetura e decoração, 4 no Correio Paulistano e os demais em revistas e jornais diversos.

[3] Na “Semana Nacional de Poesia de Vanguarda”, em Minas Gerais, se somam à poesia concreta os poetas Affonso Ávila e Laís Correa de Araújo, bem como os ensaístas Luiz Costa Lima e Benedito Nunes. Ademais, a partir desse evento, o grupo Actitud, de Buenos Aires, também estabelece contatos com o grupo (Aguilar, 2005, p. 367).

[4] A título de expressão da disputa, vale notar que, em depoimento a Marcelo Ridente (2014), Ferreira Gullar afirma ter recebido várias submissões dos poetas concretos na Violão de Rua, que foram prontamente negadas.

[5] O texto “Marco Histórico”, de Roberto Schwarz, é um bom termômetro da percepção que se tinha dos concretistas, ainda mais se levarmos em consideração a proximidade do circuito da Universidade de São Paulo.

Referências

AGUILAR, Gonzalo. (2005). Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. São Paulo: Edusp.

ANTUNES, Benedito; FERREIRA, Sandra. (Orgs.). (2014). 50 anos depois – Estudos literários no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp.

ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. (2001). Metrópole e cultura: São Paulo no meio século XX. Bauru: Edusc.

BANDEIRA, Manuel. (1957). Suplementos. Jornal do Brasil. 1º Caderno. Rio de Janeiro, p. 5, 9 jan. 1957.

CANDIDO, Antonio. (2014). A organização do 2º congresso. In: ANTUNES, Benedito & FERREIRA, Sandra. (Orgs.). 50 anos depois – Estudos literários no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp.

MOURA, Flavio. (2011). Obra em construção: a recepção do neocentrismo e a invenção da arte contemporânea no Brasil. Tese de Doutorado. FFLCH/USP.

RAMASSOTE, Rodrigo M. (2008). A sociologia clandestina de Antonio Candido. Tempo Social, v. 20, n. 1, p. 219-237.

RICARDO, Cassiano. (1970). Viagem no tempo e no Espaço. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio.

RIDENTI, Marcelo. (2014). Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Editora Unesp.

SANTIAGO, Silviano. (1982). Paulistas e mineiros. In: Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 183-192.

SIMON, Iumna. (1990). Esteticismo e participação: as vanguardas poéticas em contexto brasileiro (1954- 1969). Novos Estudos Cebrap, v. 26, p. 120-140.

VARA, Teresa. (1999). Esboço de Figurino. In: AGUIAR, Flávio (Org.) Pensamento e Militância. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.

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