Vidas na Palestina, entre a colonização e a resistência

Na exposição Palestina Meu Amor, registros de viagem à terra ocupada. Nos 724 km de muro alto, arte de protesto e memória. Em ruínas e vielas, a dor de famílias sem casa. Uma declaração de amor a um povo há 73 anos sob dominação israelense

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A exposição Palestina, meu amor reúne fotos e depoimentos de Berenice Bento, em suas viagens à Palestina. É antes de tudo, uma declaração de amor-político (outra expressão para aliança ético-político) a um povo que há 73 anos vive sob a opressão colonial e o apartheid israelenses.

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Visitei a Palestina duas vezes. Uma no inverno, outra no verão. Na primeira vez, em agosto de 2015, fiquei 10 dias. Voltei em novembro de 2016 para uma temporada de três meses. Abreviei minha estadia. Tornou-se insuportável seguir lá. Diante dos abusos e violência que presenciei, eu sentia que meu corpo, a qualquer momento, entraria em combustão, como um transformador de energia no alto de um poste. Precisei voltar. O coração das trevas, o horror contemporâneo, chama-se colonialismo e apartheid israelenses.

O colonialismo israelense ocupa todos os poros da vida palestina. Da burocracia à violência letal, nada escapa ao controle colonial microfísico. Por dias, eu vi a humilhação dos trabalhadores nos postos de controle militar. Eles precisavam ter sorte para conseguir fazer a travessia do posto de controle para chegar ao trabalho às 8 horas da manhã. As filas começavam a se formar por volta das 3 horas de manhã. Durante o inverno, a travessia tornava-se ainda mais penosa. Enquanto eu esperava para fazer a travessia, um trabalhador me disse, em inglês: Está vendo? Somos gado, animais, não somos humanos. Ele não estava errado. Toda a estrutura dos postos de controle militar é inspirada em um matadouro de gado. Durante a travessia, o posto pode ser fechado porque algum/alguma palestino/a foi executado ou ferido. A previsibilidade do cotidiano em contexto colonial não existe.

Em 2015, participei de um protesto em Ramallah por justiça para um bebê de 18 meses e de seus pais. Eles foram queimados vivos por terroristas sionistas que incendiaram a casa da família. Naquela manifestação, uma criança palestina de 16 anos foi assassinada pelo exército israelense. Por dias, os postos de controle militar ficaram fechados. Se o posto de controle é fechado, não tem como o trabalhador palestino chegar ao trabalho e serão dias sem salário.

Eu tentei, algumas vezes, autorização para visitar Gaza. Impossível: apenas funcionários da ONU têm autorização de Israel para entrar. Engana-se quem diz que Gaza é uma prisão ao céu aberto. Não existe nada aberto em Gaza. O céu, o mar, as fronteiras, tudo é controlado por Israel.

A exposição Palestina, meu amor soma-se aos eventos que acontecem em maio em todos os cantos do mundo. A catástrofe (Nakba) palestina já dura 73 anos. A Nakba não foi um ato único que aconteceu em 1948. Não existe interrupção na política de limpeza étnica e genocida de Israel. Foi o que eu testemunhei, com o corpo tremendo e com sangue nos olhos.

Os/as palestinos/as estão separados/as por 724 quilômetros de muro, com oito metros de altura. É um povo fragmentado entre a Cisjordânia, Gaza, Jerusalém Oriental, campos de refugiados, Israel e pelo mundo afora. O controle de mobilidade do povo palestino em sua própria terra é feito por uma mistura de cimento, papéis e armas. Como atravessar o muro e alcançar os abraços de parentes que vivem do outro lado? Do lado palestino, os muros são espaços de abertura para o mundo. Poemas, desenhos, grafites, cores e formas cobrem os muros até onde os braços alcançam. Apresenta-se ao mundo em formas abstratas, sentido abertos, textos sobrepostos. A estética abstrata deixa-nos livres para escolher qual camada decifrar. Algo que não nasceu arte, tornou-se. A obra-prima do colonialismo israelense, o muro, em mãos palestinas, é ressignificada em vida. Na Palestina, os muros falam (as fotos são do muro que separam Jerusalém Oriental Ocupada da cidade de Belém, conhecido como checkpoint 300).

Ambulância de Israel

Eu sou um jovem palestino e nasci e cresci em Beit Sahour, uma pequena cidade fora de Belém. Dois anos atrás, eu conheci uma garota, uma refugiada palestina de Belém. Nós nos casamos e ela engravidou. No sexto mês de gravidez, ela começou a ter algumas complicações e, como resultado, ela teve o bebê três meses mais cedo. Devido às complicações, o bebê necessitou ir ao hospital Al Maquasid, em Jerusalém Oriental, para tratamentos. Quando alcançamos o posto de controle militar, os soldados negaram-se a nos deixar passar, apesar da situação crítica do bebê. Eles pediram-nos para chamar pela ambulância israelense, mas, quando eles (a ambulância) chegaram, não permitiram que minha esposa acompanhasse o bebê. Depois de uma longa e quente discussão, os soldados permitiram-nos passar. A ambulância me obrigou a pagar 250 shekels. Afinal, nós fomos admitidos no hospital.

– Geoerge, Beit Sahour.

Lama

No último Natal, minha família decidiu ir para Jerusalém. Nós conseguimos as autorizações de Israel. Meu pai era a primeira pessoa a atravessar o poste de controle militar. O soldado perguntou: “Qual é seu sobrenome?” Meu pai respondeu: “Lama”. O soldado repetiu a mesma pergunta e meu pai deu a mesma resposta: “Lama”. O soldado perdeu a paciência e manteve-se perguntando repetidamente a mesma pergunta. O soldado começou gritar. As pessoas começaram a chorar e ninguém sabia o que estava acontecendo. O capitão do posto chegou com pressa para investigar o problema. Ele perguntou ao meu pai novamente: “Qual é seu nome de família?”. Meu pai respondeu novamente e de um modo muito educado: “Lama”. Após alguns momentos, o capitão compreendeu qual era o problema. A palavra “Lama”, em hebreu, significa “por que”. De fato, uma boa questão para os postos de controle militar.

– Mary, Belém.

BDS

Estas três letras tornaram-se o pesadelo do Estado de Israel. Em 2005, a sociedade civil palestina lançou um apelo ao mundo pelo Boicote, Desinvestimentos e Sanções a Israel (BDS). Por onde andei na Cisjordânia, encontrei a sigla do movimento espalhada nos muros. Os objetivos do MBDS são: fim da ocupação e da colonização dos territórios palestinos, igualdade de direitos para os cidadãos palestinos em Israel, respeito ao direito de retorno dos refugiados palestinos.

Laila Kaled é um símbolo da presença feminina na resistência do povo palestino. Ela passou a infância e a adolescência vivendo como uma refugiada no Líbano, como milhares de outras crianças que viram suas casas roubadas pelos sionistas. Passou a fazer parte da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), que tinha como principal meta a formação de um Estado Palestino, orientado pelo socialismo.

A chave é um dos símbolos do povo palestino. Certamente aqui, no campo de refugiados Aida (localizado em Belém), muitos ainda guardem as chaves de suas casas. O campo de refugiados Aida foi criado pela UNRWA (Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina no Oriente Próximo) em 1950. Sua população (cerca de 3 mil refugiados) é procedente de 43 povoados invadidos (e alguns destruídos) por Israel em 1948 e em 1967. Aida se soma aos outros 59 campos de refugiados palestinos espalhados pela Cisjordânia, Gaza, Jordânia, Síria, Líbano. O direito ao retorno é garantido pela Resolução 194 da ONU (de 11/12/1948), mas Israel se nega a cumpri-la.

A expulsão da comunidade beduína Khan al-Almar insere-se no projeto global de Israel de limpeza étnica continuada. Em Sheikh Jarrah (Jerusalém Oriental Ocupada eu excluir Silwan), todos os dias acontecem demolições de casas, abrigos de animais e edifícios. E para onde vão as famílias? Possivelmente para algum campo de refugiado. Eram sete horas da manhã quando registrei a tristeza da família sobre os escombros da casa. Os soldados chegaram de madrugada, cercaram o bairro e começaram a destruição. Além das demolições, está sendo invadido por colonos judeus, que exibem bandeiras israelenses e armas com o orgulho. Dizem que a terra lhes pertence por mandato divino. Seguem transformando Deus em assassino e genocida.

Nota: Hoje, 10 de maio de 2021, enquanto trabalho na finalização dessa exposição, as imagens e notícias da brutalidade israelense contra palestinos/as correm o mundo. Querem roubar as casas de dezenas de famílias de Sheikh Jarrah. O exército israelense já matou 20 palestinos (sendo 09 crianças), feriu centenas e prendeu outras centenas. A mesquita de Al Aqsa foi invadida pelo exército israelense.

Fotos e textos: Berenice Bento
Tradução dos cartazes: Berenice Bento
Revisão textual: Gerusa Bondan
Tratamento das fotos e diagramação: Raphael Mirai

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Um comentario para "Vidas na Palestina, entre a colonização e a resistência"

  1. José Mario Ferraz disse:

    A humanidade não tarda a ter o destino dos dinossauros. A natureza está sendo muito lenta na execução desse trabalho.

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