60 anos do Centro Popular de Cultura da UNE – e seu legado

Iniciativa colocou a Cultura no centro da política e levou aos grotões do país teatro, cinema e educação. Apesar do elitismo de “levar cultura ao povo”, ela alfabetizou milhares e inspirou gerações de artistas em diálogo com a realidade brasileira

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Estamos próximos do aniversário de 60 anos do Centro Popular de Cultura (CPC), criado pela União Nacional dos Estudante (UNE) e que fez história mesmo tendo existido por poucos anos. Para alguns ele começou em dezembro de 1961, para outros foi o ano de 1962 que marcou o seu nascimento. Claro que não podemos esperar que a Funarte destaque a importância do CPC com alguma celebração, mas é importante que os grupos que lutam pela democratização da cultura em nosso país comemorem este marco devido a sua importância para o Brasil no campo cultural.

O CPC capitaneou várias ações e formações no campo das artes em muitos lugares e se espalhou pelo país através das UNE-Volantes com apresentações teatrais e oficinas culturais, além de apoiar movimentos sociais daquela época. Ele tinha o foco na conscientização política e viu na cultura o espaço ideal para propagar as ideias da esquerda, deixando uma importante herança artística nas áreas da música, do teatro, da literatura e do cinema. Suas atividades foram suspensas após o golpe civil-militar de 1964, fazendo com que vários os artistas e intelectuais que o integravam fossem perseguidos, presos e exilados.

Uma das inspirações para a criação CPC veio do Movimento de Cultura Popular (MCP) da cidade do Recife, criado em 1960 no primeiro ano de mandato de Miguel Arraes como prefeito daquela cidade. Seus fundadores eram professores e artistas e entre eles estava Paulo Freire. Pernambuco também era o epicentro da luta pela reforma agrária com as Ligas Camponesas e sementes do que viria a se concretizar como a Teologia da Libertação anos mais tarde. Este cenário favoreceu a criação do MCP, que tinha como seu foco principal o método alfabetizador que estava sendo criado por Freire. Roberto Schwarz, em seu famoso ensaio O pai de família e outros estudos (p. 68), comenta que “Havia intenção também de estimular toda sorte de organização do povo, em torno de interesses reais, de cidade, de bairro, e mesmo folclóricos, afim de contrabalançar a indigência e o marginalismo da massa; seria um modo de fortalecê-la para o contato devastador com a demagogia eleitoral.” Para ele, o maior feito do MCP foi espalhar o método Paulo Freire que possibilitava, através da alfabetização, conscientizar politicamente o oprimido que se alfabetizava. Augusto Boal em sua autobiografia Hamlet e o filho do Padeiro (p.184), conta que esteve em Pernambuco naquele período com o Teatro de Arena e ficou impressionado com o apoio dado ao MCP por Arraes, tanto financeiro como com edifícios, veículos e salários que os MPCistas recebiam para oferecer os “cursos de arte culinária e de teatro, bordados e filosofia”. O sucesso do MCP logo faria com que a ideia fosse replicada pela UNE no Rio de Janeiro. O Teatro de Arena também foi fonte para a sua criação, tanto que alguns dos seus fundadores saíram daquele grupo teatral e mudaram para a capital carioca para colaborar integralmente com o CPC.

A efervescência política que produziu o CPC deve muito ao entusiasmo com o Brasil que surgiu durante o governo de Juscelino. Havia euforia em uma nação que queria se ver no espelho sem interferências na sua imagem. Parecia que tudo era possível com a inauguração de Brasília mostrando ao país que existia um mundo para além das cidades litorâneas. Além disso, na segunda década dos anos cinquenta tivemos a Bossa Nova como um acontecimento musical. No teatro, Abdias Nascimento solidificava o Teatro Experimental do Negro no Rio de Janeiro e o Teatro de Arena buscava levar ao palco o brasileiro da classe trabalhadora com a peça Eles não usam Black Tie em seu pequeno teatro no centro de São Paulo. Nas telas, surgia a semente do Cinema Novo. Então veio 1961 e tivemos a renúncia de Jânio Quadros e a Campanha pela Legalidade liderada por Leonel Brizola para garantir a posse de João Goulart. Era visível que forças golpistas estavam agindo e utilizavam a religião para manipular o povo (alguma semelhança com a nossa atualidade?). Era consenso entre os artistas de esquerda que o Brasil continuava “subdesenvolvido”, como cantado na famosa Canção do Subdesenvolvido de Calos Lyra e Chico de Assis para denunciar o imperialismo estadunidense e composta pelos dois durante o período em que foram CPCistas. O país estava em ebulição e muitos artistas questionavam o papel que poderiam tomar naquele contexto político conturbado. A avaliação de muitos deles era de que as obras culturais urbanas criavam um caldo revolucionário que fervia em fogo alto nas capitais, mas estava longe de atingir as massas espalhadas pelo Brasil interiorano, onde a maioria da população ainda vivia e era analfabeta. Era para lá que eles queriam que o CPC se direcionasse com a intenção de “conscientizar” aqueles a quem julgavam necessitar de suas mensagens revolucionárias. A estratégia para a criação e a popularização dos CPCs em várias cidades brasileiras era oferecer apresentações artísticas e oficinas de artes, principalmente teatro. A alfabetização da população mais pobre era outro pilar desta ação. Cinema e literatura também foram tratados como importantes para atingir este objetivo. Além disso, foram várias as publicações para difundir o pensamento CPCista com os Cadernos do Povo Brasileiro e a série de livros de poesia Violão na rua.

Um dos mais ferrenhos debates no início do CPC era sobre o que significava cultura popular e quem a produzia. Ruy Castro conta em seu livro Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova (p. 261) que foi esta discussão que levou o CPC a se chamar Centro Popular de Cultura e não Centro de Cultura Popular, já que alguns dos seus membros vindos da classe média não se identificavam como fazedores de uma cultura feita pelo povo. A verdade é que o CPC era um espaço dominado por homens jovens ligados ao mundo universitário ainda bastante restrito a poucas pessoas naquela época. É importante ressaltar que muitos CPCistas eram ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) o partido de esquerda mais forte daquele período, ou eram orientados por alguns intelectuais ligados ao PCB, a exemplo do sociólogo Carlos Estevam Martins  que foi um dos primeiros diretores do CPC e tinha grande autoridade nas tomadas de decisão sobre as estratégias da entidade. Isto influenciou alguns espetáculos feitos pelos grupos de teatro do CPC, como conta Augusto Boal em seu livro Técnicas latino-americanas de teatro popular: uma revolução copernicana ao contrário (p. 26): “Antes das eleições, em cada comício, era comum a apresentação de textos teatrais que exemplificavam as posições políticas, que seriam definidas pelo eleitorado.” Isso aconteceu especialmente nas eleições de 1960 quando o candidato da direita, Jânio Quadros, acabou vencendo.

Todos tinham boas intenções, mas havia a ideia de “levar cultura para o povo” como se as populações empobrecidas economicamente não fossem capazes de produzir e consumir a sua própria arte. Uma outra crítica é que não era o povo que estava apresentando as suas manifestações artísticas, mas alguns artistas e intelectuais falando em seu nome. Claro que é fácil fazer críticas negativas aos CPCistas como estas ou a de que utilizavam a arte para propaganda política, mas é preciso entender que os tempos eram outros e aqui não há uma condenação a estas atitudes, mas um entendimento feito a partir de um olhar distante no tempo. A polaridade era, talvez, ainda mais exacerbada do que a que estamos a testemunhar em nossos dias e seria inocente imaginar grupos tão antagônicos como a UNE e a organização de direita católica Tradição, Família e Propriedade (TFP) dialogando de forma pacífica. Não esqueçamos que chegou um momento em que os teatros foram invadidos durante as apresentações das peças e os atores e atrizes agredidos fisicamente. É claro que houve erros por parte do CPC, mas considero que os acertos foram maiores no balanço final.

Vale lembrar que o legado dos Centros Populares de Cultura é sentido até hoje de várias maneiras. Primeiro porque juntou jovens artistas que buscavam novas formas de diálogo com as periferias geográficas brasileiras. Isso trouxe questionamentos ao fazer artísticos destes jovens que entravam em contato com uma realidade nova para eles e reverberou no resultado de suas obras, como foi o caso do filme Cinco Vezes Favela, de 1962, com cinco histórias dirigidas cada uma por um jovem diretor de cinema, e o premiado documentário Cabra marcado para morrer, também de 1962, que nasceu quando o diretor Eduardo Coutinho conheceu a líder camponesa Elizabeth Teixeira na Paraíba enquanto trabalhava como diretor das UNE-volantes. Segundo porque fomentava a formação de aspirantes ao mundo artístico, fazendo com que alguns deles finalmente realizassem o sonho de fazer arte. Terceiro, e não menos importante, é que o CPC colocou a cultura na pauta da sociedade brasileira como algo essencial. Não que ela não estivesse antes, mas sem dúvida alguma o CPC amplificou o debate sobre a importância da arte na luta por uma sociedade mais justa.

Para se ter uma ideia da importância do CPC na nossa cultura, basta dizer que eram bastante atuantes na sua concepção, ou em suas atividades, artistas como os poetas Ferreira Gullar e Vinícius de Moraes, os diretores de cinema Carlos Diegues, Leon Hirszman e o famoso documentarista Eduardo Coutinho, os cantores e compositores Calos Lyra, Geraldo Vandré e os integrantes do grupo que inicialmente se chamou Quarteto do CPC e depois ficou conhecido como MPB-4, os atores José Wilker e Carlos Vereza e os dramaturgos Vianinha e Chico de Assis. E cito apenas algumas pessoas, pois a lista de artistas que viriam a se tornar grandes nomes nas artes brasileiras e foram CPCistas, ou foram ligados às suas atividades de alguma maneira, é enorme. Se pensarmos em quantas pessoas foram beneficiados com as oficinas e as apresentações promovidas pelos grupos do CPC, este número é incontável.

É inegável que os Pontos de Cultura criados durante o Governo Lula têm um resquício do CPC, porém sem o mesmo dirigismo político e com o entendimento de que aquele interior do país que os CPCistas julgavam necessitar da presença deles para levar cultura está cheio de poetas, grupos de dança, cantoras e cantores e muitos instrumentistas musicais, pois se é algo que abunda neste país é a criatividade artística. Mesmo que a cultura não receba o apoio que merece do atual governo, ela sobreviverá e sairá mais forte deste momento em que é diminuída. Isso já aconteceu em um passado recente quando artistas foram perseguidos, mas os seus algozes acabaram caindo no esquecimento com a chegada da democracia. A prova é que estamos celebrando o CPC e os seus artistas e não quem os perseguiu.

Referências bibliográficas

Boal, Augusto. Técnicas latino-americanas de teatro popular: uma revolução copernicana ao contrário. Hucitec: São Paulo. 1979.

_____. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Record: Rio de Janeiro. 2000.

CASTRO, Ruy. Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo. 1990.

SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Paz e Terra: Rio de janeiro. 1978.

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