Nancy Fraser encara o capitalismo canibal

Em seu próximo livro, filósofa feminista sugere: enfrentar sistema, em sua fase mais brutal, exige atualizar o marxismo e rever as concepções de trabalho produtivo. Recriação de sujeitos coletivos, proposta pelo populismo de esquerda, é caminho

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Entrevista a Martin Mosquera, na Jacobin Latinoamericana | Tradução: Vitor Costa

Durante décadas, a teórica norte-americana Nancy Fraser ofereceu ideias poderosas para a esquerda. Em alguns momentos, essas ideias são abertamente políticas, como quando Fraser pede que o feminismo corte seus laços com a elite econômica e adote políticas de classe que possam atacar a opressão em suas raízes. Outras vezes, são conceitos teóricos importantes, como sua discussão sobre a interação entre o capitalismo e as “condições de fundo” das quais o sistema depende. |

Capitalismo Canibal, a ser lançado pela Verso Books (em inglês), em setembro

Em seus últimos trabalhos, Fraser defende uma síntese entre o prático e o teórico, a fim de evitar o desastre iminente que ela chama, em seu próximo livro, de “capitalismo canibal”: a visão de que o capitalismo, ao invadir todas as esferas da vida, pode destruir própris suas condições de sobrevivência – e, mais importante, as nossas.

Martín Mosquera, da Jacobin América Latina, conversou com Fraser sobre os cenários futuros que surgirão no horizonte se não agirmos decisivamente para minar o poder do capital. Também abordou os desafios envolvidos na construção de uma frente comum na luta política.

Seus trabalhos mais recentes desenvolvem um “conceito ampliado de capitalismo”. Trata-se de questionar a definição tradicional que se concentra estritamente no capitalismo como um sistema econômico, certo?

Sim, a concepção ampliada de capitalismo é uma tentativa de abandonar as interpretações inadequadas e grosseiras de um certo marxismo que pensa em termos de infraestrutura e superestrutura, ou seja, que afirma que o verdadeiro fundamento da sociedade é o sistema econômico e que tudo o mais é uma superestrutura. Nesse modelo, a causalidade flui unidirecionalmente da base econômica para a superestrutura jurídico-política. Mas se falarmos da relação entre o subsistema econômico da sociedade capitalista e as condições de possibilidade que constituem seu pano de fundo necessário, a imagem da base e da superestrutura se complica. Afirmar que algo é uma condição necessária da economia implica que as atividades que fazem o funcionamento do sistema econômico capitalista – a produção de mercadorias, a possibilidade de vendê-las com lucro e acumular capital, a compra de força de trabalho e seu uso – não podem se desenvolver a menos que outros elementos, às vezes considerados fora da economia, estejam presentes.

Nesse sentido, por exemplo, são necessárias as relações de parentesco que organizam os nascimentos, os cuidados, a socialização e a educação das novas gerações, que reabastecem as forças dos trabalhadores adultos a quem alimentam, banham, vestem e descansam para voltar ao trabalho no dia seguinte. Acho que esse é um argumento bem conhecido dos leitores da Jacobin e que foi desenvolvido em detalhes por feministas que trabalham dentro dessa variante do feminismo marxista chamada Teoria da Reprodução Social. Se tomarmos o exemplo da reprodução social, percebemos imediatamente que, se essa condição de fundo não for devidamente realizada, a produção desorganiza-se. Isso implica que as possibilidades de acumulação de capital por meio do sistema econômico são limitadas por algumas características das relações de parentesco, como as taxas de natalidade ou mortalidade. Portanto, as condições de fundo têm consequências importantes em todo o processo. Desta forma, podemos construir um quadro de causalidade mais complexo.

Poderíamos dizer algo semelhante sobre as chamadas condições estruturais “naturais” ou “ecológicas”. A produção capitalista e a acumulação de capital pressupõem que todas as coisas materiais de que o sistema precisa estão disponíveis sem limites na natureza, o que basta para envolvê-las no processo produtivo. Mas as matérias-primas, as fontes de energia e a possibilidade de descarte de resíduos – todas condições estruturais indispensáveis – não são ilimitadas. Ao mesmo tempo, é claro que falhas em ecossistemas essenciais (por exemplo, esgotamento de fontes de energia ou poluição excessiva) também podem paralisar as indústrias. O covid-19, que é, pelo menos em um nível, o resultado da disfunção ecológica, nos fornece um exemplo particularmente interessante de tudo isso agora. Trata-se de um vazamento zoonótico, ou seja, a transmissão de um vírus que, por meio de algumas espécies intermediárias – provavelmente pangolins – passa de morcegos para humanos e faz com que todo o sistema econômico encolha e se desligue. Nesse sentido, podemos dizer que o covid-19 é um excelente exemplo de causalidade que corre na direção oposta ao esquema de infraestrutura e superestrutura.

(…)

Gostaria de me concentrar no seu conceito de “lutas de fronteira”. São as lutas para definir as fronteiras entre economia e sociedade, produção e reprodução etc., ou seja, entre o “primeiro plano” e suas “condições de fundo”. Em algum momento, parece que essas lutas de fronteira são sinônimos de luta de classes.

(…)

Para explicar as lutas de fronteira, costumo me referir à perspectiva de Karl Polanyi. Sem usar o termo, Polanyi estava muito interessado nas lutas fronteiriças entre o que ele chamou de mercado autorregulado – poderíamos dizer simplesmente a economia – e a sociedade. Essa abordagem também enfrenta múltiplos problemas sobre os quais não vou me deter neste caso, mas o que é interessante e frutífero é a ideia de que a luta não se desenvolve simplesmente em torno da distribuição da mais-valia. Em vez disso, desenvolve-se em torno daqueles elementos que definirão a gramática da vida. Em uma determinada comunidade, o capital terá carta branca ou não? Isso levanta questões muito profundas sobre o poder e quem tem o poder de moldar a gramática da vida em uma sociedade. Todas essas são questões que, nas sociedades capitalistas, são sub-repticiamente retiradas da agenda política e delegadas sem nosso consentimento ao capital e aos responsáveis ​​pela acumulação de capital.

Falar de lutas fronteiriças nesse sentido nos aproxima da questão que você coloca. Não se trata apenas de distribuição, mas da gramática da vida social. O conceito de classe tende a nos fazer pensar que se trata de “quem ganha quanto” e isso não é totalmente apropriado. O que eu digo também soa um pouco populista. A noção de lutas de fronteira nos diz que há um problema fundamental em traçar a linha entre sociedade e natureza, e isso nos traz de volta ao coronavírus e ao vazamento zoonótico. Essas perguntas se tornaram inevitáveis ​​hoje e acho que a situação atual deve ser suficiente para deixar para trás qualquer tipo de ingenuidade sobre isso.

Problemas muito sérios surgem quando se pensa na relação entre o trabalho remunerado – que presumo que existirá, de alguma forma, em uma sociedade socialista – e as demais atividades que fazemos em nossas comunidades, relações familiares, criação dos filhos, etc. Esses problemas não vão desaparecer e são precisamente a eles que me refiro quando falo de lutas de fronteira. É provável que, no momento em que nos envolvemos nessas lutas, os interesses não sejam totalmente claros. Como socialista democrática, suponho que em uma sociedade socialista deve haver algum tipo de mercado. Acho que não podemos continuar falando sobre economias burocraticamente planificadas. Mas os problemas surgem quando perguntamos quais são as fronteiras legítimas dentro das quais os mercados devem funcionar ou quais coisas são legítimas para comprar e vender. Acho que falar de lutas de fronteira implica assumir que devemos disputar tudo isso nas sociedades capitalistas. Não é apenas que as lutas de fronteira sejam uma alternativa às lutas de classes. É que as lutas de classes às vezes assumem a forma de lutas de fronteira, e as lutas de fronteira – quando bem conduzidas – às vezes assumem a forma de lutas de classes.

Em sua conversa com Rahel Jaeggi você rejeitou a ideia de um capitalismo “pós-racista” ou “pós-sexista”, mas em “O capitalismo é necessariamente racista?”, sua conclusão é que talvez estejamos caminhando para uma forma de acumulação capitalista que diluirá “a base estrutural do racismo”, porque a expropriação (que era a base da opressão racista) não estará mais nitidamente separada da exploração. Poderíamos dizer o mesmo da reprodução social e do patriarcado?

Pessoalmente, evito usar o termo patriarcado porque tem um significado técnico que se refere ao domínio de homens mais velhos e uma ideia de dependência que inclui tanto homens quanto mulheres. Prefiro falar das formas especificamente capitalistas de dominação masculina. E acho que essas formas de dominação referem-se a algo que – até onde posso entender – é específico das sociedades capitalistas na medida em que se opõem às sociedades pré-capitalistas. O que é específico das sociedades capitalistas é a nítida diferenciação entre a produção de mercadorias, que depende do trabalho assalariado e da acumulação de capital, e a reprodução social, que depende fortemente do trabalho não assalariado, da família e de certos membros das comunidades, especialmente as mulheres. Acredito que a separação dessas duas funções essenciais da sociedade baseada no gênero é específica do capitalismo, e se existe um eixo estrutural das formas de dominação masculina, é esse.

Agora, eu diria que não é possível superar completamente a dominação masculina sem mudar essa separação. Devemos imaginar a relação entre produção e reprodução de uma maneira completamente nova, uma maneira que as torne muito mais porosas uma à outra. A verdade é que essas esferas não podem ser categoricamente diferenciadas, tanto em sua relação com a acumulação de capital quanto nas formas como se relacionam com o gênero. É como a mudança climática e a ideia de que a descarbonização é realmente impossível. Uma sociedade sustentável não pode ser construída sem descarbonização. Você não pode ter uma sociedade verdadeiramente justa no campo do gênero sem mexer com essa divisão. Em certo sentido, esses são argumentos paralelos. E eu acrescentaria que onde a raça está em jogo, é impossível alcançar a justiça racial sem mexer na distinção entre exploração e expropriação, trabalho livre e trabalho injusto ou forçado, que acredito ser o fundamento da questão racial.

Mas eu também acrescentaria o que Hester Eisenstein chama de “relações perigosas” entre feminismo – ou formas liberais burguesas de feminismo – e capitalismo. Tem a ver com o fato de que muitas forças que promovem o capitalismo também querem desmantelar essas relações tradicionais de gênero, essas tradicionais hierarquias que podem representar obstáculos à mercantilização, capitalização e financeirização das coisas em grande escala. Se não percebermos isso, continuaremos imaginando o capitalismo como um sistema conservador, aristocrático e paternalista. É também por isso que há uma estranha hostilidade entre as elites liberais (que inclui feministas liberais, Wall Street, Hollywood, Vale do Silício e em todos os lugares onde o capitalismo neoliberal progressista existe) e as comunidades evangélicas e aqueles setores do que poderíamos chamar de “mundo de Donald Trump” que são a favor da família tradicional.

Como você mencionou, a crise do covid-19 é um exemplo impressionante de como as externalidades interagem com o capitalismo de maneiras complexas e podem levar ao tipo de crise capitalista que você define como “multidimensional”. Em outro lugar você também afirmou que, pelo menos desde 2008, o atual estágio do capitalismo financeirizado e neoliberal está passando por uma crise – talvez terminal – que poderia eventualmente implicar uma mudança para uma forma diferente de acumulação capitalista. O que pode ser dito sobre a crise atual?

Eu gostaria de apontar alguns elementos na maneira como você coloca a questão. Uma é que devemos distinguir entre crises setoriais e crises gerais. Uma crise setorial implica que, em um regime capitalista de acumulação ou em uma fase de desenvolvimento capitalista, uma área importante começa a ser disfuncional, enfrenta algum obstáculo intransponível, desestabiliza o sistema etc. Tendemos a pensar nas crises econômicas dessa maneira. Os historiadores podem dar exemplos dessas crises em uma esfera ou setor da sociedade, neste caso, a economia.

Não é o mesmo que uma crise geral de toda a ordem social. Os historiadores também usam esse conceito de crise geral: uma espécie de sobredeterminação de obstáculos e disfunções. Na verdade, acho que é isso que estamos vivendo agora. É verdade que vivemos formas periódicas de crise econômica, como a de 2007-2008, que estava prestes a se tornar um colapso financeiro, embora aparentemente nossos governantes tenham encontrado uma maneira de resolver o problema. Mas acho que agora podemos entender que esse impulso para a financeirização é uma bomba-relógio que está sempre prestes a explodir e que, nesse sentido, a crise não foi resolvida.

Ao mesmo tempo, temos o problema do aquecimento global e uma crise ecológica muito séria, talvez catastrófica, que vem se formando há muito tempo e agora se tornou aparente. Cada vez mais setores da população mundial, mesmo aqueles que conseguiram permanecer relativamente isolados dos efeitos mais danosos, estão começando a entender a magnitude da crise. Temos também uma crise de reprodução social, ou seja, de todas aquelas atividades essenciais ligadas ao nascimento e ao cuidado do ser humano, que nem sempre são comercializadas diretamente: educação, saúde, trabalho doméstico, trabalho de cuidado, etc. Este setor também está em crise. É muito interessante ver o ativismo gerado em torno desses setores, que em alguns casos abrigam mais atividade sindical do que certas áreas da indústria.

Até agora temos uma crise de reprodução social e uma crise ecológica. Mas acho que também estamos passando por uma grave crise política. E a eleição de Joe Biden nos Estados Unidos está longe de ser uma solução. Isso é em parte uma crise de governo, com isso quero dizer que mesmo os países mais poderosos, como os Estados Unidos, atualmente carecem de capacidade de gestão para resolver os problemas que enfrentam. O poder corporativo os domina. Eles são incapazes de lidar com uma questão como as mudanças climáticas, que não podem ser contidas dentro dos limites de uma fronteira jurisdicional.

No entanto, há também uma crise de hegemonia no sentido gramsciano, um abandono geral da “normalidade” política. As pessoas estão se afastando dos partidos políticos tradicionais e das elites associadas (e deve-se acrescentar: deslegitimadas ou manchadas por) políticas neoliberais. Todos esses elementos se somam e resultam em uma crise geral. Uma boa metáfora para pensar a crise é a metástase: é possível forçar um câncer que surge em determinado lugar a regredir, mas depois pode irromper em outro. No nosso caso, pode ser tanto uma localização geográfica quanto setorial. Acho que essa crise está se tornando palpável e óbvia para muitas pessoas. No entanto, isso não significa que estamos nos aproximando de algum ponto de colapso total ou resolução revolucionária que nos levará a assumir o Palácio de Inverno ou qualquer coisa do tipo. Infelizmente, as crises podem se desenvolver por muito tempo.

O fato de esta crise ser particularmente aguda, multidimensional, sobredeterminada ou metastática não significa que possamos saber qual será o resultado do jogo ou quando ele terminará. Na história do capitalismo houve crises gerais que se desenvolveram ao longo de décadas. Poderíamos dizer que todo o século XX, até a derrota do fascismo e o fim da Segunda Guerra Mundial, foi apenas o desdobramento da crise geral do capitalismo colonial liberal ou laissez faire. Talvez haja um longo caminho a percorrer.

As previsões são sempre difíceis, principalmente diante de grandes eventos que ainda estão em andamento. No entanto, gostaria de insistir: há tendências para um novo modo de acumulação ou, em seus termos, para uma redefinição das “fronteiras” que moldaram a atual fase do capitalismo?

Eu direi algo sobre os cenários possíveis, mas quero enfatizar que eles não são previsões. Em primeiro lugar, podemos imaginar que a crise atual é o que a Escola de Binghamton chama de “crise do desenvolvimento”, ou seja, que não é uma crise dos tempos. Uma crise de desenvolvimento implica que o que está em crise é um regime específico de acumulação, uma forma específica de organizar a natureza, a economia, a produção, a reprodução, a relação entre o Estado e o mercado, etc. Há momentos na história do capitalismo em que um regime profundamente enraizado e estabelecido está em crise. E a crise acaba sendo resolvida reestruturando o sistema: uma nova forma – dentro do capitalismo – de organizar a produção e a reprodução.

Poderíamos pensar na social-democracia ou no New Deal, no caso dos Estados Unidos, como formas de reorganizar a relação entre produção e reprodução. Os Estados assumiram uma responsabilidade muito mais explícita na hora de garantir certo equilíbrio social e comprometeram-se a financiar ou organizar algum trabalho de assistência social e reprodutiva. Em teoria, podemos imaginar hoje uma analogia ecológica: as organizações intergovernamentais provavelmente poderiam assumir a responsabilidade de internalizar essas externalidades, no sentido de submetê-las à gestão e à regulação para evitar que saiam do controle, por assim dizer, ou que se tornem contra nós. Uma crise que termina assim não é uma crise do capitalismo em si, ou seja, uma crise ética em que o próprio capitalismo dá lugar a uma forma de organização social não capitalista ou pós-capitalista. Terá sido, pelo contrário, uma crise de desenvolvimento intrínseca ao capitalismo, fazendo com que o capitalismo entre numa nova fase de desenvolvimento.

Foi assim ao longo da história do capitalismo. Poderíamos dizer que ficamos surpresos com sua criatividade e engenhosidade, sua capacidade de encontrar novas maneiras de se reformar. Estou fazendo um julgamento antropomórfico que realmente devo evitar, porque são sempre os atores sociais que promovem esses projetos de reforma e reestruturação. Mas a ideia da crise do desenvolvimento é esta: depois de uma longa caminhada na crise —durante a qual muitas lutas hegemônicas se desenrolam para formar novos blocos históricos— uma alternativa se apresenta e ganha bastante apoio. O resultado é uma nova forma de capitalismo. Foi isso que a social-democracia tentou fazer ao nível do Estado-nação: garantir algumas das condições de fundo para que o capital se mantivesse em funcionamento e salvaguardar a dinâmica de acumulação como força motriz ao gerir algumas coisas nas margens. É como Ulisses que se amarra ao mastro para evitar destruir suas próprias condições de funcionamento.

Digo isso porque há outra alternativa, que implicaria em uma virada de tal magnitude que não conseguiríamos resolver a crise por meio de uma nova forma de capitalismo. Por exemplo, é provável que o aquecimento global represente mais do que apenas os limites de um regime específico. Talvez o aquecimento global represente um limite para o próprio capitalismo. Claro, não sabemos, ou pelo menos não acho que posso decidir se é assim ou não, porque a história da criatividade do capitalismo sempre me dá o que pensar. Se se verificar que esta é uma crise ética do capitalismo como tal, então existem diferentes possibilidades. Alguns desejáveis, como alguma forma de socialismo democrático mundial. Novamente, é muito difícil descrever exatamente como seria, mas de alguma forma desmantelaria a dinâmica da acumulação, a lei do valor etc. E então, no outro extremo do espectro, temos toda uma série de resultados não capitalistas realmente terríveis: cenários dominados por senhores da guerra autárquicos, guerras permanentes, regressão social ou algum tipo de regime mundial autoritário. Há também, suponho, outra possibilidade, que é que a crise não será resolvida, que haverá simplesmente uma lenta canibalização da sociedade humana, uma espécie de lenta regressão que nos leva de volta à mera luta pela sobrevivência.

Acho que seria mais justo dizer, nos horizontes do presente, que os dois cenários mais encorajadores giram em torno de um Green New Deal global sob o capitalismo ou alguma forma de socialismo democrático que vá além do capitalismo. Também não tenho certeza se pode haver um Green New Deal global sob o capitalismo. É provável que não seja possível alcançar a necessária redução de carbono nos limites do capitalismo. Nesse caso, essa alternativa não existiria. Depois vem a solução do socialismo democrático a nível mundial, que é aquela a favor da qual me posiciono, pelo menos em teoria. Esses são os dois cenários pelos quais acho que vale a pena lutar e que devemos tentar gerar. E é possível que um Green New Deal mundial, mesmo que não seja sustentável a longo prazo, sirva como uma espécie de programa de transição (como diziam os trotskistas) que nos guie para o socialismo democrático.

Claro, ninguém pode saber o que vai acontecer, porque realmente depende das ações das pessoas. Nesse sentido, o que procuro fazer com meu trabalho é esclarecer a magnitude, a dinâmica e a natureza da crise em suas múltiplas dimensões. Meu objetivo final é fornecer uma espécie de roteiro para as pessoas que estão engajadas ou pensando em se engajar em alguma forma de ativismo político. Essas pessoas têm toda uma série de preocupações e interesses urgentes. Mas esses interesses são tendenciosos por definição, e o que eu quero fazer é ajudar as pessoas a verem onde elas se encaixam no mapa geral desta crise e fornecer uma imagem da situação das forças sociais, de tal forma que todas essas preocupações e interesses particulares podem ser mobilizados para produzir uma melhor solução para a crise.

Sua descrição se assemelha a uma estratégia populista: a ideia de que a sociedade é feita de interesses ou demandas parciais e que o desafio é fazer com que esses diversos interesses se consolidem em um agente político coerente. Em ocasiões anteriores você também falou favoravelmente do populismo de esquerda. No entanto, eventos recentes parecem apontar para experiências fracassadas para o populismo de esquerda, enquanto sua variante de direita parece exibir um histórico mais bem-sucedido. Que equilíbrio pode ser tirado disso?

Comecei a pensar seriamente no populismo depois do Occupy Wall Street. Fiquei muito surpresa com essa linguagem do 99% e do 1%. Do meu ponto de vista, esta é a linguagem do populismo por excelência. Pode não ter a precisão e o rigor da análise de classe, mas é imediatamente compreensível e poderosa. Evoca uma resposta afetiva. Fiquei muito surpresa com a rapidez com que esse discurso foi entendido, foi um momento de genialidade retórica de quem o inventou. Pelo menos no contexto dos Estados Unidos, essa linguagem se popularizou com Bernie Sanders, que começou a usar uma palavra muito poderosa: “rigged” [combinado, fraudado, manipulado], como quando se diz que os índices econômicos “estão manipulados”, que as eleições são “manipuladas”, etc. Trump pegou essa linguagem de Bernie Sanders e deu uma reviravolta por conta própria.

Mais uma vez, estou pensando nos Estados Unidos, embora ache que o que digo seja relevante também em outros países. Na época do Occupy Wall Street, comecei a pensar sobre a cultura política americana e o período anterior de ativismo, que estava fortemente focado no que é chamado de “política de identidade”. O fato de que de repente as pessoas estavam falando sobre os 99% versus o 1% me fez pensar que havia, pelo menos potencialmente, uma enorme força de esquerda nos Estados Unidos. Pareceu-me que esse discurso conseguiu chegar a muitas pessoas que sentiam, talvez sem perceber, que precisavam de uma análise capaz de explicar as conexões e de construir uma grande força capaz de superar a fragmentação que tanto fragilizou a esquerda. Também percebi que podia distinguir o populismo de esquerda do populismo de direita.

Basicamente, minha ideia é que ambos fornecem uma espécie de mapa que define quem está acima e quem está abaixo, quem pisa na cabeça de quem. No caso do populismo de esquerda, como mostra o “99% contra o 1%”, alega-se que há uma oligarquia elitista ou um pequeno grupo de pessoas que parasitam todo o resto. Então a ideia é tentar mobilizar todo mundo contra aquele pequeno grupo. O populismo de direita não tem essa estrutura dual. Tem uma estrutura tripartida. Há uma elite parasita e depois uma subclasse parasita que “nos rouba o que é nosso”. No populismo de direita, o “povo” é formado pelos que estão no meio. Portanto, o populismo de direita se levanta contra o 1%, mas também contra os imigrantes, contra as pessoas de cor, contra as minorias sexuais, etc. É uma imagem muito diferente, um mapa muito diferente. Acho importante ressaltar que o populismo de esquerda tem uma estrutura diferente.

Uma segunda diferença é que o populismo de direita define o inimigo em termos concretos, identitários ou substantivos. Quando eles definem quem está no topo, é sempre uma conspiração judaica internacional ou, se estão embaixo, são imigrantes sujos ou negros vagabundos, etc. São distinções identitárias concretas que definem uma categoria de pessoa – o inimigo – em termos de suas características culturais ou substantivas. Em contraste, o populismo de esquerda define, na melhor das hipóteses, as características do inimigo, ou seja, não define ninguém em termos de sua cultura, sua identidade ou qualquer coisa concreta, mas sim em termos de seu papel no sistema. Quando você diz “Wall Street“, por exemplo, eu entendo que historicamente a frase pode mudar para banqueiros judeus. É verdade que não há barreira absoluta entre os dois populismos. Mas do meu ponto de vista, a identificação do mundo das finanças com “o sistema” está correta. Hoje existe uma forma de capitalismo em que as finanças desempenham um papel muito importante, muito diferente do que desempenhava nas formas anteriores de capitalismo.

Então temos que pensar se o populismo de esquerda assim definido funciona como uma espécie de formação transitória capaz de conquistar vitórias. E não apenas vitórias. A questão também é se, no curso da luta, esse mesmo populismo de esquerda pode ensinar coisas novas às pessoas, ajudá-las a entender o sistema e explicar o que significa dizer que o sistema é manipulado. Manipulado, no sentido de populismo de esquerda, não significa, como Trump diz, que algumas pessoas estão hackeando as urnas e movendo dados de uma coluna para outra. Como marxistas, não importa a que tendência pertençamos, devemos ser capazes de concretizar a reivindicação e explicar o que significa para o sistema ser manipulado para agir contra os trabalhadores. Talvez as formações populistas de esquerda sejam capazes de fornecer uma porta de entrada para a luta política que, à medida que se desenrola, refinará o discurso e esclarecerá o que é o sistema e o que é necessário para mudá-lo.

Agora, dito isso, concordo plenamente com você que o histórico do populismo de esquerda até agora, quando comparado ao de direita, não é tão impressionante, no sentido de que o populismo de direita teve muito mais sucesso em vencer e sustentar-se com o apoio de um grande número de pessoas. Mas eu acrescentaria que, neste caso, parte do problema é o descrédito que afeta a social-democracia em todo o mundo, ou seja, o descrédito dos partidos social-democratas, muitos dos quais se autodenominam socialistas. Havia pessoas, que não vinham da extrema direita, que tinham uma enorme responsabilidade na instituição do neoliberalismo: os Clintons nos Estados Unidos, Blair na Grã-Bretanha e Schröder na Alemanha. O que essas formas de populismo de esquerda tentaram fazer foi ocupar uma parte do espaço que pertencia aos partidos social-democratas, e eles fizeram isso usando uma linguagem diferente. Obviamente, há pontos em que a política social-democrata e o populismo de esquerda se sobrepõem: se olharmos de perto para Bernie Sanders, por exemplo, seria difícil negar que ele é um social-democrata. Se trata de uma ética diferente, uma retórica diferente.

De qualquer forma, não vejo outra estratégia viável. Devemos disputar os setores que atualmente apoiam o populismo de direita. Claro, estou me referindo àqueles que não cruzaram a linha, porque certamente há alguns que são irrecuperáveis. Seja como for, não podemos partir do fato de que perdemos as “grandes maiorias” para a política de direita. Se for assim, então o jogo acabou. Devemos começar assumindo que é possível reconquistar uma parcela significativa dos eleitores de Trump nos Estados Unidos, ou de Bolsonaro no Brasil. Porque sabemos que nem sempre foi assim: muita gente votou em Lula ou em Dilma. Acho que o que o populismo de esquerda faz é reconhecer, validar e defender as reivindicações legítimas das pessoas e, ao mesmo tempo, dar-lhes uma interpretação diferente do que é o problema: quem exatamente está manipulando o quê, por que o eixo posto em desprezo pelas classes mais baixas leva a um beco sem saída, por que nunca será possível criar uma coalizão grande o suficiente para derrotar as forças reais do capital e das finanças globais enquanto a classe trabalhadora estiver dividida etc. Em outras palavras, acho que neste momento nossa única esperança é um populismo de esquerda capaz de evoluir para algum tipo de movimento socialista.

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6 comentários para "Nancy Fraser encara o capitalismo canibal"

  1. renato machado disse:

    Curioso que as formas anarquistas de luta social, não fazem parte do corpo da entrevista. Talvez estejam embutidas no que ela chama de populismo de esquerda.

  2. José Mario Ferraz disse:

    A questão não é saber haver necessidade de mudar. A questão é quem é que vai fazer a mudança se parte da turba tá nas igrejas, parte no futebola e parte no axé.

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