O mito do “amor materno”: como surgiu e como superá-lo

Vista como “natural”, ideia de maternidade como sacerdócio nasceu com o liberalismo. Tem fins produtivistas, mas contou com ajuda da medicina e psicologia. Oprime as mulheres até hoje — por impor um ser mãe único e submisso

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Título original: Deitadas no divã: a mãe e a mulher
O texto abaixo faz parte do livro Maternidade e Direito, organizado por Ezilda Melo
Leia a apresentação e obtenha o livro aqui

Por Emily Garcia | Imagem: Pablo Picasso, “Mãe e filho à beira-mar, Primavera”, 1921

Ser mãe talvez seja a arte de dar o que a gente não tem. […]. Não me ocorreu dizer isso a você e eu percebo que, entre nós, havia um problema de comunicação, como você me disse mais de uma vez. Ouvi sem escutar. Por quê? Por ser filha de uma mãe que não me escutava ou por considerar que, sendo psicanalista, o problema não podia ser comigo? O fato é que, sem adotar os valores da moral contestada por seu pai e eu, você não concebe a traição. Quer o amor absoluto.

(Betty Milan, in Carta ao Filho).

Busca-se no presente artigo responder à questão sobre o que é a maternidade; instinto ou construção? Realiza-se, com essa finalidade, uma análise histórica e filosófica do papel da maternidade. Sobre tal questão Elisabeth Badinter (1985), ao publicar seu livro “Um amor conquistado: o mito do amor materno”, recebeu, juntamente com inúmeros elogios, inúmeras críticas, as quais poderão aqui ser também, de início, levantadas, tais como: tem o filósofo o direito de estabelecer a existência ou a inexistência de um instinto, seja ele qual for? Não se deve deixar ao biólogo a tarefa de responder a essa pergunta? Alguns dos leitores de Badinter inclusive apontaram ser impossível tratar dessa temática sem considerar os dois hormônios da maternidade: a prolactina e a ocitocina. Outros ainda consideraram inadmissível o uso da história para explicar uma tese que não é propriamente da competência nem do filósofo, nem do historiador.

Todavia, apesar de todos esses apontamentos, Badinter levantou uma questão que muito nos interessa aqui, que é a seguinte: quais são os limites da filosofia? A filosofia, aliás, possui um limite? De que serve o discurso filosófico senão para questionar novamente as verdades aceitas e analisar todos os sistemas de pensamento? Pode-se proibir ao filósofo a reflexão sobre os pressupostos da biologia ou da história? Por que poderiam considerar o filósofo inapto para ler a história, ou para interpretar comportamentos, se dispõe dos mesmos materiais que o historiador? São questões levantadas por Badinter que, acima de tudo, nos passam a seguinte mensagem: a filosofia tudo indaga, isto é, para filosofia não existem postulados inquestionáveis. Ou ainda, segundo Badinter, o filósofo busca desfazer os preconceitos. Esse artigo objetiva, acima de tudo, apresentar reflexões sobre o modo como se concebe a maternidade.

Assim, será por meio do viés filosófico que buscaremos responder o que é a maternidade e seu significado na vida da mulher e por quais razões a insatisfação com a maternidade chega até as clínicas de psicologia. Para formular a resposta ao questionamento proposto, utiliza-se do estudo de psicanalistas, historiadoras e filósofas, do método de pesquisa dedutivo, bem como da técnica de levantamento bibliográfico sistemático da literatura sobre maternidade, em especial por meio de fontes primárias de informação, como livros e artigos científicos sobre a temática em questão. O artigo está subdivido em 03 (três) capítulos. O primeiro aborda o desenvolvimento histórico do papel de mãe e como a maternidade é inserida no discurso como algo natural a mulher. O segundo capítulo expõe uma ressignificação da maternidade trabalhada pela psicanálise e, por fim, o terceiro capítulo dispõe sobre o que é, afinal, ser mãe.

1 A MULHER E A MATERNIDADE: JUNÇÃO DE DOIS PAPÉIS

A maternidade, como bem observa Maria de Jesus Correia1 (1998), possui por pano de fundo a dinâmica da sociedade dentro de determinado momento histórico. Desse modo, para compreensão da maternidade é preciso, antes de tudo, situar a sociedade dentro da qual a maternidade está em análise, pois a definição de maternidade engloba um sistema de valores relacionados com o que é a mulher bem como sobre o que é o filho. Além disso, a relação com a maternidade também varia a depender das classes sociais.

Desse modo, o valor conferido ao relacionamento mãe-criança se alterou ao longo do tempo e, nesse processo histórico, esteve presente uma série de agenciamentos sociais, dentre os quais os discursos e práticas científicas assumiram um importante papel. Por muito tempo a maternidade foi concebida como função tipicamente feminina relacionada a natureza da mulher. Todavia, diversas revisões históricas a respeito da instituição familiar indicaram que é recente a exaltação ao amor materno, tratando-se de um mito construído pelos discursos filosófico, médico e político a partir do século XVIII. Nesse contexto, a Medicina e a Psicologia colaboraram para a criação de novas formas de relação familiar pelo favorecimento de características específicas para o papel materno, o que resultou na produção de processos de subjetivação. Entende-se aqui por produção da subjetividade a forma pela qual os indivíduos percebem o mundo e apreendem sistemas de valores e sistemas de submissão, os quais modelam seus comportamentos, sua percepção, sua memória, sua sensibilidade e a forma como se relacionam2.

Segundo Badinter (1985), na Antiguidade e na Idade Média havia uma desvalorização da maternidade devido a ênfase conferida ao poder paternal, o qual possuía autoridade sobre os filhos e a esposa. Nesse contexto, a constituição da família, até o século XVIII, era pautada na ideia do contrato e a mulher equiparava-se aos filhos, ambos submissos a figura do pai. Os laços de afetividade eram desnecessários para manutenção familiar. No entanto, no último terço do século XVIII, com a ascensão da burguesia, há um deslocamento da autoridade paterna ao amor materno devido ao fato de a nova ordem econômica impor como imperativo, entre outros, a sobrevivência das crianças. Dessa forma, após 1760, houve a exaltação ao amor materno como um valor natural e social, favorável tanto a espécie como a sociedade, o qual incentivava a mulher a assumir os cuidados da prole.

Nesse sentido, nascem dois discursos que objetivavam modificar a atitude da mulher perante os filhos. O primeiro é o discurso econômico, o qual se apoiava em estudos demográficos e demostrava a importância do índice populacional para o país, alertando sobre os perigos decorrentes de um declínio populacional em toda a Europa. O segundo discurso se tratava de uma nova filosofia, que era o liberalismo, o qual se aliava ao discurso econômico, favorecendo ideais de liberdade, igualdade e felicidade individual. Com isso, há uma modificação na ideia de casamento, o qual deixa de se referir a mero contrato para conter a noção de amor, pois a ideia simplesmente contratual se torna avessa aos novos valores libertários e igualitários. A felicidade ganha importância no seio familiar. Assim, muito embora permaneça a distinção entre homem e mulher, há um novo sentido para família.

Nesse contexto, desenvolve-se, em articulação com os interesses econômicos do Estado, outro discurso proferido por médicos, moralistas, administradores e chefes de polícia, os quais reforçam o papel da mulher de ocupar-se com os filhos. Segundo tal discurso, esse seria o papel natural das mulheres e, portanto, a forma adequada de cuidado dos filhos, pois apenas a mulher era capaz de gestar e parir, sendo da natureza feminina a educação e os cuidados com a prole.

A partir do século XVIII e início do século XIX, há uma nova constituição da relação entre a mulher e a maternidade por meio da qual o bebê e a criança transformam-se nos objetos privilegiados da atenção materna. Diante disso, “a devoção e presença vigilantes da mãe surgem como valores essenciais, sem os quais os cuidados necessários à preservação da criança não poderiam mais se dar”3. Por consequência, são ampliadas as responsabilidades maternas com um crescimento da valorização do papel mulher-mãe, a qual é dotada de poder e respeitabilidade desde que não transcendesse o domínio doméstico.

Na mesma medida em que as responsabilidades da mulher aumentaram com a assunção do papel de mãe também se aumentou a valorização do devotamento e do sacrifício feminino em detrimento dos filhos e da família, destacando-se no discurso médico e filosófico como funções inerentes à natureza da mulher. Com isso, o afastamento desses papéis gerava enorme culpa e nascimento do novo sentimento de “anormalidade”, pois contrariava a natureza, só restando a explicação por meio do desvio ou da patologia. Nesse sentido:

Somente com a modernidade, na constituição da família nuclear e valoração do infantil, surge a função de mãe cuidadora. A mulher foi reduzida à figura de mãe em uma época de grande influência das regras da medicina e do poder médico. Aquelas que não exercem seu papel primordial social são valoradas na maldade ou então enquadradas na patologia.4

É preciso, portanto, que a função biológica da maternidade seja cindida do que se convencionou denominar cuidados maternos. É evidente e incontestável que apenas as mulheres podem parir crianças, todavia, não tão evidente ou incontestável o fato de que filhos não se parem, filhos se constituem nesse papel. O papel de filho bem como o papel de mãe são frutos das práticas sociais. Assim, não é natural à mulher os cuidados maternos ou as funções atribuídas como tipicamente femininas. Por tal razão, não é desvio ou patologia a condição da mulher que se nega a ser mãe, ou melhor, que renúncia ao papel de mãe.

Percebe-se, desse modo, que “o amor maternal não se encontra inscrito na profundidade da natureza feminina”5. O amor materno não é inato a natureza feminina. Dessa forma, “será em função das exigências e dos valores dominantes de uma sociedade determinada que são determinados os papéis respectivos do pai, da mãe, da criança”6. Assim, segundo Badinter (1985) o amor materno é um comportamento social, variável de acordo com a época e os costumes. A partir desse ponto, a questão que surge é como ressignificar a maternidade hoje.

2 RESSIGNIFICANDO A MATERNIDADE

Faz-se necessário, hoje, o debate sobre a função e o status da maternidade no espaço público atrelado a sua complexidade, a qual aumenta à medida que o sentido de maternidade se diversifica. Assim, a figura da mãe tradicional junta-se novas configurações de mães, como a mãe adotiva, a mãe lésbica, o homossexual que materna, a mãe de aluguel, a mãe adolescente, a mãe solteira, a mãe prisioneira, a mãe pobre, negra, a mãe genética. Como observa Stevens7, “a multiplicidade da mulher está presente na figura da mãe”. Cada uma dessas mães defronta-se com novos questionamentos e novas realidades, sendo que delas se exige a adequação àquele cuidado maternal padrão advindo de discursos do século XVIII e início do século XIX. Todavia, a realidade individual de cada uma dessas mulheres faz com que lhes seja inviável essa adequação a um papel padrão de maternidade, aparecendo nos consultórios psicológicos inúmeros casos de insatisfação no desenvolvimento do papel de mãe.

Nesse sentido, em pesquisa sobre os efeitos da maternidade na vida da mulher e a necessidade de apoio social neste momento, Rapoport e Piccinini trazem o seguinte relato de uma das mães sobre a maternidade:

Os três primeiros meses são os meses que tu pensa: meu Deus, o que eu fiz da minha vida, será que eu estava preparada, tudo eu acho que passa na tua cabeça, eu não quero estar aqui, como voltar atrás. O que eu fiz meu Deus, eu nunca mais vou dormir, nunca mais vou ter meu marido, nunca mais a gente vai sair […]. Isso é assim, até conversando com outros casais, é um horror. O [marido] diz: […] “as pessoas têm medo de dizer como tu diz, tão abertamente” […]. Claro, a gente precisava mesmo de uma adaptação, foi muito difícil, mas passou, graças a Deus passou. O S. fala que eu não me lembro do [filho] nos três primeiros meses: “Sim, porque foram tão horríveis que tu anulou”. Mas eu me lembro, de situações como quando eu fiquei a primeira vez sozinha com o M. Foi horrível, eu fiquei pensando, meu Deus eu vou me matar, porque eu não sei o que eu vou fazer, ele não parava, eu já tinha tentado de tudo […] Eu acho que os três primeiros meses foram todos de angústia, tinha as coisas do prazer, no momento que eu pensava, meu Deus esse nenê que coisa mais linda, nasceu do amor de nós dois, como é que pode. […] era muita angústia, e se ele chorar, e se ele regurgitar, meu Deus ele tem refluxo e se ele se afogar, então a gente não dormia, dormia com a câmera em cima dele, dentro do nosso quarto, com a câmera ainda.8

Rapoport e Piccini (2011) concluíram em sua pesquisa que o período do puerpério e do primeiro ano de vida do bebê é bastante propício à ocorrência de crises em razão das mudanças intra e interpessoais desencadeadas pelo parto, nascimento e desenvolvimento do bebê. Trata-se de um período de transição para a maternidade, no qual diversas situações estressantes podem se fazer presentes, com isso a mulher se torna mais sensível, angustiada, confusa. Segundo os autores é comum a existência de quadros de ansiedade e depressão, principalmente no caso do primeiro filho. Assim, os resultados da pesquisa revelaram que, entre as principais situações geradoras de estresse se destacam o cansaço materno, a falta de sono e a adaptação da vida da mulher aos horários e necessidades do bebê. Soma-se a isso inúmeras mudanças subjetivas que também são geradoras de estresse, como a reorganização da identidade da mãe e sua capacidade de manter o bebê vivo e crescendo. Destaca-se também na pesquisa o confronto entre o bebê real e o bebê imaginado e idealizado durante a gestação, bem como a mãe ideal e a mãe real.

Nessa contraposição entre os papeis reais e os ideais de mãe e de bebê florescem sentimentos contraditórios e ambivalentes nas mulheres mães, como a compaixão pelo bebê em oposição ao sentimento de raiva em razão de considerá-lo ingrato pelos esforços, bem como o sentimento de frustração perante a realidade de um bebê aparentemente insaciável, que exige muito e pouco retribui, privando a mulher de suas necessidades – horas de sono e de repouso. Essa situação de insatisfação, pontua Rapoport e Piccini, pode gerar sentimento de culpa e inadequação por parte da mãe. Esses sentimentos, com frequência, são os propulsores que levam a mulher-mãe a buscar as clínicas de psicológica com a indagação sobre uma inabilidade de sua parte para o desenvolvimento do papel da maternidade. A questão se torna mais problemática nas situações em que a mulher foi obrigada a prosseguir na gestação, embora tenha manifestado o desejo de não prosseguir com ela.

Nessa última situação, a questão além de psicológica e sociológica também é jurídica, considerando-se que uma vez grávidas as mulheres devem obrigatoriamente prosseguir com essa gravidez. Nesse sentido, preleciona Maria Berenice Dias9 que as mulheres permanecem reféns da visão sacrossanta da maternidade, que é considerada social e culturalmente como uma missão feminina, falando inclusive de “instinto maternal”. Essas são visões que retiram das mulheres a condição de pessoas capazes de tomar decisões acerca da própria vida. Assim, conforme Berenice, as mulheres não possuem ao menos o livre arbítrio para decidir se desejam ou não ter filhos, o que se confirma com a tentativa de proibição do uso de métodos contraceptivos10 e com a criminalização do aborto. Ambas são situações altamente influenciadas pela religião, que possui uma visão dicotômica da mulher, isto é, ou santa ou prostituta – ou Maria ou Madalena, ou Amélia ou Geni. Nesse âmbito, a santificação da mulher é tão grande que a gravidez da chamada Virgem Maria não foi fruto de uma relação sexual, mas de uma revelação divina. Esse episódio bíblico apenas confirma a rejeição à vida sexual da mulher, a qual deve manter sua castidade. Berenice conclui que “as mulheres, todas elas, precisam ser autoras do seu destino, senhoras da sua história: nem Marias, nem Madalenas. Cada uma deve ter orgulho de ser simplesmente mulher”.

Nesse contexto, as clínicas psicológicas possuem o importante papel de ressignificar a maternidade e devolver para as mulheres – tanto as que anseiam pela maternidade como para as que rejeitam – o papel de autoras de sua própria história, para a qual a maternidade não precisa ser o único e principal destino. Pois, afinal, o que é ser mãe? É desistir de toda uma vida – que é individual – para vivê-la em simbiose com um novo ser? É aprender a compartilhar os aprendizados com um novo ser que vem ao mundo? É o ponto de nosso próximo capítulo.

3 DEITADAS NO DIVÃ: O QUE É SER MÃE?

A questão que surge é: o que é ser mãe? Se no decorrer do artigo buscamos demostrar que ser mãe é uma construção social, dependente da cultura e da sociedade na qual está mulher está inserida, então como ser mãe sabendo dessa construção? Qual, afinal, é a finalidade de saber sua posição como mãe? O primordial, defende-se aqui, é a retirada do sentimento de culpa sobre a mulher que se vê inapta ou insatisfeita em seu papel maternal, o qual é uma criação social. Ou ainda retirar o estigma de maldade ou de patologia da mulher que não deseja a maternidade. Busca-se, por meio de um novo significado a maternidade demostrar que esse é um papel a ser desenvolvido por toda a família e todos que compartilham do crescimento da criança. Na mulher, tão somente pelo fato de parir e amamentar, não floresce obrigatoriamente sentimentos maternais. Assim, sentimentos de cansaço, estresse e culpa não a tornam “menos mães”.

Ser mãe é primeiro ser pessoa (individual). Saber se posicionar em seu lugar no mundo, antes de tudo, definir-se no mundo e, juntamente com essa definição, definir que o filho também é do mundo e, muito embora demande cuidados, virá a fazer parte desse mundo. Nesse sentido, recentemente, ganhou destaque nas redes sociais um desafio chamado de “O Desafio da Maternidade”11, que consistia no compartilhamento de fotos com seus filhos pelas mães visando demonstrar como a maternidade as deixou feliz. Além disso, o desafio as convidava a marcar em sua postagem outras mulheres para que fizessem o mesmo. O desafio, que deveria inicialmente ser levado como “brincadeira” viralizou pelas redes sociais, todavia algumas mães demonstraram incômodo com a carga de romantização colocada em cima do que é ser mãe. Dessa forma, Natália Pinheiro, estudante de letras da Universidade Federal de Santa Catarina, para demonstrar sua insatisfação, publicou em seu Facebook o seguinte texto, na contramão das demais postagens:

Participo do desafio, mas não endosso sua premissa. A maternidade não me faz feliz, o Yuri me faz feliz. (…) Eu não amo ser mãe em uma sociedade que reserva a mim o papel de cuidadora inata, de Maria, de culpada. Eu não amo ser mãe em um sistema que me apedreja por dizer que eu não amo ser mãe, por dizer que ser mãe é a experiência mais triste e solitária que já vivi, por falar sobre amor sem falar sobre hierarquia, por nunca deixar ninguém dizer que amar um filho é viver só por ele. Eu sou tão importante quanto o Yuri. Minha felicidade, meus sonhos e minha individualidade valem o mesmo que a felicidade dele, os sonhos dele e a individualidade dele.

Após essa postagem, Natália relatou que foi criticada, principalmente por homens, e ameaçada por alguns deles, os quais, segundo suas palavras: “Me mandaram mensagens falando que eu deveria ser abortada, estuprada e morta”. Esse caso deixa claro que o espaço é muito reduzido para resistência das mulheres que negam o papel maternal como algo tipicamente feminino. Para essas mulheres, demonizadas, resta apenas o desejo de “aborto, estupro e morte”. Resta apenas, portanto, o desejo de exclusão dessas mulheres do mundo. Ainda há uma cobrança muito agressiva do que significa ser mãe e qualquer desvio de rota é mal visto. Assim, defrontar a mulher e a mãe no divã, como seres autônomos, significa resgatar o medieval estigma de feiticeiras, pois para essas mulheres, na sociedade atual, o destino ainda é o da fogueira.

Essas circunstâncias apenas retratam como ainda hoje se exige das mulheres a perfeição no exercício do sacerdócio maternal. A mãe não se cansa, a mãe não se estressa, a mãe não sai, a mãe não bebe, a mãe não vive além dos limites da existência de seu filho. A mulher que se rebela a aceitar essas imposições ainda hoje é estigmatizada como símbolo do mal ou como doente. Não há dúvidas de que tal situação causa transtornos psicológicos as mulheres, pois reforçam e confirmam a cobrança excessiva em cima dessas mulheres que geraram e pariram crianças. Há inclusive um ditado que diz que “ser mãe é ter o coração fora do corpo”, mas e se a mulher quiser ter seu coração em seu próprio corpo? Se quiser deixar baterem dois corações ao invés de um? Criaremos crianças e adultos autônomos, crianças e adultos livres que não olham no amor o sentimento de uma prisão.

Dessa forma, conforme Badinter (1985), o amor é um sentimento humano como qualquer outro sentimento – medo, raiva, felicidade, etc. -, logo não decorre no simples fato biológico de gerar filhos. Assim, sendo um sentimento humano, é imperfeito em sua existência, logo pode existir, pode não existir, pode aparecer ou desaparecer, pode estar presente em maior ou menor intensidade. O amor materno é construído na convivência com os filhos, é conquistado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo buscou brevemente retratar o desenvolvimento do papel maternal que foi atribuído ao longo da história como tipicamente feminino. Muito embora o símbolo das mulheres feiticeiras pareça remoto e ligado a Idade medieval ainda hoje as mulheres que não se sentem satisfeitas ou aptas ao cuidado maternal são estigmatizadas como bruxas ou definidas no nível da patologia, que é fruto dos discursos filosófico, médico e político desenvolvidos a partir do século XVIII. Como trabalhado no artigo, a Medicina e a Psicologia possuíram importante colaboração para o desenvolvimento e criação de novas formas de relação familiar, as quais pautavam-se no papel maternal atribuído as mulheres, o que resultou na produção de processos de subjetivação. Todavia, atualmente, o papel maternal é muito mais complexo. Há diversidade de mães, logo diversidade na possibilidade do desenvolvimento desse papel.

No entanto, apesar dessa diversidade de mães, ainda se semeia o papel maternal como atributo unicamente de mulheres. O artigo objetivou, nesse aspecto, apresentar o cuidado maternal como algo desvinculado da mulher, o que permite que familiares em geral participem no desenvolvimento da criança com cuidados semelhantes, o que contribui para diminuição da sobrecarga que as mulheres mães possuem principalmente no primeiro ano de vida do bebê.

Além da sobrecarga advinda do desgaste físico e mental pelo cuidado de uma nova vida que vem ao mundo, há também o desgaste psicológico por não corresponder ao papel de mãe ideal que ainda é propagado. Nesse âmbito, é necessário desvincular o aspecto biológico, que consiste na possibilidade de gerar e parir crianças, do aspecto psicológico, que é a possibilidade de cuidar dessas crianças. Com isso, é possível acolher mulheres que se sentem insatisfeitas no desenvolvimento do papel maternal e mulheres que não desejam passar pela maternidade. Nesse aspecto, a clínica psicológica possui a importante função de mostrar para as mulheres que há diversas possibilidades de ser mãe, não há um padrão de mãe, além disso, mostrar que o cuidado maternal é fruto de uma prática social e que pode variar a depender da sociedade e do período histórico considerado. Com isso, é possível o nascimento de mulheres-mães mais livres na criação de seus filhos e filhos que se relacionam com os sentimentos como algo a ser sempre desenvolvido e não como algo natural, o que os torna mais responsáveis em relação a si, a família e a sociedade.


REFERÊNCIAS

BADINTER, Elisabeth. Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

CORREIA, Maria de Jesus. Sobre a maternidade. Disponível em: < http://www.scielo.mec.pt/pdf/aps/v16n3/v16n3a02.pdf>. Acesso em 26 jun 2019.

GENNARI, Ana Júlia. Em resposta ao ‘Desafio da Maternidade’, feministas desconstroem a imagem idealizada do que é ser mãe. Disponível em: https://www.geledes.org.br/em-resposta-ao-desafio-da-maternidade-feministas-desconstroem-a-imagem-idealizada-do-que-e-ser-mae/. Acesso em 27 jun 2019.

MOURA, Solange Maria Sobottka Rolim de; ARAÚJO, Maria de Fátima. A Maternidade na História e a História dos Cuidados Maternos. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/pcp/v24n1/v24n1a06>. Acesso em 26 jun 2019.

RAPOPORT, Andrea; PICCININI, Cesar Augusto. Maternidade e situações estressantes no primeiro ano de vida do bebê. Psico-USF, v. 16, n. 2, p. 215-225, mai./ago. 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pusf/v16n2/v16n2a10.pdf. Acesso em 27 jun 2019.

STEVENS, Cristina. Ressignificando a Maternidade: Psicanálise e Literatura. Disponível: http://www.revistagenero.uff.br/index.php/revistagenero/article/viewFile/385/289. Acesso em 27 jun 2019.

STELLIN, Regina Maria Ramos; MONTEIRO, Camila Fonteles d’Almeida; ALBUQUERQUE, Renata Alves; MARQUES, Cláudia Maria Xerez Camara. Processos de construção de maternagem. Feminilidade e maternagem: recursos psíquicos para o exercício da maternagem em suas singularidades. Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 170-185. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/estic/v16n1/a10v16n1.pdf. Acesso em 27 jun 2019


NOTAS DE RODAPÉ

1 CORREIA, Maria de Jesus. Sobre a maternidade. Disponível em: < http://www.scielo.mec.pt/pdf/aps/v16n3/v16n3a02.pdf>. Acesso em 26 jun 2019.

2 MOURA, Solange Maria Sobottka Rolim de; ARAÚJO, Maria de Fátima. A Maternidade na História e a História dos Cuidados Maternos. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/pcp/v24n1/v24n1a06>. Acesso em 26 jun 2019.

3 MOURA; ARAÚJO, op cit, p. 46.

4 STELLIN, Regina Maria Ramos; MONTEIRO, Camila Fonteles d’Almeida; ALBUQUERQUE, Renata Alves; MARQUES, Cláudia Maria Xerez Camara. Processos de construção de maternagem. Feminilidade e maternagem: recursos psíquicos para o exercício da maternagem em suas singularidades. Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 170-185. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/estic/v16n1/a10v16n1.pdf. Acesso em 27 jun 2019.

5 CORREIA, Op cit, p. 366.

6 Ibid idem.

7 STEVENS, Cristina. Ressignificando a Maternidade: Psicanálise e Literatura. Disponível: http://www.revistagenero.uff.br/index.php/revistagenero/article/viewFile/385/289. Acesso em 27 jun 2019.

8 RAPOPORT, Andrea; PICCININI, Cesar Augusto. Maternidade e situações estressantes no primeiro ano de vida do bebê. Psico-USF, v. 16, n. 2, p. 215-225, mai./ago. 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pusf/v16n2/v16n2a10.pdf. Acesso em 27 jun 2019.

9DIAS, Maria Berenice. Nem Marias, nem Madalenas! Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_724)nem_marias_nem_madalenas.pdf. Acesso em 27 de jun 2019.

10 Nesse sentido: O Deputado federal Márcio Labre (PSL-RJ), eleito em 2018, apresentou projeto de lei para proibir o comércio, propaganda e distribuição de métodos anticoncepcionais para mulheres, como a pílula do dia seguinte e o dispositivo intrauterino. O Deputado afirma que métodos contraceptivos para mulheres são usados como micro abortivos e acusa o Ministério da Saúde de incentivar hospitais a fazerem o aborto até o quinto mês de gestação Deputado do PSL cria projeto para proibir venda de pílula do dia seguinte e DIU. Disponível em: https://saude.ig.com.br/2019-02-06/deputado-proibir-metodos-contraceptivos.html. Acesso em 27 jun 2019.

11 GENNARI, Ana Júlia. Em resposta ao ‘Desafio da Maternidade’, feministas desconstroem a imagem idealizada do que é ser mãe. Disponível em: https://www.geledes.org.br/em-resposta-ao-desafio-da-maternidade-feministas-desconstroem-a-imagem-idealizada-do-que-e-ser-mae/. Acesso em 27 jun 2019.

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2 comentários para "O mito do “amor materno”: como surgiu e como superá-lo"

  1. Edeli disse:

    Excelente matéria. Entender as formas como foram construídos os olhares sobre o feminino é essencial para combater as várias formas de opressão que recaem sobre as mulheres.

  2. Claudio de Mendonça Ribeiro disse:

    Lamentável!

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