Por que não uma vice?

Na disputa contra o bolsonarismo, é preciso abrir diálogo com as angústias e desejos das mulheres. Elas são as grandes vítimas do conservadorismo moral e do neoliberalismo. Elas jamais endossaram a candidatura fascista. Uma delas deveria ser companheira de chapa de Lula

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Por Tainã Góis

Muita água rolada debaixo dessa ponte, parece que se concretiza a possibilidade de Alckmin ser o vice de Lula nas eleições de 2022. Se a candidatura petista encontra amplo apoio da esquerda, a aliança com o ex-governador está longe de ser consenso. Enquanto o pragmatismo argumenta que a escolha representa um aceno importante ao centro em uma disputa eleitoral perigosa, muita gente ainda reluta em colocar de lado a vida pregressa de Alckmin, que carrega em sua biografia tudo o que combatemos nos últimos anos, desde a defesa da privatização de serviços essenciais do Estado, a agressão contra professores e o massacre de Pinheirinho.

Somadas a coerente rejeição ao Alckmin e a responsabilidade com a construção de uma frente ampla contra o bolsonarismo, a saída pela tangente tem proposto um consenso na discórdia: que a escolha do vice é um debate secundário frente à necessidade de se pensar na construção e implementação de um programa de profunda reconstrução do Brasil. A pergunta que fica, contudo, é se é de fato possível separar tanto assim o programa que desejamos e as figuras que vão representa-lo nas urnas.

Olhando o problema no Dia Internacional de Luta das Mulheres, dentre as muitas contradições dessa conversa, são os não ditos que geram o verdadeiro incomodo. A facilidade com que se esquece o golpe de 2016, que derrubou, com participação ativa de Temer, a primeira e única mulher presidenta do Brasil, reveste qualquer argumento de desimportância da escolha do vice de uma inegável cegueira de gênero.

É de saltar aos olhos o pacto da masculinidade que informa toda essa conversa. Em nenhum momento foi levada a sério a possibilidade de se escolher uma vice mulher, quer uma candidata do campo da esquerda, para responder às demandas de renovação colocadas pelos movimentos sociais e pela juventude, quer mesmo uma mulher mais palatável à centro-direita, para aproveitar a onda da luta por representatividade que hoje pressiona os diversos espectros políticos.

Até agora, a proposta de construção de uma candidatura que faça frente ao bolsonarismo avança muito pouco discussão sobre desigualdades de participação política em um país já vergonhosamente atrasado. No que toca à inserção de mulheres na política, o Brasil hoje está atrás de países como Arábia Saudita, Afeganistão, Iraque e Coréia do Norte. O tímido cumprimento das cotas de 30% para candidatas tem funcionado não como um mínimo, mas como um teto para a participação feminina nas eleições. Não bastasse, o fenômeno das candidaturas laranja esvazia as campanhas de mulheres de financiamento, drenado para candidaturas de figuras masculinas.

Sob o puído argumento de colocar no jogo candidatos “mais viáveis”, a postura da esquerda se coloca de forma retraída em uma perversa dialética na qual, ainda que viva sob a pressão de uma agenda conservadora que ameaça retroceder 30 anos em direitos de gênero, deixa a situação da trágica representação política das pautas de opressão para mais tarde.

A essa altura, é urgente que fique óbvio que não se trata de um simples debate de representatividade, mas sim na necessidade de renovação de quadros políticos capazes de fazer frente às novas demandas da conjuntura. O projeto da esquerda institucional que vigorou até 2016 não responde mais às necessidades do presente e, nessa encruzilhada, temos uma decisão importante a tomar: insistir na velha política que culminou no golpe, abrindo mão de um avanço em prol de alianças com a direita de garfo e faca1, na aposta de afastar a barbárie a curto prazo, ou avançar em um projeto de democracia real que leve a sério as sínteses produzidas pelos movimentos sociais, feminista, LGBTQIA+ e negro.

Não é mero discurso. Os exemplos de nossos vizinhos apontam que a diversidade dos sujeitos políticos é condição fundamental para a criação e manutenção de uma verdadeira democracia. Para citar apenas acontecimentos recentes, a participação das mulheres na eleição de 2019 na Argentina, que retomou ao poder um projeto progressista, e a vitória que obtiveram no legislativo pela legalização do aborto, são reflexo da adoção de cotas de 30% para mulheres nas candidaturas desde 1991 no país, e de 50% a partir de 2019.

Na Bolívia, a adoção do modelo de Estado Plurinacional que reconhece a diversidade da cidadania, e a adoção de cotas de 50% para mulheres nas eleições, aumentou vertiginosamente a participação feminina nos espaços da política institucional, colocando a Bolívia entre os 5 primeiros países do mundo com maior representatividade feminina no parlamento. A atuação desses “novos sujeitos” políticos foi essencial não apenas para pressionar o governo Morales por reformas estruturais, como também para garantir a resistência ao golpe de 2019 tentando pela elite conservadora contra o MAS.

Na Colômbia, a essencial participação de mulheres na construção do acordo com as FARC criou o primeiro Acordo de Paz do mundo que abarca as questões de gênero. A atuação das mulheres fortaleceu o movimento pela paz como um todo, e culminou em um saldo organizativo importante para o movimento feminista, que vem alcançando direitos e liberdades há muito esperados pelas colombianas, como a recente descriminalização do aborto.

Voltemos ao nosso próprio terreno, onde as contradições, ainda que distintas, são semelhantes. Aqui, a política bolsonarista se ergue sobre dois pilares complementares: a implementação de um projeto neoliberal que faz terra arrasada das políticas públicas e a disputa de uma agenda de valores conservadores – misóginos, racistas, LGBTQIA+fóbicos e antipovo. Nessa composição, não podemos nos deixar enganar: as pautas morais do bolsonarismo são profundamente ideológicas e, portanto, influenciam diretamente na realidade concreta.

O neoliberalismo conservador acirra uma contradição antiga do capitalismo: a necessidade de garantia de condições de vida que permitam a existência da classe trabalhadora versus o interesse do capital em remunerar cada vez menos aqueles que vivem do trabalho. Quando são cortadas verbas para construção de creches, para politicas públicas de saúde e educação, para atendimento de vítimas de violência de gênero, o recado é claro: essas questões devem ser resolvidas no âmbito privado, individual. Como consequência, são as mulheres que acabam sobrecarregadas de trabalho, tendo que se desdobrar para solucionar, dentro da unidade familiar, questões sobre as quais o Estado deixa de se responsabilizar.

Trocando em miúdos, a economia com a redução de políticas públicas se dá pela transferência da responsabilidade de gerir atividades de reprodução social do Estado para mulheres, negros e negras das classes mais vulneráveis. Ainda que no discurso fique às margens dos debates da grande política, esse é o ponto central do projeto neoliberal, e é isso que precisa ser enfrentado.

Não é à toa que a maior parte dos eleitores de Bolsonaro são encontrados entre homens, brancos, mais velhos e de classe média e alta. Enquanto o bolsonarismo mobiliza as velhas contradições de gênero e raça para acomodar seu projeto neoliberal e opressão de classe, dá voz à uma demanda reprimida daquele velho “sujeito social neutro” que vê sua subjetividade deslocada do centro de poder com as demandas dos movimentos antiopressão. Contudo, ainda que sejam hegemônicos no discurso, são minoria em números.

Deixar de disputar essa agenda é deixar de disputar o cerne de uma transformação social que já está radicalmente em curso e envolvendo a maior parte do povo. Os modelos de família, os papéis de gênero e raça, e a organização social estão sendo questionados, regressivamente, pelo bolsonarismo. Se é a voz do recalque contra a democratização via diversidade que o bolsonarismo mobiliza, é fundamental que consigamos colocar para frente um projeto que estampe, nos rostos e nas pautas, o sujeito social que está sendo pressionando e que está se mobilizando pelo futuro: mulheres, negros e negras, jovens, periferias.

Até é possível, pela habilidade dos atores experimentados, que acordos superficiais solucionem a questão a curto prazo. Contudo, a ausência de transformações estruturais já se mostrou uma via fadada ao fracasso na próxima esquina. A tarefa histórica colocada hoje nas mãos da esquerda é mais profunda: encontrar uma forma de expressar as necessidades e de representar da vasta maioria que em nada se beneficiam do grande jogo do conservadorismo, e que serão o pilar de sustentação de uma transformação real, longa, democrática e verdadeiramente inclusiva. É mais sólido vencer com a mobilização que vem de baixo do que eleitoralmente por cima.

Frente a tudo isso, fica a pergunta: na composição de alianças, porque não alçar mulheres e negras para disputar o imaginário da sociedade nos principais palanques de 2022? Porque não umA vice, Lula?

1 Referencia emprestada de Isabela del Monde, que conceitua de forma clara a diferença entre a direita bolsonarista e a direita clássica.

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