Gastronomia através da História: o caso italiano (2)

Pratos austro-húngaros, tomate, milho, batata, cacau americanos, óleo árabe. Como, ao longo dos séculos, dominações e conquistas transformaram culinária do país mediterrâneo

Tomatos and corn de Elizabeth Floyd
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No texto anterior, comentei sobre a diversidade gastronômica italiana e sobre a força do regionalismo na alimentação. Começo este capítulo contando para onde ia toda a tradição local na hora em que chegavam os invasores estrangeiros trazendo seus baús repletos de receitas caseiras.

As regiões que viviam sob domínio estrangeiro, especialmente sob os Habsburgs ou os Bourbons, também se adaptavam às exigências de seus novos senhores na hora do jantar. Introduzir novos hábitos alimentares era, e continua sendo, uma das formas de dominação de uma cultura sobre outra. E não deixa de ser interessante encontrar a digital do conquistador em alguns pratos servidos. Vou dar alguns exemplos saborosos.

Um básico: o que é um bife à milanesa? Sei qual será sua resposta: um bife empanado e frito. Certo? Sim, mas porque essa forma de se preparar o bife se chama “à milanesa”?

Não foram os lombardos que inventaram essa técnica. O bife “à milanesa” nada mais é do que o Schnitzel Austro-húngaro! Lembremos que o Ducado de Milão foi incorporado ao Reino Lombardo, sob controle do Império Austríaco a partir de 1815 (Congresso de Viena) até a Guerra de Unificação. Os austríacos deixaram esta receita na cidade, que os milaneses aprovaram, repetiram e renomearam a forma de preparo.

Tem um outro exemplo notável: o canederli. Quem descende de família veneta, trentina ou do Alto Àdige, sabe do que estou falando. São aqueles bolinhos feitos com uma massa que parece de pão, recheados ou não com linguiça e servidos cozidos. Estou descrevendo o irmão gêmeo do Knödel austríaco, cujo nome foi latinizado.

Se me permitem uma digressão, o knödel era consumido em todo Império Austro-húngaro, isso quer dizer, Hungria e outras regiões do leste europeu, onde vivia uma grande população judia. Existe um prato tradicional do receituário ashkenazita (dos judeus da Europa oriental) chamado kneidlach, leia-se kneideler, que nada mais é do que um knödel sem recheio. E assim o knödel, que virou kneideler, se tornou um canederli. Tudo junto e misturado.

Mas tem ainda outros fazeres da maior tradição gastronômica italiana que usam produtos que não são e nem nunca foram italianos. Em primeiro lugar, o tomate. Um produto americano!! É o tomate asteca…

Chegou em Napoli no período em que o sul da Itália era parte do Império Bourbon, sob domínio espanhol. Este fruto, chamado de “pomod’oro” porque quando chegava era dourado (não amadurecido), servia inicialmente como decoração, respeitando a crença de que seria venenoso. Veio da América e ao encontrar solo e clima perfeitos para seu desenvolvimento, se tornou um símbolo da culinária napolitana. Preste atenção, estamos no século XVI e até aqui não existia molho de tomate na Itália! Nada de pasta al sugo ou pizza com base vermelha, mas vou deixar para falar da pasta no próximo capítulo.

Gostaria de citar também o milho, outro produto americano, que chega no norte da Itália e invade a cozinha pobre e camponesa, transformando para sempre a polenta, que até então era preparada com farinha de trigo.

Não vou nem entrar no capítulo “batata”, mais um produto americano, diretamente dos Andes para a Europa, mas vou provocar suas papilas gustativas: que tal falarmos do chocolate? Acho que é de conhecimento geral que o cacau vem do México e América Central, também trazido pelos espanhóis. Mas tem uma história muito curiosa que é a invenção de um produto que adoça o crepe de muita gente.

Na cidade piemontesa de Torino se desenvolveu, desde o século XVI, uma fortíssima produção de chocolate, que já não era apenas uma bebida, de acordo com a tradição mesoamericana, e sim degustada na forma sólida de um lingote.

No período do embargo que Napoleão impôs à Península Ibérica, a quantidade de cacau que chegava ao mercado centro europeu foi drasticamente reduzida e Torino se viu sem matéria prima suficiente para atender sua demanda por chocolate.

Um dos fabricantes locais, da casa Caffarel, teve então uma ideia. Como nesta região se produz a avelã “tonda-gentili”, uma das espécies mais saborosa da castanha, ele fez a experiência de misturar o pouco cacau disponível com uma boa quantidade de creme de avelã, que daria o volume final necessário para atender a freguesia. A mistura foi chamada de “creme gianduia”, fez muito sucesso e ganhou o mercado.

Muitas décadas depois, para concorrer nos Estados Unidos com a pasta de amendoim local, a fábrica italiana Ferrero, transformou o creme gianduia em uma pasta mais açucarada, inventou um nome que fazia menção à castanha (Nut) com o sufixo italianizado (tella) e lançou, para conquistar todos os continentes, a Nutella.

Bem, estávamos até agora fazendo o aperitivo (uma invenção italiana, que serve para estimular o estomago e abrir o apetite) do meu texto. Passemos agora ao antipasto.

E vou começar falando do “olio di oliva”, que traduzimos por azeite.

Bom esclarecer que esta palavra em português vem do nome em árabe “az-zait”, produto da “az-zaituna”, e chega ao Brasil na bagagem dos lusitanos, que viveram sete séculos em companhia dos mouros na Península Ibérica.

A oliveira selvagem teve sua origem nos territórios que hoje pertencem à Turquia e Síria, no Oriente Médio. Desde o século XVI A.C., os fenícios, em suas grandes navegações, espalharam as oliveiras pela região em torno ao Mediterrâneo, cujo clima era perfeito para o seu desenvolvimento.

Começaram pela Grécia e logo se tornou fundamental para a sua economia e cultura. Os gregos usavam o óleo como alimento, como cosmético, como medicamento e nos rituais de preparação dos atletas para os jogos.

Quando Roma, cuja mentalidade sempre foi militar, ligada a guerra e aos conhecimentos práticos, conquistou o território grego, aprendeu e absorveu muito desta outra cultura, que era muito mais sofisticada, se ocupava de filosofia, poesia, teatro, apreciava a beleza e o equilíbrio. Levando para Roma os escravos gregos, para serem inclusive seus professores, os romanos importaram também suas oliveiras, que logo se espalharam por todo o território peninsular.

Na medida em que o império ia crescendo, o azeite passou a ser um dos principais produtos comercializado pelos romanos, requisitadíssimo tanto como alimento, como para tratamento de saúde e de beleza. Assim, rapidamente se tornou um símbolo.

A oliveira tinha status! Por exemplo, os imperadores romanos eram coroados com grinaldas de folhas de oliveira douradas, ou ainda, ramos de oliveiras eram usadas, no lugar da posterior bandeira branca, como sinal de rendição e paz de exércitos derrotados, que depois presenteavam os vencedores com bandejas de azeitonas.

Com o final do Império Romano, na Alta Idade Média, a Europa viveu um momento de desabastecimento das cidades e de grande êxodo urbano. O comércio acabou e a zona rural se transformou em áreas de agricultura de subsistência. Abandonou-se o cultivo das oliveiras em troca de outros produtos de primeira necessidade.

Mantiveram-se apenas algumas árvores para produzir pequenas quantidades de óleo, o suficiente para a igreja manter suas celebrações e ritos. O óleo estava sendo cristianizado! Volto a falar de como a Igreja se apropriou de determinados elementos da gastronomia mediterrânea depois.

O Renascimento das cidades, das feiras e do comércio espalhou novamente as oliveiras pelo território italiano que hoje produz, em 18 das suas 20 regiões, um dos azeites de melhor qualidade do mundo.

Falando do azeite (olio) é quase natural pensar no vinagre (aceto).

O que falar deste liquido (ou creme) precioso que entra na cozinha e dá um show, e quando eu digo “show” falo das carnes, das pastas, dos doces, dos chocolates, e não da salada, porque o aceto é tudo, menos tempero de salada.

Nenhum texto relata com certeza a data de nascimento do aceto balsâmico, mas existem várias hipóteses e uma delas fala de um nascimento casual. Uma certa quantidade do suco cozida da uva, chamado “saba” um adoçante usado na culinária modenese, teria sido esquecido em um vaso e encontrado tempos depois, quando já apresentava sinais de uma avançada acidificação. Tem também o testemunho de um certo Donizone, monge beneditino que viveu entre os séculos XI e XII, que escreveu que no ano 1046, o rei francês teria enviado um mensageiro ao Marques de Canossa, pedindo um pouco daquele aceto que havia provado antes. Ou seja, estamos falando de um produto que habita castelos, palácios e sótãos, há mais de mil anos.

Ficou curioso com o sótão? Para entender tenho que explicar rapidamente como se produz este que é ainda símbolo da cultura da cidade de Modena.

A matéria prima do aceto balsâmico é obtida das uvas Trebbiano e Lambruschi, cultivadas na região de colinas dos Apeninos Modenenses, na província de Modena, uma área de terreno ligeiramente calcário e de clima de transição entre o mediterrâneo e o continental, que faz com que a uva apresente uma alta concentração de açúcar, o que interfere na atividade dos micro-organismos responsáveis pela transformação do aceto.

Uma quantidade do suco da uva (mosto di uva) é cozido em fogo brando por x horas, depois é transferido para um barril de uma madeira específica e fica lá, pensando na vida, por um ano, de preferência no sótão da casa, porque é onde faz muito calor no verão e muito frio no inverno. Assim, os micro-organismos que passam do ar para o mosto e que devem digerir o açúcar, trabalham muito no verão e repousam no inverno.

Passado o primeiro ano, se retira uma quantidade do líquido e se coloca no segundo barril, de outra madeira específica, e se completa o primeiro barril com o mosto novo. Volta para o sótão, passa o inverno/verão, e ao final deste ano se retira um pouco do segundo barril, que vai ser colocado num terceiro, de outra madeira, e se tira o mesmo tanto do primeiro, que vai para o segundo, e se completa o primeiro… e assim sucessivamente por pelo menos cinco anos (cinco barris – a sequência de barris recebe o nome de “bateria”), para então produzir o primeiro vidrinho de aceto balsamico tradizionale di Modena, que custa uma fortuna.

No passado cada família modenense tinha uma bateria em casa, sempre com um nome feminino porque elas nasciam junto com as filhas, como sendo o dote que cada uma levaria para o casamento. E a produção não se destinava ao comércio, mas para uso familiar ou como presente. Falei “no passado”, mas boa parte das famílias em Modena mantém suas baterias até hoje!

Terminando nosso aperitivo, antecipo o cardápio do próximo texto: um pouco da história do Primo e do Secondo

Mas antes de encerrar a conversa, devo responder a questão que deixei no ar no meu texto anterior: por que azurra? Esta cor não está na bandeira da Itália, mas está na bandeira dos Savoia, a monarquia piemontesa que promoveu a unificação do país e o governou até o final da Segunda Guerra Mundial.

A camiseta azul do time italiano passou a ser usada em 1911, numa partida amistosa de futebol entre Itália e Hungria, como homenagem ao rei Vittorio Emanuele III.


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