Farha e a memória coletiva palestina

Filme mostra como as histórias da Nakba, o brutal êxodo imposto por Israel em 1948, é revivido pelas novas gerações, através de narrativas orais e da arte. E como forças sionistas exploram a pobreza e obrigam palestinos a delatar seu próprio povo

.

A Palestina é retratada no cinema, na literatura e em muitas exposições. As informações e as histórias geralmente são baseadas nas memórias individuais palestinas, sempre conectadas com uma memória coletiva oficial.

A memória da Nakba é sempre acessada pelo povo palestino, pois além de ser considerada um momento de inferência na história e na identidade palestina, o acesso à Nakba é um meio pelo qual os palestinos, em todo o mundo, tentam fazer justiça aos prejuízos da ocupação do tempo presente. Entretanto, a memória individual deve, necessariamente, coincidir com a memória coletiva como parte intrínseca da história da ocupação da Palestina e, consequentemente, do movimento nacional palestino.

Nesse passo, de acordo com Maurice Halbwalchs (2003) é necessário distinguir dois tipos de memórias, uma memória pessoal e a outra, memória social, ou seja, uma memória autobiográfica e uma memória histórica. Nesse caso, a primeira receberia ajuda da segunda, uma vez que, a história de nossas vidas faz parte da história da humanidade. As memórias da rotina palestina, de antes e depois da Nakba, são fundamentais para a reconstituição da história palestina. É através dessa reconstituição que é possível compreender os impactos da ocupação e do conflito que se tornou permanente.

Contudo, a memória não é pura e absolutamente espontânea. A memória palestina, particularmente, é moldada em uma memória política coletiva que luta diariamente, a qualquer custo, para que não seja esquecida. O esquecimento da Nakba, juntamente à morte dos palestinos que efetivamente testemunharam a catástrofe de 1948, pode significar a perda da identidade palestina, já que a pátria nacional está ameaçada. A memória da Nakba, nesse caso, deve ser transmitida para as novas gerações de palestinos e, sobretudo para uma audiência internacional, através da arte, baseada na história oral e nas pesquisas às fontes primárias.

Enquanto memória nacional palestina, a transmissão da memória da Nakba, sempre que possível, ocultará os testemunhos e as narrativas de fracassos e de traições. Dificilmente teremos acesso a memória de palestinos que conscientemente venderam suas terras para as agências de colonização judaicas e das ações dos colaboradores palestinos durantes os confrontos de 1948.

Os mapas pré-Nakba recriados nos livros didáticos sobre a questão da Palestina tendem a demonstrar uma sociedade palestina unificada, com valores e ideais compartilhados, autossuficiente, sem quaisquer indícios de pobreza, doenças e conflitos. A imagem da Palestina histórica foi idealizada justamente para corresponder à uma imagem nacional, a qual elegeu o camponês palestino como símbolo central da terra natal e apto a reivindicar as perdas territoriais.

Contudo, é constatado que, em 1948, a população palestina não vivia no campo em sua totalidade. De acordo com Rochelle Davis (2007), cerca de 40% da população palestina já vivia nas cidades.

A memória da Nakba foi magistralmente reproduzida no filme Farha, da diretora jordaniana, Darin J. Salan, disponível na plataforma Netflix. O filme é baseado na história verídica de Radieh, uma palestina exilada na Síria, que contou sua história para uma amiga, que contou para a sua filha e, depois, para a sua neta, a diretora Salan. Farha, além de narrar a história de uma testemunha da Nakba, não omitiu ao apresentar a participação desconfortável dos colaboradores palestinos durante os conflitos de 1948.

A protagonista Farha (“alegria”, em árabe), é uma ambiciosa adolescente palestina que sonha estudar em uma cidade grande, longe do vilarejo que nasceu e, principalmente, longe dos planos de casamento de seu pai, um mukhtar (chefe do vilarejo).

Embora Farha seja uma jovem palestina com ideias bastante progressistas, dentro de um contexto altamente conservador e patriarcal, ainda assim, é uma adolescente que teve sua infância interrompida de uma maneira traumática. No momento em que conversava, em uma cadeira de balanço, com sua melhor amiga, Farida, presencia uma forte explosão nos arredores do vilarejo que vivia. A partir de então, a menina se torna uma adulta com instinto de sobrevivência.

Quando os ataques se intensificaram, o pai de Farha tranca sua filha em um depósito de alimentos de dentro de sua residência. Nesse momento em diante, Farha passa a testemunhar a violência real da Nakba palestina, por uma fresta de dentro do depósito. O filme segue com cenas claustrofóbicas e com momentos de muita angústia.

Farha flagra angustiada um massacre de toda uma família palestina, encontrada por soldados judeus com a ajuda de um colaborador palestino encapuzado que ajudava esses soldados a encontrar militantes palestinos e suas armas escondidas. Ocorre que, por um instante, o colaborador encapuzado se dirige ao depósito onde Farha estava escondida. O que indica que este colaborador, muito provavelmente, fosse o tio de Farha, um homem palestino urbano que vestia roupas à moda ocidental, falava inglês e que, no início da trama, encorajava o pai da protagonista a permitir que sua filha estudasse em uma outra cidade, longe de seu vilarejo.

Embora as ações de colaboradores sejam reais na história da Nakba palestina, é importante esclarecer que as traições palestinas eram constantemente exploradas pelos soldados judeus por diversas formas. De acordo com Nada Elia (2023), as ações dos colaboradores não existiriam caso “as forças israelenses não tivessem tão interessadas em explorar os mais vulneráveis, como aqueles que não seguem as normas tradicionais, as regras de gênero, ou aqueles que ultrapassam os limites das expectativas sociais”. Ainda, é imperioso enfatizar que muitos palestinos foram e ainda são forçados a colaborar com Israel, diante de circunstâncias de pobreza extrema, carência de atendimento médico e sob perseguição militar.

O massacre, testemunhado por Farha, segue com o abandono intencional de um bebê que não pára de chorar, enquanto Farha, a todo custo, tentava abrir a porta do depósito trancada pelo lado de fora. A longa cena do choro do bebê causa muita angústia nos telespectadores que assistem ao filme.

Quando Farha, finalmente, consegue sair do depósito o silencio acompanha a visão dramática dos corpos da família assassinada e do bebê que não resistiu sozinho.

O desfecho do filme mostra Farha, com um semblante apático, andando sem rumo em meio às ruínas de seu vilarejo vazio. No filme não se sabe se a menina decide ficar ou partir, ela apenas caminha sem destino, em direção ao desconhecido. Entretanto, de acordo com a vida real de Radieh, a palestina exilada que inspirou a personagem Farha, ela escolheu deixar a Palestina ocupada sozinha, já que o seu pai nunca reapareceu para buscá-la naquele depósito que a trancou.

O destino de Radieh, representada pela Farha, é incerto. Muito provavelmente o sonho de estudar em um colégio regular misto foi adiado até que, a então refugiada, pudesse se acomodar em seu novo lar e reconstruir a sua vida no exílio. Para a nossa sorte a história dessa brava garota palestina foi eternizada no premiado Farha, disponível para que todos possam conhecer. O filme além de belíssimo, traduz, com muita perfeição, o significado e a essência da Nakba.


Referências:

DAVIS, Rochelle. Mapping the Past, Re-creating the homeland – Memories of village places in pre-1948 Palestine. In. SA’DI, Ahmad H. & ABU-LUGHOD, Lila (Org.). Nakba – Palestine, 1948, and the claims of memory. New York: Columbia University Press, 2007.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.

ELIA, Nada. Farha and the story of the Palestinian collaborator. Aljazeera, 7 de janeiro de 2023, disponível em: https://www.aljazeera.com/opinions/2023/1/7/farha-and-the-story-of-the-palestinian-collaborator.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *