Borba Gato: desmontando o terraplanismo histórico

Se fosse alemã, a elite paulista ergueria monumentos ao nazismo? Construída em 1963, estátua do “bandeirante” sempre foi acinte à História e às periferias. Desnaturalizar absurdos cotidianos requer um simples exercício filosófico

Imagem: Lela Beltrão/El Pais Brasil
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Como no Brasil o significado do adjetivo absurdo praticamente perdeu seu sentido vernacular, já que nos acostumamos com a proliferação insuportável dessa e outras letras dedicadas a categorizar fatos da nossa degradante e desgraçada realidade, por vezes o exercício comparativo pode nos ajudar a resgatar alguns desses sentidos. A comparação nos ajuda a colocar as coisas em perspectiva e traz, ao menos temporariamente, alguma luz sobre aquilo que está na penumbra.

Tal exercício de “distanciamento referencial”, corriqueiramente praticado por filósofos e antropólogos em sua busca de conhecer seus objetos de análise, tem por princípio o reconhecimento das amarras conceituais que lhes são próprios, isto é, daquilo que se convencionou chamar de cultura. Embora tal distanciamento do analista dessa base referencial seja impossível de ser levada a cabo completamente, o exercício permanece muito útil para, no mínimo, desnaturalizar os nossos “normais” e acessarmos parte da verdade ou do objeto – haja visto que o objeto é inabarcável, como nos ensinou Max Weber.

A intenção, portanto, é tentar pôr em seu devido lugar os absurdos. E um dos últimos absurdos brasileiros foi a defesa e a manutenção de monumentos dedicados a homenagear personagens históricas espúrias. Refiro-me, obviamente, ao caso da depredação mais recente da estátua dedicada a Manuel de Borba Gato (1649–1718), localizado em Santo Amaro, no dia 24 de julho de 2021.

Façamos, portanto, um exercício de distanciamento forçado a partir da comparação de nossa realidade com uma ficção que, como toda ficção, usa elementos da realidade para ser constituída. Para que essa ficção se torne muitíssimo fácil de acompanhar – porque nos falta tempo e espaço – pedirei ao leitor que imagine uma sociedade alemã cujo histórico pós-segunda guerra seja muito peculiar.

Por um breve momento, imagine que você leitor, vivendo no ano de 2175, a caminhar pelas veredas dessa Berlim fictícia, sendo ela o coração político dessa nossa nação de mentira. Como turista, a percorrer ruas, parques e lugares históricos, você se depararia com uma pomposa estátua dedicada a celebrar alguma figura relevante do regime nazista das décadas de 1930. Um pouco consternado, e consciente dos horrores do nazismo e da guerra, você descobriria ainda, ao pé da estátua, na placa de bronze que a nomeia, que tal homenagem fora erguida décadas após o fim da segunda guerra mundial, quando todo o horror daquele período já havia sido conhecido.

Confuso e curioso, você indagaria um “cidadão de bem” alemão como é possível a existência de semelhante tributo, haja vista a história impregnada naquela figura de pedra e bronze. Esse interlocutor te responderia que, embora fossem “controversos”, o nazismo e o próprio Hitler são elementos históricos de grande estima para os cidadãos alemães, pois foram responsáveis por relevantes obras públicas. Esse cidadão alemão também acrescentaria que o nazismo não poderia ser julgado com a moral dos dias atuais, posto que “aqueles tempos eram outros”. Afinal, concluiria ele, Hitler era apenas um “arquiteto frustrado”, lamentar-se-ia.

Agora imagine que no mesmo dia de sua viagem a essa Berlim imaginária, um grupo de judeus, negros, ciganos, homossexuais e marxistas, herdeiros dos sobreviventes do holocausto nazista, atacassem a mesma estátua com fogo e pedaços de pau e pedra. E imagine ainda que já no mesmo dia daquela ação vândala, representantes dessa elite alemã fossem aos jornais, revistas, mídias sociais manifestar seu repúdio contra semelhante ato “terrorista”, aproveitando a ocasião para destacar o quão tais grupos são periféricos, tanto por viverem em condições de precariedade e desalento nas margens dos centros urbanos, como também fossem filosoficamente periféricos, isto é, ignorantes da cultura e do saber alemães.

Imagine ainda que ação de resposta policial da elite alemã fosse também rápida, e que horas após o atentado contra a infame estátua, membros do grupo de herdeiros da tragédia nazista fossem ilegalmente presos pelas autoridades policiais e judiciais, que responderiam pelo clamor da elite alemã por “justiça”.

Já no avião de volta pra casa, você turista chocado refletiria sobre o significado da homenagem a semelhante atrocidade e a reação daquela sociedade à depredação do ícone. E, finalmente, você concluiria consternado de que aquela sociedade alemã que você conhecera ainda vive sob a égide do nazismo, latente e mal dissimulado.

Pois bem. Esse deprimente exercício imaginativo, embora tosco e simplório, nos ajuda a enxergar o nosso absurdo: a estátua em tributo ao escravista Borba Gato, erguida em 1963, exatamente 245 anos após a morte do sertanista Manuel de Borba Gato, e agora furiosamente defendida por membros da elite paulista após 303 anos do último suspiro do “bandeirante”. Dois absurdos em um.

Ora, não estão todos carecas de saber que os sertanistas, posteriormente batizados de “bandeirantes”, foram escolhidos pela elite paulista, ao final do século XIX, para servirem como referência mítica a essa classe “sem alma heroica”, mas com um poder econômico e político crescentes? Afinal, estávamos na ocasião da constituição dos símbolos nacionais e regionais, com seus nacionalismos forjados e suas estórias mal contadas. Os sertanistas paulistas foram eleitos pela elite paulista para serem o símbolo mentiroso de sua “bravura”, ao contribuírem colateralmente ao alargamento das fronteiras do império português/brasileiro. Manuel de Borba Gato foi um desses toscos sertanistas, cujo ofício era, em síntese, capturar e vender índios, com também utilizá-los em empresas minerais.

Essa é uma constatação da nossa competente historiografia brasileira, que avançou muito ao longo do século XX, ajudando a colocar em termos claros corretos os eufemismos da historiografia precedente e claudicante. Mas não foi, contudo, suficientemente claro que, em 1963, até mesmo a permissiva historiografia não dissesse como os sertanistas paulistas agiam? (Qualquer comportamento da elite paulista e brasileira perante a pandemia de Covid-19 não é mera coincidência.)

Portanto, não há argumentos esdrúxulos da intelligentsia brasileira que se sustente à mais breve e pueril contestação, mesmo utilizando fontes já secundárias da historiografia. Aliás, chega a ser cômico como essas figuras pseudointelectuais do ambiente midiático conseguem se referir à medonha produção de Júlio Guerra como uma obra “contraventora”, “revolucionária”, ou qualquer coisa que o valha. E quando tentam emendar o soneto, nota-se o absurdo foi se tornando delírio puro.

Portanto, eu estou convencido que, se alemã fosse, a elite paulista em particular, mas a brasileira também, ergueria com muita tranquilidade e sem-cerimônia monumentos dedicados ao “glorioso Terceiro Reich”. Quem sabe no futuro não haverá um monumento dedicado ao herói nacional, Jair Bolsonaro, por ter… acabado com o horário de verão?

Post scriptum: Um dos maiores acervos cinematográficos do Brasil guardados pela Cinemateca Brasileira foi quase completamente destruído em mais um incêndio induzido pelo abandono e pelo descaso com a história e com as instituições de cultura pelos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Tenho certeza que o incêndio do acervo da Cinemateca Brasileira causará menos ruído entre a elite paulista do que a fuligem que tinge a estátua do sertanista assassino.

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Um comentario para "Borba Gato: desmontando o terraplanismo histórico"

  1. Juno disse:

    Tudo isso para justificar um ato criminoso, de cidadãos periféricos.

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