China: das bugigangas “1,99” a potência tecnológica

De exportador de itens primários e manufaturas baratas, país transformou-se, em poucas décadas, no principal polo global de inovação. Agora, com ambicioso plano, quer liderar Indústria 4.0. “Guerra comercial” com os EUA apenas começou

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Em esforço para compreender em profundidade a China, Outras Palavras publica série de textos do cientista político e geógrafo brasileiro Diego Pautasso, que estuda o país asiático há 15 anos. Uma entrevista com o autor pode ser vista aqui.
O artigo a seguir foi publicado originalmente no site Bonifácio.
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Os processos nacionais de desenvolvimento são, via de regra, construídos a partir de uma complexa estrutura intergeracional, cujo caminho é repleto de percalços e contradições. No caso da China, a longa estrada rumo ao desenvolvimento pleno da nação entrelaçou, em suas origens, a confluência de processos de descolonização, de revolução antissistêmica e de reconstrução nacional a partir de heranças imperiais milenares.

Assim, o desenvolvimento resulta, pois, da combinação de processos globais com políticas nacionais, pragmaticamente adequadas às oportunidades conjunturais. Absolutamente todos os países hoje considerados desenvolvidos se utilizaram amplamente de políticas industriais, comerciais e tecnológicas (ICT) para atingirem tais condições. Em outras palavras, atingem-nas a partir de uma intrincada rede de interações e conhecimento mobilizada em prol da potencialização da economia nacional, com o progressivo aumento de produtividade se vinculando aos mecanismos de agregação de valor, de conhecimento e de inovação que, por sua vez, vinculam-se ao aumento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

O avanço de qualquer projeto nacional consistente tende, em última instância, a se defrontar com os limites impostos pelas estruturas hegemônicas de poder de sua era, formados por mecanismos de dominação que direta e indiretamente respaldam a supremacia de determinados países e a legitimação de certas organizações internacionais. Daí a importância da plena articulação de uma estratégia de inserção internacional consequente e a afirmação de um projeto nacional de desenvolvimento de longo prazo para a superação do gap produtivo-tecnológico que sustenta tais estruturas de poder.

Pertence ao passado a indústria de baixa tecnologia chinesa, na qual se destacava a produção de brinquedos.

Por isso, não é possível compreender as questões concernentes ao desenvolvimento das nações quando as dissociando da dialética da forma como se refletem no deslocamento dos centros decisórios globais. Afinal, são os resultados da contenda entre polos dominantes e ascendentes que acabam por determinar os respectivos graus de autonomia e lugar dos países nas configurações hierárquicas de poder no mundo.   

Dito isso, para compreender no que consiste o Made in China 2025, cabe recuperar a trajetória mais ampla da China, emblemática da tensa e contraditória relação entre desenvolvimento e inserção internacional. A política de Reforma e Abertura, de Deng Xiaoping, visava superar contradições do ciclo de reconstrução nacional iniciado em 1949. O ajuste nas estratégias tanto de desenvolvimento nacional quanto de inserção internacional incluíram movimentações bruscas, como a aproximação político-diplomática entre China e Estados Unidos da América na década de 1970, em plena Guerra Fria, num contexto de recém superação dos sobressaltos da Revolução Cultural. Atos como esse demonstram, com exatidão, que a política é, na maioria das vezes, mais sinuosa do que pareceres pautados por juízos morais podem fazer crer.

Nesse quadro de aproximação sino-americana, a expansão financeira estadunidense potencializou o progressivo deslocamento do epicentro produtivo global do Atlântico Norte para a Ásia Oriental. Esse resultou, nas décadas seguintes, num perceptível e vigoroso renascimento do papel protagonista da Ásia a partir da liderança da reemergente civilização chinesa, e da reconstituição do sistema sinocêntrico.

Hoje, enquanto as potências ocidentais endossam a crescente desregulamentação financeira e atrofiam setores fundamentais de suas economias, a China aprofunda a condição de epicentro da produção mundial. No âmbito das exportações, os valores passaram de 16,8 bilhões de dólares, em 1980, para 82 bilhões em 1990, 370 bilhões em 2000, 1,680 trilhão em 2010 e 1,980 trilhão em 2016. Entre 2007 e 2017, os superávits comerciais acumulados da China totalizaram quase 3,5 trilhões de dólares.

Na década de 1980 as exportações chinesas praticamente se restringiram ao petróleo e seus derivados, alimentos e outros produtos primários; durante os anos 1990 passaram a ter importante composição de calçados, vestuário, brinquedos e outros bens manufaturados de baixo valor agregado; já na atualidade, predominam os equipamentos eletroeletrônicos, motores, veículos, materiais de construção, dentre outros bens sofisticados. 

A atuação das empresas chinesas no âmbito global reflete a amplificação do poder do país oriental na esfera internacional. Tal fato pode ser bem ilustrado pela rápida expansão do número de suas multinacionais entre as grandes corporações do mundo. Não obstante as dificuldades de mensuração, devido aos dados variáveis de controle acionário e perfil das empresas, é evidente a ascensão ocorrida: dentre aquelas listadas como as 500 maiores empresas do mundo pela revista Fortune, a China detém hoje cerca de 120, quando eram apenas 18 em 2005; a título de comparação, nesse mesmo período os EUA reduziram o número de suas empresas na lista, passando de 176 empresas, em 2005, para 126 empresas, em 2018. Ressalte-se: não se trata apenas de empresas ligadas a setores tradicionais, vinculados à exploração de minérios, petróleo, alimentos, têxteis, por exemplo, mas muitas empresas de tecnologias de ponta, incluindo setores de informática, comunicação, energia limpa, entre outros. O país, que nos anos 1990 se notabilizou por exportar produtos de “1,99”, tornou-se um polo protagonista de inovação produtiva e tecnológica. 

Durante a política de Reforma de Abertura, do final da década de 1970, a ênfase chinesa recaiu sobre o desenvolvimento da capacidade produtiva nacional, com atração de investimentos estrangeiros voltados para a internalização de capital e de tecnologias; a partir dos anos 1990, a China já ensaiava a projeção de seus investimentos para o exterior, priorizando os países periféricos como destino; desde 2005, entretanto, a China tem expandido ainda mais seus investimentos no exterior, ensejando uma evidente transformação qualitativa da expansão dos seus negócios internacionais.

Alinhada a essa dinâmica, foi elaborada, em 1999, a estratégia Going Global, justamente no contexto de ingresso do país na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, voltada para a ampliação da segurança em recursos naturais, alimentares e energéticos, via controle das cadeias de valor desses setores em outros países. Atualmente, a China desenvolve a Going Global 2.0 com o objetivo central de promover demanda à economia nacional, alavancando-a por meio da Nova Rota da Seda. 

Diante do exposto, pode-se compreender e abordar os principais aspectos do Made in China 2025, que sinaliza o aprofundamento da sinergia entre desenvolvimento nacional e potencialização da inserção global da China. É um caso exemplar da capacidade estatal de promover políticas de ICT em favor da indústria nascente. Ou seja, o governo chinês tem impulsionado a interação entre Estado e setor privado e financiado a fusão de setores, conformando oligopólios (“campeões nacionais”) com vistas a aprofundar a produtividade e a socialização do investimento. O planejamento estatal inclui financiamento barato oferecido por bancos públicos nacionais, produção de insumos básicos com preços baixíssimos e estímulo da demanda por meio de compras governamentais. 

Como já abordado, políticas de ICT têm sido historicamente cruciais para possibilitar processos de desenvolvimento das nações. No entanto, num segundo momento, após a consolidação destes processos, costumam combinar a manutenção de seus principais sustentáculos com uma retórica de defesa de políticas liberais no âmbito global multilateral. Assim, é “chutada a escada” para evitar a ascensão de competidores que queiram trilhar o mesmo caminho, e o país desenvolvido passa a alimentar ações e empreendimentos voltados à garantia da monopolização de seus domínios (patentes) e a inibição destas mesmas políticas públicas, que lhes deram origem, em terceiros países.

Trata-se, portanto, de uma estratégia ciclicamente adotada por potências mundiais em prol da reafirmação de suas vantagens e, por extensão, das assimetrias globais expressas na divisão internacional dos processos produtivos – ou seja, na estrutura que rege o lugar que cada país ocupa nas cadeias de valor e riqueza. Com efeito, o caminho ao desenvolvimento combina, portanto, a execução de um projeto nacional com a paralela construção da capacidade política para romper estruturas internacionais hegemônicas, voltadas para a cristalização das configurações globais de riqueza e poder. 

No caso da China, entrelaçam-se as políticas de reafirmação da soberania, integridade territorial e reconstrução nacional da Era Mao com as reformas modernizantes desencadeadas pela Era Deng. No caso atual, falamos das múltiplas políticas públicas governamentais voltadas para a promoção da complexidade econômica chinesa, englobando a abertura comercial gradual, com complexo sistema de tarifas, barreiras não-tarifárias e licenças; a atração de investimentos condicionados às transferências tecnológicas e joint ventures, o encadeamento dos distintos segmentos da indústria nacional; os fortes estímulos à engenharia reversa e a aplicação branda das leis de proteção intelectual; a criação de clusters nacionais por meio de requisitos de conteúdo local; além de uma política econômica capaz de combinar câmbio desvalorizado, juros baixos, controle de capitais, dentre outros mecanismos. 

Nesse quadro de acirramento da competição interestatal e corporativa, a China mira o que se convencionou chamar indústria 4.0 – conceito criado em 2011, na feira de Hannover, na Alemanha, para se referir à produção de manufatura avançada. São inovações tecnológicas ligadas à inteligência artificial, robótica, internet das coisas, Big Data, veículos autônomos, impressão em 3D, nanotecnologia, biotecnologia, armazenamento de energia, novos materiais (grafeno) e computação quântica. 

A política Made in China 2025 (MIC 2025), inspirada no plano “Indústria 4.0” da Alemanha (adotado em 2013), foi aprovada pelo Conselho de Estado da China em 2015, voltada ao desenvolvimento da manufatura inteligente. Trata-se de um aprofundamento de outro estudo, de 2010, intitulado China’s drive for ‘indigenous innovation’, cujo objetivo era valer-se do poderoso regime regulatório chinês para forçar a diminuição da dependência de tecnologia estrangeira, por meio da promoção de inovações nacionais. O MIC 2025 se propõe a impulsionar a liderança da China nas redes globais de produção e inovação, conferindo eficiência e qualidade aos produtos nacionais. O plano foi elaborado pelo Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação (MIIT), com a contribuição de 150 especialistas da Academia de Engenharia da China. 

Este documento governamental destaca 10 setores prioritários de atuação: 1) nova tecnologia de informação avançada; 2) máquinas e ferramentas automatizadas e robótica; 3) equipamentos aeroespaciais e aeronáuticos; 4) equipamento marítimo e transporte de alta tecnologia; 5) equipamento moderno de transporte ferroviário; 6) veículos e equipamentos de nova energia; 7) equipamentos de energia; 8) equipamentos agrícolas; 9) novos materiais; e 10) biofármacos e produtos médicos avançados.

Para tanto, o governo chinês não está focado apenas na inovação, mas em toda a cadeia de produção e serviços modernos. O objetivo central é aumentar o conteúdo de componentes e materiais nacionais primeiramente para 40%, até 2020, e posteriormente para 70%, até 2025. A estratégia do governo chinês inclui políticas cujos objetivos são acelerar os esforços de transferência de tecnologias e de requisitos de licenciamento e aquisição de empresas estrangeiras estratégicas, bem como de diversas atividades de engenharia reversa. É interessante observar as metas na indústria automotiva, setor em que se entrelaçam tecnologias da informação, veículos autônomos, novas formas de energia, dentre outros. 

Infográfico 1

Fonte: MIIT, disponível em: http://english.gov.cn/policies/infographics/2015/06/02/content_281475119391820.htm

O Made in China 2025 é, definitivamente, um ambicioso plano para afirmar a liderança industrial e tecnológica da China, em compasso com um robusto processo de substituição de importações. Entre 2016 e 2020, o MIIT e o Banco de Desenvolvimento da China executaram programas de financiamento – incluindo empréstimos, títulos e leasing – para os grandes projetos, com um financiamento estimado em mais de 45 bilhões de dólares. Trata-se de uma escalada produtiva que tende a recrudescer a competição interestatal e interempresarial internacional, típicas dos contextos de reorganização do poder mundial. E é por isso que nem a “guerra comercial” desencadeada pelos Estados Unidos contra a China em 2018, nem a detenção de Meng Wanzhou, diretora financeira da gigante de telecomunicações chinesa Huawei, resumem-se a litígios deslocados desse quadro geopolítico mais amplo.     

Consequentemente, não restam dúvidas quanto a veracidade de que o desenvolvimento nacional e a projeção global de um país se entrelaçam e se fortalecem mutuamente – e a trajetória da China é emblemática dessa sinergia. O projeto Made in China 2025 é causa e consequência desse processo, cujas origens remontam à reconstrução nacional iniciada em 1949, dinamizada e potencializada após as reformas empreendidas nos anos 1970. Se é fato que a 3ª Revolução Industrial e a assim chamada “indústria 4.0” trarão mudanças estruturais na produção e no trabalho, estas não se dissociam do desenvolvimento e poder das nações e, com efeito, de suas políticas públicas voltadas à produção de riqueza (complexa e tangível). Consequentemente, o maior poder geoeconômico da China torna imperativa uma maior assertividade geopolítica, tensionando as estruturas hegemônicas de poder lideradas pelos Estados Unidos.

É, sem sombra de dúvidas, dessa resultante que surgirão as novas configurações de poder internacionais, a serem estruturadas a partir de rupturas com maior ou menor escala de violência, a depender dos rumos que suas dinâmicas assumirem.

Observação: abaixo consta o artigo acadêmico no qual aprofundamos o debate sobre o Made in China 2025 e, com efeito, todas as suas referências.

PAUTASSO, Diego.“Desenvolvimento e poder global da China: a política Made in China 2025”. Austral: Brazilian Journal of Strategy & International Relations, v. 18, p. 183-198, 2019.

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2 comentários para "China: das bugigangas “1,99” a potência tecnológica"

  1. Eduard Jacob disse:

    Um artigo decente !

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