As duas guerras em que o Ocidente se perdeu

Quem diria: as potências que até há pouco dominavam o cenário mundial agora estão isoladas, eticamente batidas e inseguras no terreno militar. Como isso se deu, tão rápido? Que brechas se abriram? Por que ainda não há o quê comemorar?

Foto: Rodrigo Abd/AP
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Por Rafael Poch | Tradução: Antonio Martins

Falar separadamente da guerra na Ucrânia, do massacre em Gaza e das tensões em torno de Taiwan, pode levar a ignorar que essas três frentes de batalha ou pré-batalha, abertas na Europa, Oriente Médio e Ásia Oriental, apontam para a mesma crise do declínio ocidental. É a esse ponto de inflexão, na até então indiscutível preponderância mundial do Ocidente, que o presidente chinês, Xi Jinping, se refere quando diz que “O mundo está testemunhando mudanças sem precedentes em um século”.

Vamos ver, em dez pontos, alguns sintomas e tendências dessas mudanças:

1- A distância entre o bloco ocidental (formado pelos EUA, União Europeia, Inglaterra, Japão e Austrália, para conter Rússia e China) e o resto do mundo, que rejeita sanções e chamados à ordem unida, está se ampliando. Do apoio, compreensão ou não alinhamento do Sul Global em relação à guerra na Ucrânia resulta o isolamento do Ocidente.

2- O massacre em Gaza e a cumplicidade ocidental, política e midiática com ele (particularmente clara na França e na Alemanha), consagram um verdadeiro suicídio moral do Ocidente. Sua credibilidade em matéria de direitos humanos, mediação de conflitos e justiça global é igual a zero. Seu duplo padrão ao medir Ucrânia e Gaza é evidente.

As mesmas potências que estão financiando e armando a Ucrânia estão financiando e armando um genocídio pelas forças israelenses supremacistas raciais em Gaza. Isso dá uma nova plausibilidade à narrativa russa de que, sem sua intervenção militar, teria ocorrido na Crimeia e no Donbass uma limpeza étnica, expulsão e massacre de pró-russos por forças parcialmente animadas por uma ideologia de extrema direita com o apoio e a bênção do Ocidente.

Toda morte na prisão de um opositor político é, por definição, suspeita – seja a do russo Aleksei Navalny ou a de Gonzalo Lira, um blogueiro “incorreto” norte-americano de origem chilena estabelecido em Kharkov, morto em janeiro em uma prisão ucraniana sem pena nem glória. Ambos foram acusados por seus carcereiros de trabalhar para serviços secretos (ocidentais ou russos). Não se deve esperar uma investigação crível sobre a causa dessas mortes em países onde a eliminação de opositores tem rastros recentes e conhecidos. Os governos, políticos e meios de comunicação que mais protestam pela morte de Navalny são os mesmos que ignoraram a morte de Lira, ou o destino de Assange, e que apoiaram o massacre em Gaza. Eles não têm credibilidade. Os únicos que podem expressar sua consternação com credibilidade por esses crimes são aqueles que levam os direitos humanos a sério e, portanto, rejeitam o uso hipócrita dos direitos humanos como arma na luta contra o adversário.

3- O esforço para excluir a Rússia da Europa voltou-se contra a União Europeia, reforça a “grande Eurásia” e enfraquece o Ocidente perante o resto do mundo. A exclusão resultou em a Rússia olhar para o Oriente, ao traçar suas parcerias estratégicas, e encerrar 300 anos de esforço por integrar-se à Europa.

A Rússia euroasiática tornou-se muito menos dependente da UE (suas indústrias estratégicas, corredores de transporte e instrumentos financeiros dependem menos do Ocidente) e, ao mesmo tempo, seu foco na Ásia fortalece a cooperação entre Índia e China.

Moscou já não precisa da União Europeia – mas esta ainda não se deu conta. Por isso, as sanções ricocheteiam contra ela, que importa petróleo e derivados russos através da Índia e compra gás natural liquefeito dos EUA, três ou quatro vezes mais caro que o gás russo, o que prejudica sua economia. Resultado: a Rússia tornou-se a maior economia da Europa (previsão de crescimento de 4% em 2024) e a Alemanha está à beira da recessão (previsão de 0,2%).

4- A União Europeia torna-se mais dependente, política e economicamente, dos EUA e com isso se enfraquece. A estratégia russa não é integrar o país à Europa, mas integrar a União Europeia ao grande polo continental euroasiático, cujo motor é a China.

5- A iniciativa chinesa do Novo Cinturão e Rota (ver mapa acima) amplia seu peso na Ásia e na África Oriental, deslocando a influência dos Estados Unidos. A América Latina desenvolve suas relações com China, Índia, Irã, erodindo a hegemonia dos Estados Unidos no hemisfério ocidental.

6- As sanções ocidentais estimulam a reorganização industrial da Rússia e a integração entre Rússia, China e Irã para programas civis e militares comuns.

7- A apreensão pelos EUA das reservas em dólares de países como Irã, Venezuela, Rússia e Afeganistão complica a capacidade de Washington de financiar sua projeção global. O dólar é visto com cautela e as sanções empurram muitos países a negociar em outras moedas e a criar alternativas ao sistema internacional de transferências financeiras (SWIFT). Tudo isso reduz a eficácia das sanções como instrumento de política externa. O senador norte-americano Marco Rubio expressa isso assim: “Em cinco anos, não poderemos mais falar de sanções, porque haverá muitos países que negociarão em outras moedas e perderemos a possibilidade de sancioná-los”. (29 de março de 2023 na Fox News)

8- A superioridade militar dos Estados Unidos está em questão e, em caso de uma grande guerra, poderia perdê-la. Nas palavras do ex-vice-secretário de Estado Aaron Wess Mitchell: “Isso aconteceria porque, ao contrário dos Estados Unidos, que devem ser fortes em três pontos do mapa ao mesmo tempo, cada um de seus adversários – China, Rússia e Irã – só precisa ser forte em sua própria região para alcançar seus objetivos”. (Em Foreign Policy 16/Nov/2023)

9- O risco de uma guerra nuclear é muito maior hoje do que durante a Guerra Fria. As três frentes abertas envolvem pelo menos cinco potências nucleares: Estados Unidos, Israel, Rússia, China e Coreia do Norte (sete, se incluirmos Inglaterra e França).

10- Há um crescente descontentamento com o sistema de dominação norte-americano do final do século XX e um desejo de substituí-lo por uma ordem multipolar. Mas, como diz o ex-embaixador americano Chas Freeman, autor de alguns destes dez pontos, “até agora ninguém considerou aonde levará o novo sistema internacional, que implica uma interação entre Estados mais complexa do que antes. Por isso, é preciso lembrar o velho ditado: “cuidado com o que desejas, porque pode se tornar realidade”. (globalaffairs.ru)

Todas as especulações e previsões sobre a correlação de forças globais seriam triviais se não fosse pela dinâmica de conflito na qual estamos entrando, que é muito contraditória com o momento que a humanidade está enfrentando neste século. Estamos vivendo uma corrida contra o tempo. Uma época de desafios existenciais insolúveis sem uma grande concertação internacional. Desafios como o aquecimento global que crescem e se intensificam conforme não agimos contra eles.

O conflito entre potências é algo que não podemos mais nos permitir, na condição de espécie ameaçada por nossa própria ação. Ou, melhor dizendo, pelo metabolismo do sistema socioeconômico inventado pelo Ocidente há um par de séculos.

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18 comentários para "As duas guerras em que o Ocidente se perdeu"

  1. Sou mineiro e tenho 79 anos , estou saudável fisicamente e no pensar. Lá onde nasci dizem que todo angu’ começa no mingau , veja o cuidado prá que ele não EPELOTE… E a fila anda…

  2. Solimar Furlan disse:

    Eu acho quê a postura dos EUA, e seus aliados acidentais é importante; porquê já salvaram o mundo da escravidão na Segunda Guerra Mundial

  3. Jailto disse:

    Que materia ridícula! Visão míope.

  4. Barbosa disse:

    Aqui é fácil paráfrase sobre os ocorridos. Acontece que tanto a Rússia quanto Israel estão corretos em suas visões, só a desculpa de estar lutando em razão de um nazismo ucraniano foi grande mentira
    São 2 guerras justificáveis.
    Assim como o papel de alguns países da OTAN é também justificável, já que q Rússia irá avançar por todos os países fronteiriços.
    A Rússia também não está fraca e tem apoio da China, do Irã e outros membros.
    A Ucrânia não poderia fazer nada porque a Rússia já havia tomado terras em 2014. E os Russos invadiram pesadamente sobre territórios Ucranianos
    Palestina tem como Governo o Hamas, que cometeu uma barbarie e causou a ira de um povo, no caso Israel.
    Mas seria ruim ser influenciado pelos Árabes
    Rússia e China tem muito mais relações e paridades com a Europa, de milhares de anos, do que nós. Trocam tecnologia constantemente.

    Bom, fechando meu comentário, o Ocidente muito contribuiu, e o que mais, para o desenvolvimento humano.

    As palavras de Xi Jiping não foram empregadas da forma abordada aqui

  5. Manuel Vera Cruz disse:

    O maior erro que a humanidade está cometendo é usar os avançados da ciência para extermina-la ao invés de salva-la.
    Os conhecimentos já adquiridos pela humanidade, acho que aproveitando o melhor de cada uma das partes poderíamos até salvar o planeta.
    Porque é que Os EUA não se unem à Rússia para criar um mundo melhor para todos como já o fizeram para conquistar o espaço?
    Paramos todos um minuto para pensar.!!!

  6. Yuri disse:

    Como se algum país tivesse moral pra falar do ocidente. A “imaculada” china, por exemplo, a décadas maltrata os uigures, tibetanos, e norte-coreanos mandados pelo regime Kim para trabalharem como escravos nas estatais chinesas.

  7. Bepo disse:

    O Sebastião, a Rússia cansou de pedir para os países da OTAN/usa pararem de armar a Ucrânia(armas, dinheiro e ameaças economica) e não adiantou porque por trás disso tudo essas potências Europa sob pressão americana queriam e querem dominar a Ucrânia pelas suas riquezas e fazer com que a Rússia parece de fornecer o gás barato para os europeus, só que agora estão pagando muito mais caro dos americanos e estão em crise total.
    Esse é o preço a ser pago quando um governo vira uma marioneta dos intereces de outro país e foi o que aconteceu com o Ucrânia onde o tal zelenski é uma marioneta desses paises cujo INTERECE único é de explorar e dominar o povo ucraniano.

  8. Antonio disse:

    A hegemonia ocidental está se esfarelando pela postura imperialista americana que equivocadamente vem interferindo no mundo oriental e colonizando política e económicamente os seus aliados submissos do mundo ocidental.
    Após esses dois erros de posicionamento dos Americanos e da UE com relação a Ucrânia e Israel, fica evidente que o Ocidente perde credibilidade perante o mundo e transfe para outros atores a capacidade de conduzir os entendimentos globais.

  9. Dione mariola disse:

    Mais aqui, muita gente duvidou do conflito deliberado na Ucrânia. Quem vai duvidar da grande guerra mundial nuclear ?

  10. Parece que a humanidade segue prá um mar de sangue, seria a sua extinção?.

  11. Ricardo Candido de Araujo disse:

    Recomendo a leitura do livro “Os Sonâmbulos”. Para mim, se repetiu em 2022 o que resolveram aplicar em 1914 ao império Austro-Hungaro. Naquela época, como hoje, resultou em guerra, que torço que não se alastre.

  12. Gladiston Vieira dos Santos disse:

    Excelentes os artigos. Oportunos e bem relevantes os temas. Posicionamento dos autores são de uma sobriedade impecável. É preciso levar essa visão sucinta e clara dos últimos acontecimentos globais para mais pessoas formadoras de opinião.
    Infelizmente os problemas são apocalípticos. Mas precisamos redirecionar nossas expectativas na esperança de um mundo melhor.
    Parabéns aos editores/autores.

  13. Marcos Goulart disse:

    O ocidente é a única civilizacao no mundo que torce contra si mesma. Pura ingenuidade, um tiro no pé. Substituir uma hegemonia global democrática por uma outra autoritária e ditatorial. Que se mancomunam e se apoiam mutuamente para financiar uma guerra contra nós ocidentais. O que tais pessoas querem? Nem elas sabem, mas por certo é serem escravizadas novamente.
    Tarde demais para chorarem mais tarde a perda dos direitos individuais, liberdade de ir e vir e liberdade de expressão. Tem a ver com cegueira espiritual. Somente isto explica um comportamento de estranhamento e rejeição de sua cultura por uma outra cruel e opressiva. Quem pensa que as potências orientais são dóceis meigas, não imperialistas desconhecem história, k amor por si próprio e seus compatriotas. Ainda mais, desprezaram seu próprio Deus.

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  14. Abel disse:

    Gosto da imparcialidade

  15. Carlos Roriz Silva disse:

    Muito bom artigo. Colocou em um só, as posições que lemos e temos de forma esparça.
    Parabéns a Putin, que teve coragem de despir o Rei. Não esperava que aguentasse.
    Parabéns a Lula, mantendo a posição sobre Gaza

  16. Sebastião Dias Filho disse:

    São epocas e decisões diferentes. Não se pode comparar , o mundo hoje vive em ameaça constante pelo comunismo e terrorismos poe eles apoiado, pois só fazem guerra ultilizando forças que ignoram a lei da guerra , são forças financiadas para o terror contra a sociedade. O terrorismo do Hamas contra Israel deve ser revidado sim; o terrorismo da Russia contra a Ucrania não é admíssivel. O comunismo como é não é aceitável.

  17. Valdemar disse:

    Porque.eua.pobeproibir.armasparaarusia.sendoqueeles.mandan.armasparaisrael.enaosaocongeladoseus.ativos

  18. Cuba disse:

    Muito bom esse texto que acabei de ler… Parabéns!!!

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