Por uma percepção feminista sobre a maternidade no Direito brasileiro

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Essa é a apresentação do livro Maternidade e Direito, organizado por Ezilda Melo
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Por Ezilda Melo

A coletânea “Maternidade no Direito Brasileiro: padecer no machismo”, dividida em quatro capítulos, composta de 22 contribuições teóricas em formato de artigo, escrita por 45 autores, dentre pesquisadores, professores, advogadas e ativistas dos direitos das mulheres, propicia uma amostra de como a temática sobre a Maternidade no Direito é ampla, complexa e transdisciplinar e merece um olhar mais acurado e cuidadoso.

Na obra “Maternidade no Direito Brasileiro: padecer no machismo”, continuidade de “Maternidade e Direito”, publicada pela Editora Tirant lo Blanch em 2020, com 27 artigos e 40 autores, novamente um tema importante para o Direito das Famílias é colocado e analisado sob vários enfoques por diversos estudiosos que se dispuseram na construção dessa obra coletiva que chega ao Direito Brasileiro com a intenção de contribuir com o debate sobre os direitos das mulheres. Nota-se que a temática da maternidade também se relaciona com a questão criminal, especialmente se as mães são vítimas de violência doméstica, sexual, obstétrica e estrutural do sistema de justiça.

Nesta obra, no primeiro capítulo tem-se seis artigos que transitaram entre a temática da análise discursiva sobre maternidade e a não estigmatização àquelas que exercem ou querem exercer o direito de não serem mães. Fez-se presente a discussão sobre o direito ao aborto a partir de leituras que legitimam a autonomia da mulher. Debate pertinente e atual, especialmente porque está em consonância com mudança legislativa historicamente conquistada na data de 30 de dezembro de 2020 na Argentina depois de muitos anos de reivindicações sociais e feministas.

Também no primeiro capítulo foram abordadas a questão do infanticídio indígena e sobre a Síndrome de Edwards e seu tratamento jurídico. No segundo capítulo, as questões principais se deram em torno da construção social da maternidade, a gravidez na adolescência e os impactos na vida das jovens estudantes, a questão dos tabus que envolvem o tema da amamentação, aspectos jurídicos do parto anônimo, a reprodução humana assistida e o reconhecimento da filiação materna, violência obstétrica e erro médico, a lei de alienação parental como forma de violência simbólica contra as mães, as desigualdades nos cuidados parentais, a desproteção salarial no afastamento do trabalho previsto na Lei Maria da Penha.

No capítulo três o enfoque principal foi a gestação e a banalização dos corpos das mulheres negras e das mulheres com deficiência, como também questões ligadas à maternagem encarcerada.

Diante de tudo que foi pesquisado pelas autoras e autores que compõem esta coletânea, ficou evidente que a temática da Maternidade no Direito Brasileiro é sentida, presenciada e decidida, na grande maioria das vezes, através de um filtro machista. Precisa-se, portanto, fazer uma alteração de percepção e o feminismo passar a ser o filtro condutor de entendimento sobre as situações que as mães vivenciam no Judiciário. O feminismo é a luta pelos direitos iguais das mulheres em relação aos homens e, dentro desta perspectiva, portanto, é válido que compreendamos como historicamente o papel da Maternidade foi socialmente construído como mais um lugar de exercício de poder sobre os corpos e as vontades de mulheres que vivenciam a gravidez, o parto, a amamentação e os cuidados com os filhos. Para que não seja um lugar de violências, precisa-se reconhecer as vulnerabilidades das mães e filhos e trazer para o debate a importância da paternidade responsável. Essa mudança sistêmica proporcionará uma sociedade melhor.

Em dezembro de 2020 foi noticiado amplamente, através de um vídeo que viralizou, o caso de um juiz da vara de família de São Paulo que em audiência para definir a guarda e pensão dos filhos menores de idade, onde também se faziam presentes um promotor de Justiça, os advogados do ex-casal, disse à mulher: “Se tem lei Maria da Penha contra a mãe, eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”. O magistrado ainda desdenhou de medidas protetivas e disse: “Não tô nem aí para medida protetiva e tô com raiva já de quem sabe dela. Eu não tô cuidando de medida protetiva”. “Qualquer coisinha vira lei Maria da Penha. É muito chato também, entende? Depõe muito contra quem…eu já tirei guarda de mãe, e sem o menor constrangimento, que cerceou acesso de pai. Já tirei e posso fazer de novo”, disse o magistrado em outro momento da mesma audiência.

Em outra audiência, também gravada e divulgada, o mesmo juiz demonstra uma série de preconceitos machistas, classistas e racistas: “Ganha 1300 e quis ter 2 filhos?”. Ou “se não tem como cuidar, então dá para adoção, põe num abrigo”; “quem quis ficar com a guarda foi a mãe, tem que pagar este preço”; “Se ele é mau pai, eu não tenho culpa. Eu vou fazer o que? Vou pegar este negão e encher ele de tapa? Não é meu trabalho este.”

Essa situação, apesar de emblemática, não é isolada, não é exceção e é praticada por juízas também. É inadmissível que as Vara de Família sejam lugar de (re)produção de mais violências contra as mulheres. Episódios de violência de gênero configuram violação de direitos humanos. O TJ-SP e o CNJ informaram em nota que instauraram procedimento para apurar os fatos noticiados contra o juiz, que em janeiro de 2021 foi designado para Vara de Fazenda. Práticas de revitimização e estigmatização das mulheres, sejam elas partes ou integrantes do sistema de justiça, devem ser eliminadas.

Neste sentido, pergunta-se: capacitações em direitos fundamentais com perspectiva de gênero é um bom início para pensarmos na alteração desse sistema? A iniciativa é recebida com entusiasmo. Não sabemos como essas aulas ocorrerão, que materiais serão utilizados, nem a duração dos cursos. Resta verificar se o profissional que se apropria de discursos discriminatórios conseguirá se desconstruir a ponto de introjetar conhecimentos calcados na proteção dos direitos dos grupos mais vulnerados, como as mulheres, e mais especificamente, as mães.

Estamos em momento histórico que aponta para novos saberes. Temos diversas mentorias na área de Advocacia Criminal e Familista com perspectiva Feminista; temos pós-graduações e cursos em direitos das mulheres; temos defensores, promotores, juízes e servidores públicos engajados na construção e proteção de direitos humanos. Temos sentenças que apontam para uma perspectiva de proteção dos direitos das mulheres e dos demais grupos vulnerados. Temos delegados e policiais que observam, desde a investigação de crimes de feminicídio, as Diretrizes Nacionais de Combate ao Feminicídio. Temos advogados, que mesmo exercendo o direito de defesa em júri, não tripudiam da memória da vítima, nem levantam teses abjetas e ultrapassadas como a da legítima defesa da honra. Temos uma mudança bibliográfica em curso para a área jurídica. São iniciativas que possuem já sua visibilidade e aceitação em quem tem compromisso com um direito humanista, fraterno e social. Portanto, estamos vivenciando mudanças no cenário jurídico e é nessa vibração de romper com estereótipos que “Maternidade no Direito Brasileiro: padecer no machismo” chega. Que seja mais que uma denúncia que começa desde a capa; seja também um material para novas pesquisas e formação de novas mentalidades que pensem em alterar um velho sistema que ainda está muito longe de ser um paraíso para quem dele precisa.

O machismo na sociedade precisa ser sepultado. O machismo no Judiciário também. Que os bons ventos do feminismo adentrem o Judiciário e permitam uma mudança de percepção sobre a situação das mulheres quando as mesmas estiverem num dos polos da lide que envolva seus filhos.

Nas duas obras a abordagem sobre a maternidade se unifica quando permite entrecruzar saberes e poderes sobre um assunto que consubstancia fortemente um lugar social construído e ressignificado por tantas civilizações e que se relaciona com os direitos das crianças e adolescentes. Tratamos todos os temas relacionados à maternidade nestas obras? Não. É um tema que precisa de muito enfrentamento acadêmico ainda. Que possamos reconhecer dentro dos grupos vulnerados, situações que são especificamente do sexo feminino, da maternidade, e que merecem uma acolhida e proteção mais firme do legislativo, executivo e judiciário. Pelo reconhecimento dos direitos das mães e por uma sociedade melhor!

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