Ásia: tensões, conflitos e acomodações

Num continente em movimento, surgem sinais das mudanças geopolíticas contemporâneas. EUA já não arbitram disputas. China e Rússia tentam ocupar o espaço. Emergem tanto convergências quanto a grante heterogenidade do Sul Global

Imran Khan, primeiro ministro do Paquistão, derrubado em 2022. Sucesso de seus partidários nas eleições deste mês expõe emfraquecimento do sistema de alianças costurado pelos EUA
Imran Khan, primeiro ministro do Paquistão, derrubado em 2022. Sucesso de seus partidários nas eleições deste mês expõe enfraquecimento do sistema de alianças costurado pelos EUA
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Por João Paulo Nicolini Gabriel e Carlos Eduardo Carvalho*

Os intensos bombardeios entre Irã e Paquistão em 16 e 17 de janeiro causaram justificadas preocupações: um país em ascensão atacou uma potência nuclear, que retaliou com igual ferocidade. Antigos conflitos do sul da Ásia ameaçaram se somar aos choques no Oriente Médio. Surpreendente foi a rápida acomodação: as tensões diminuíram em poucos dias, sem a mediação direta dos Estados Unidos, de países europeus ou de organizações multilaterais. Irã e Paquistão contam com apoios conflitantes de China e Rússia, que podem ter sido decisivos para encaminhar o confronto por meios pacíficos.

Os eventos sublinham a complexidade das relações geopolíticas na região e ilustram bem o cenário do chamado Sul Global: permanência e exacerbação de conflitos antigos e difíceis, com mecanismos de acomodação inesperados e pouco explícitos. Sul Global é conceito vago o bastante para incluir países muito diferentes, mas é referência interessante por destacar convergências diante do Norte rico, ocidentalizado e branco, o antigo Primeiro Mundo. Contudo, são muito fortes as diferenças entre países relevantes do Sul Global, nas relações com os EUA e diante de processos em curso no Oriente Médio e na Ásia, o que aparece inclusive em disputas eleitorais competitivas em andamento.

Os problemas entre Teerã e Islamabad são antigos, com fatores religiosos e étnicos, caso da minoria baluque, que habita partes dos dois países e reivindica independência. O Paquistão acusa a Índia de fomentar a ação dos baluques e diz que o Irã é complacente com grupos que considera terroristas, acusação que Teerã devolve ao vizinho sobre grupos islâmicos rivais dos xiitas. Ainda assim, os dois países procuravam manter relações diplomáticas cordiais.

O conflito de janeiro começou com a iniciativa do Irã de bombardear – inclusive no Paquistão — alvos do Jaish al-Adl, grupo que Teerã considera terrorista e responsável por ataques no país em janeiro. Talvez o Irã tenha decidido aproveitar o momento vulnerável do Paquistão. As eleições nacionais de 08/02 foram as primeiras após a deposição parlamentar do primeiro-ministro Imran Khan, em 2022. Muito popular no país, Khan alega que os EUA insuflaram militares para afastá-lo e condená-lo a dez anos de prisão, por suposta corrupção. Seus partidários, que foram forçados a concorrer como “independentes” e serem vítimas de fraudes em série, segundo a própria mídia ocidental, obtiveram mais cadeiras no Parlamento que qualquer outro partido. O país enfrenta grave crise econômica, agravada por desastres climáticos, e depende muito da China para financiamento externo, mas Pequim busca garantir que Islamabad siga normas do FMI para evitar inadimplência.

Na Índia, o governo de Narendra Modi, favorito nas eleições gerais de abril e maio, procura estreitar relações com Israel, com incentivo dos EUA na estratégia de conter a China. É o caso da iniciativa I2U2, proposta por Biden em 2022 para promover investimentos em transporte, tecnologia, saneamento e segurança alimentar, com participação também de Israel e Emirados Árabes Unidos.

Ao contrário de muitos países, a Índia não condenou abertamente Israel na ONU, manteve a abstenção em resoluções sobre Gaza e o voto favorável à resolução canadense condenando ataques do Hamas em 2023. A Índia foi um dos poucos países não árabes a votar contra a resolução da ONU de 1947 que recomendava o estabelecimento do Estado de Israel e foi o primeiro país não árabe a reconhecer a Organização para a Libertação da Palestina como representante legítima do povo palestino. A mudança em curso desde os anos 1990 reflete a busca por parcerias com indústria tecnológica e israelense e com as posições contundentes de Tel-Aviv contra o terrorismo de grupos islâmicos.

A Indonésia, que realizou eleições em 14/02, busca reafirmar sua influência no mundo muçulmano e mantém o contencioso prolongado com Israel e a solidariedade com o povo palestino. Foi noticiado que Jacarta estaria se movimentando para acionar a Corte Internacional de Justiça (ICJ) contra Israel, sob alegação de genocídio semelhante ao recente movimento da África do Sul, em que apontou a luta palestina como semelhante à resistência ao apartheid. Israel permanece sob a suspeita de ter apoiado o programa nuclear do antigo governo sul-africano na produção de seis bombas nucleares, desmanteladas na democratização – algo criticado não apenas por Pretória, mas pela diplomacia de países muçulmanos. Em 2006 Israel questionou a participação de agentes indonésios nas tropas de capacetes azuis no Líbano e em 2023 a FIFA retirou a sede do Mundial Sub-20 da Indonésia devido a protestos anti-Israel.

A China quer avançar a Iniciativa Belt and Road no Oriente Médio sem causar problemas diplomáticos. Em junho passado Mahmoud Abbas formalizou em Pequim a parceria estratégica China-Palestina e em novembro Pequim oficializou apoio à solução de dois Estados, com as fronteiras de 1967 e Jerusalém Oriental como capital da Palestina. Pequim e Moscou têm vetado propostas dos EUA de apoio a Israel no Conselho de Segurança da ONU, mas os chineses evitam conflitos com a indústria tecnológica israelense – vale lembrar os acordos da Huawei com a israelense Zing Energy.

A rápida acomodação entre Irã e Paquistão e o desgaste dos EUA com a agressividade de Israel em Gaza ilustram as dificuldades de Washington para arbitrar conflitos. Estes processos podem ser vistos como indicadores de declínio da hegemonia norte-americana e de enfraquecimento da ordem internacional. No entanto, atores relevantes, como Pequim, estão empenhados em não romper laços com Washington, enquanto outros, como Nova Délhi e Jacarta, procuram utilizar a situação em seu proveito, e Moscou parece aguardar mudanças na Casa Branca.

Não há sinais de que países do Sul Global possam ou queiram criar uma nova ordem, inclusive diante da magnitude dos conflitos que enfrentam. O que existe é a disposição de avançar pontualmente em momentos críticos e reduzir o papel de Washington. Esse movimento sugere uma reconfiguração das relações de poder, à medida que outras potências assumem papeis mais proeminentes em questões geopolíticas delicadas. A grande incógnita que permanece é a capacidade de reação dos EUA.

* Publicado originalmente no Valor, em 6/2/24

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