Kollontai, 150: a teórica do amor sem posse

Pensadora revolucionária russa articulou um feminismo singular, que sustentava a potência dos afetos, mas queria livrá-los dos vínculos de poder e propriedade. Imaginou as solidariedades amorosas não capitalistas — e as praticou em sua vida

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Dirigente comunista, primeira mulher do mundo a fazer parte de um governo desde o começo dos Estados modernos, organizadora da Oposição Operária dentro do Partido Bolchevique e teórica do amor e dos vínculos sexuais (entre muitas outras coisas), Alexandra Kollontai é uma figura complexa. Sua trajetória política particular, tanto no sentido do compromisso militante como no de sua produção teórica, a manteve afastada dos programas de formação política de praticamente todas as correntes comunistas até pouco tempo atrás, e ainda hoje seu nome segue sendo desconhecido para aqueles setores do feminismo sem relação direta com o marxismo. E, no entanto, seus textos, especialmente os escritos durante os primeiros anos da Revolução Soviética, fornecem chaves fundamentais para a compreensão da inter-relação entre gênero e classe e abrem horizontes que ainda hoje permanecem verdadeiros, avançados e radicalmente reveladores.

Em muitos sentidos, Kollontai estaria dentro deste grande rótulo do que são “os clássicos”. Uma parte importante da esquerda tende a abordar “os clássicos” com religiosidade mais do que com respeito: memoriza parágrafos inteiros apesar de não os compreender, faz citações descontextualizadas, sempre que tem oportunidade, como argumento de autoridade ou reforço poético, sente indignação quando alguém se atreve a questioná-las. A certeira afirmação de que Marx tinha razão se transforma em uma caricatura grotesca: Marx, Lênin, e quem mais se coloque, tinham razão em tudo. Nunca tiveram dúvidas (ou, se tiveram, acabaram por resolvê-las de forma inequívoca), suas obras são lineares e dispensam desenvolvimento ou retificação interna, e suas teses são válidas como verdades ahistóricas que podem (e devem) ser reproduzidas mecanicamente em qualquer tipo de contexto. Teóricos e organizadores de enorme riqueza são, assim, paradoxalmente, reduzidos a fósseis inertes, cadáveres plastificados e totalmente esvaziados de política.

Romper com essa concepção “dos clássicos” é um dever e uma necessidade para a política revolucionária. O que torna um autor ou autora parte dessa categoria não deveria ser a sua sacralização (assassinato da sua potência transformadora), mas a constatação reiterada da utilidade de suas contribuições, a descoberta de novas abordagens, seu funcionamento como uma caixa de ferramentas para compreender o presente e construir estratégias emancipadoras viáveis. Não podemos olhar “os clássicos” como quem observa uma peça de museu, um passado que já foi e que permanece sempre estático. É a sua vida presente, sua atualidade plenamente política que lhes concede tal status. É no presente que arriscamos tudo.

Ao contrário de outros clássicos (todos autores do gênero masculino, possivelmente com as duas únicas exceções de Rosa Luxemburgo e Clara Zetkin), Kollontai foi, até o momento, pouco estudada. O fato de sua produção mais relevante não incluir nenhuma obra de grande formato, mas ser constituída fundamentalmente por panfletos, correspondência pessoal e artigos de jornal, dificulta em certo sentido a divulgação e tradução de seus textos. Mas, apesar disso, os principais entraves que existiram sempre foram de natureza política.

Alexandra Kollontai saiu da Rússia como membra do corpo diplomático em 1922, data que coincide, aproximadamente, com o fim de sua produção escrita (ao menos a mais rica) e, em termos históricos, se manteve desde então na mais absoluta irrelevância. O rascunho de suas primeiras memórias, intituladas Autobiografia de uma mulher sexualmente emancipada, e escrito em 1926, apresenta frases riscadas em um evidente exercício de autocensura e com várias afirmações claras: “Neste momento [1918] começou uma fase sombria de minha vida, que não posso tratar aqui, pois os acontecimentos são demasiado recentes”. Em 1930, sem fazer disso uma bandeira, e apesar de testemunhar o feroz desmantelamento de toda a legislação que ela mesma havia promovido e impulsionado poucos anos antes, se posicionou publicamente a favor de Stálin. Mas apesar da capitulação política de sua última etapa, uma rendição que certamente foi o que a manteve viva no período stalinista, o comunismo “oficial” nunca a perdoou por seu trabalho de oposição dentro do partido, sua rejeição à NEP e sua origem menchevique. Sua nomeação em 1917 como Comissária do Povo para o Bem Estar Social e sua influência em parte da redação da primeira Constituição soviética demonstram, porém, que a Revolução reconheceu sua figura e que o embate ideológico ainda era uma realidade dentro do partido naquela época.

A recuperação parcial de Kollontai, iniciada em meados dos anos 1970 foi impulsionada por diferentes setores, cada um deles com formas diferentes de abordá-la e com interesses particulares no que diz respeito à sua obra. Por um lado, diversos grupos comunistas contrários à doutrina da Terceira Internacional viram em Kollontai uma figura a se reivindicar como organizadora de uma das principais tendências internas do Partido Comunista Russo, defensora do cooperativismo e inimiga da burocracia. Seu texto A oposição Operária foi reeditado diversas vezes, quase sempre junto a algum de seus panfletos mais programáticos, como O comunismo e a família.

De maneira geral, nenhum desses setores mostrou especial interesse pelo resto da produção teórica de Kollontai, possivelmente por considerá-la dedicada a temas “menores” como os afetos e os estudos literários. A partir dos anos 80, porém, um setor do feminismo começou a se aproximar de Kollontai precisamente a partir desses textos que abordam qual a relação entre construção revolucionária e transformação dos costumes e da moral coletiva. Muitas das atuais interessadas em Kollontai nos reconhecemos neste grupo e começamos a descobrir sua obra não a partir dos textos mais partidários, mas graças às edições que a geração feminista anterior realizou em torno a ideias como a mulher moderna e a ideologia proletária do amor. Do meu ponto de vista, estas seguem sendo suas contribuições mais inovadoras, sugestivas e radicais politicamente. Isso nos faz pensar na maneira como Kollontai pode nos ajudar a construir, em pleno século XXI, um feminismo internacionalista e de classe que seja pedra angular na articulação de uma estratégia emancipatória para o conjunto da humanidade.

A emancipação por meio do trabalho: o programa bolchevique de libertação da mulher

Uma das verdades inquestionáveis, formulada primeiro pelas socialistas e depois assumida por todas as feministas, é que a mulher é muito menos propensa a passar por situações de discriminação, violência e maus tratos se não depende materialmente de seu agressor. Que a dependência emocional (entendida em sua acepção mais negativa, e não como sinônimo de interdependência, que atualmente reconhecemos como saudável) é, em uma porcentagem muito alta, consequência da falta de independência econômica. E que o modelo familiar de casais heterossexuais isolados, com papéis de gênero marcados e com uma forte divisão sexual do trabalho, contribui de maneira decisiva a essa anulação da agência e autonomia das mulheres. Desde meados do século XIX, distintas correntes políticas levantaram diferentes respostas a esse problema. A solução bolchevique passava por três eixos: incorporação à produção, proteção da maternidade e extinção das tarefas domésticas.

Uma parte importante da obra de Kollontai está centrada no estudo dos processos históricos concretos que acabaram por colocar as mulheres em uma posição de desigualdade com relação aos homens. Herdeira das concepções de tradição socialista neste campo (que no início do século XX ainda eram escassas, assim como as de outras correntes), Kollontai se apoia no A origem da família, da propriedade privada e do Estado de Engels para historicizar a opressão: não há qualquer fundamento natural para a situação de dominação e de exclusão social das mulheres, que é resultado de relações sociais concretas e pode, portanto, ser transformada por meio da modificação destas. A partir disso, a autora realiza um exercício que, mesmo com um nível menor de desenvolvimento, já havia proposto Clara Zetkin anos antes: se a situação da mulher depende de relações sociais históricas, então as mulheres de diferentes classes sociais se encontram necessariamente em situações distintas; mesmo fenômenos que aparentemente afetam da mesma maneira mulheres de distintas classes têm, para cada uma, uma explicação e solução próprias. Nos aprofundaremos nisso mais adiante.

Em 1921, dedicada já quase exclusivamente ao trabalho de organização feminino, Kollontai deu uma série de 14 conferências na Universidade Sverdlov de Leningrado dentro de um programa de formação para militantes comunistas encarregadas de organizar mulheres que não eram membras do partido. A tese central é clara: a posição que as mulheres ocupam em uma dada sociedade está determinada pelo seu nível de participação na produção e pela importância que as tarefas realizadas pelas mulheres têm para a coletividade (ou pela percepção que a coletividade tem de sua importância real). A via para a emancipação feminina que se depreende disso é evidente. A incorporação das mulheres na produção foi a peça fundamental do programa bolchevique para a libertação da mulher. O “direito ao trabalho” (palavra de ordem histórica do movimento operário) equivale ao direito à sobrevivência, a progredir por seus próprios meios.

Nas últimas décadas do século XX, com a força de trabalho feminina constituindo uma parte importante da força de trabalho ativa em quase todas as partes do mundo (e via de regra com uma presença majoritária no exército de reserva), a constatação da denominada “dupla jornada” abriu um importante debate entre as feministas. Muitas ativistas denunciaram a armadilha que o capitalismo lhes havia armado: às suas obrigações “de gênero” (caracterizadas como fruto da opressão patriarcal) se somava o dever de contribuir também para o mercado de trabalho. Conhecemos em primeira mão o resultado desse fenômeno: nossas responsabilidades domésticas e de cuidados pesam sobre nossas carreiras, ao mesmo tempo em que nossas demandas profissionais dificultam nosso desenvolvimento pessoal e familiar. O adiamento da maternidade quase para além dos limites biológicos, ou a queda radical no número de filhos nos países do norte global são bons exemplos de um dos dois lados da moeda. Se olharmos para a situação inversa o resultado também é bem conhecido: precarização generalizada das profissões mais feminizadas, falta de direitos e desamparo no trabalho, altas taxas de trabalhos temporários e informalidade etc. Onde está a libertação prometida?

A dupla jornada teorizada pelas feministas no final do século XX já era uma realidade para boa parte das mulheres da classe trabalhadora 50 e até 100 anos antes. Em 1923 a jornalista bolchevique Larisa Reisner, que então tinha 20 anos e fazia parte da Oposição de Esquerda, viajou a Hamburgo para escrever sobre a tentativa de revolução alemã. Suas notas e artigos destacam um interesse especial em documentar a vivência de mães trabalhadoras. A situação das mulheres no país com a classe operária mais desenvolvida do mundo era desoladora: desnutrição, falta de leite, alta probabilidade de morte no parto, altíssima mortalidade infantil etc. (1) Algo que já se atestava amplamente, embora de forma menos específica, nas correntes da sociologia do trabalho cujo início “científico” remonta a 1845, ano de publicação do estudo sobre A situação da classe trabalhadora na Inglaterra de Friedrich Engels. Sob o capitalismo, maternidade e profissão eram (e muitas vezes ainda são) incompatíveis. O programa bolchevique para a emancipação da mulher pretendia responder a essa realidade com medidas de proteção à maternidade que acabassem com a contradição entre o trabalho e o cuidado da vida, e que garantissem a todas as mulheres a possibilidade de serem mães sem por isso sofrerem uma perda de direitos ou verem-se condenadas a uma situação ainda maior de vulnerabilidade social. Em janeiro de 1918, como parte de seu trabalho como Comissária de Bem Estar Social, Kollontai cria o Escritório Central da Maternidade e Proteção da Infância, um órgão encarregado de coordenar políticas dirigidas à formação das trabalhadoras em cuidados pré e pós-natais, a criação e gestão de creches e maternidades gratuitas e outras medidas semelhantes. O Estado soviético entendia a maternidade como uma “função social” que deveria ser, portanto, protegida e assegurada. O alcance efetivo desta política (considerando a amplitude do território, as diferenças entre o campo e a cidade e, sobretudo, a dureza dos anos do chamado “comunismo de guerra” e as dificuldades econômicas do país) foi limitado. Mas as medidas postas em prática surpreendem por serem avançadas mesmo quando comparadas ao nível dos Estado capitalistas de bem-estar pós-1945 ou com nossas legislações contemporâneas. Alguns exemplos são a licença do trabalho com conservação de salário para a mãe nas oito semanas anteriores ao parto e nas oito posteriores (2)(equivalente a nossa atual licença maternidade de quatro meses) e a atribuição de uma cesta gratuita de produtos básicos de alimentação e higiene (leite, manteiga, fraldas etc.) a todas as mulheres durante a segunda metade da gestação e até o final do período de amamentação. (3) Em 1920 e paralelamente a tudo isso, o Comissariado do Povo para Saúde e Justiça publicou um decreto sobre a interrupção artificial da gravidez que tornou a URSS o primeiro país do mundo a legalizar o aborto. (4)

A identificação entre mulher e mãe (a caracterização da maternidade como o diferencial feminino em relação aos nossos colegas de classe) é uma constante em toda a obra de Kollontai. Sua oposição explícita à igualdade como objetivo político parte deste fato: a igualdade é entendida como uma negação da especificidade feminina, uma pretensão sem base material que apaga as diferenças e exerce violência sobre as mulheres ao omitir as realidades biológicas da menstruação, da gravidez, do parto e da amamentação. O reconhecimento das “particularidades biológicas de cada sexo” não é entendido aqui como justificativa para a segregação, mas como um fato do qual emana uma série de direitos particulares próprios da mulher enquanto mãe. Frente a igualdade, Kollontai defende a “equiparação” e os “direitos especiais”. Em “O Movimento das feministas e o papel das trabalhadoras na luta de classes”, escreve: “na verdade, a mulher não tem por que realizar o mesmo trabalho que o homem; para garantir a igualdade de direitos, basta que realize um trabalho de mesmo valor para a coletividade”.

É fácil entender o compromisso de Alexandra Kollontai em “fortalecer o instinto materno natural da mulher” (5) como fruto de um essencialismo no destino feminino, uma missão social transformada em biologia. Sua defesa entusiasmada da maternidade como função social pode ser incômoda e problemática para as leitoras contemporâneas, e já em sua época recebeu importantes críticas por parte da oposição política. (6) Sua obra mais extensa a esse respeito, “Sociedade e maternidade” (1916), é mais um estudo das condições do capitalismo e das diferentes legislações estatais do que uma proposta política de fato, e nos artigos escritos depois da Revolução o tom geral é de exaltação e equiparação quase constante entre mulher e mãe. Apesar disso, em “Os fundamentos sociais da questão feminina” (1908) Kollontai alerta contra “o ideal burguês que reconhece a mulher antes como fêmea do que como pessoa” e ironiza os que consideram a maternidade como o “objetivo” de vida das mulheres.

Para além das discussões que podem ser abertas a esse respeito (e observando com muita cautela as tendências maternalistas e que de certa forma subsumidoras da vontade da mãe a vontade geral), a verdade é que Kollontai entendia que, nas sociedades capitalistas, a maternidade pesava como uma rocha sobre o corpo das mulheres. Algo que hoje em dia também reconhecemos, ao menos parcialmente, quando dizemos que muito mais mulheres optariam por ter filhos se isso não supusesse instabilidade econômica e complicações no trabalho. Dessa forma, se o primeiro ponto do programa bolchevique para a emancipação da mulher era a incorporação ao trabalho produtivo, o segundo era a libertação do fardo da maternidade. E o terceiro, intimamente ligado a este último, a libertação do trabalho doméstico mediante a progressiva extinção da família.

Desde que Marx e Engels falaram no Manifesto Comunista sobre abolir a família, as polêmicas sobre o assunto não deixaram de ocorrer. No entanto, nenhuma das tradições operárias jamais propôs a dissolução dos vínculos de convivência e afeto que em termos históricos nomeamos “família”. O que se questiona é a forma hegemônica específica que a família adota nas sociedades capitalistas, o que o feminismo mais recente chamou de “família nuclear” e que Kollontai denomina “família isolada”. O que os bolcheviques pretendiam era desmontar essa fórmula. Não por meio da exploração individualizada de cada um de seus membros, como fazia o capitalismo, mas mediante a coletivização da maior parte das suas funções e a criação de bases materiais novas que permitissem o surgimento de sociabilidades distintas: restaurantes populares do Estado, casas-comuna com aluguéis reduzidos acessadas por lista de espera, abrigos infantis, um sistema de educação público e gratuito desde a primeira infância… Medidas cuja aplicação foi limitada (em parte pelas dificuldades econômicas, em parte por resistência política) mas que indicam, sem dúvida, um caminho rico e frutífero para a experimentação e o estabelecimento de relações sociais e familiares menos individualistas e mais solidárias, justas e horizontais.

Possivelmente a principal lacuna das ideias de Kollontai sobre esse tema seja a não problematização dos papéis de gênero – ausência esta, por outro lado, justificada, se considerarmos que ainda faltavam 50 anos para que o próprio feminismo começasse tratar a questão nesses termos. Em que pese a sua crítica certeira à escravidão doméstica e à dupla carga suportada pela mulher (como trabalhadora e como mãe), Kollontai parece assumir a existência de uma predisposição natural das mulheres para determinados tipos de tarefas. E mesmo quando reconhece que essa inclinação é fruto do costume, e portanto construção histórica, não o faz para desmontar essa tendência, mas para mobilizá-la politicamente. O instinto materno egoísta torna-se então um instinto posto à disposição da sociedade por meio do trabalho em abrigos infantis estatais, as habilidades culinárias femininas são aproveitadas nos restaurantes populares etc. Ainda teriam que passar muitas décadas até que as feministas da segunda onda apontassem a construção social e cultural de gênero como um dos eixos fundamentais para a reprodução da opressão. No presente, não podemos se não atribuir essa crítica a nós mesmas, e nos perguntarmos como articular o reconhecimento dos saberes e fazeres historicamente femininos com a transformação das relações sociais que reproduzem a divisão sexual do trabalho e a ética reacionária do cuidado. (7)

A independência econômica, a proteção à maternidade (destinando recursos públicos suficientes, mas também garantindo que a decisão de ser mãe tenha sido tomada de maneira livre, voluntária e consciente) e a emancipação com relação ao trabalho doméstico, seguem sendo nos dias de hoje três pilares centrais de todo programa de libertação da opressão de gênero. O quarto pilar, a transformação das formas de vida e das relações interpessoais, foi teorizado por Kollontai certamente da maneira mais sistemática e satisfatória até hoje, e nos deteremos nisso mais adiante. Para todos os demais fatores que afetam de maneira determinante as vidas das mulheres e que nos colocam em situações de violência, discriminação e injustiça (as fronteiras, a superexploração do trabalho, a segregação racial, as políticas migratórias, a habitação precária ou a pobreza energética), Kollontai teria uma resposta clara: sua solução depende da ação política do conjunto da classe.

Kollontai e as feministas

A rejeição à existência de uma “questão da mulher” específica separada da questão social geral é uma constante em toda a obra de Kollontai e uma das afirmações mais polêmicas para uma leitura contemporânea. Apesar disso, a rigor, se trata de uma observação verdadeira. Não existe uma “questão da mulher” que possa ser separada da questão de classe, migratória ou racial, como de fato setores importantes dos feminismos vêm há tempos advertindo. Qualquer negação desta realidade só pode acabar por justificar e reproduzir as lógicas de exclusão e opressão sistêmicas, como já aconteceu em diversos momentos ao longo da história.

Exemplos tristemente famosos de como o feminismo (ou melhor: uma parte do feminismo) permitiu a perpetuação de relações de discriminação e violência ou, diretamente, as fortaleceu, são a justificativa imperial por parte do sufragismo britânico, a rejeição à visibilidade lésbica nos anos 1970 (e a atual rejeição ao reconhecimento de direitos para as mulheres trans), o apoio a leis criminalizadoras e regularizadoras das formas de vida das comunidades negras ou migrantes e das trabalhadoras sexuais, o feminacionalismo como ferramenta neocolonial etc. Como resposta a tudo isso foram surgindo diversas posturas e marcos explicativos que tratam de pensar o modo como tais coisas se interconectam. Certamente a mais famosa dessas propostas é a da interseccionalidade, apesar de as feministas da reprodução social terem demonstrado importantes lacunas e limitações desta teoria. De toda forma, está claro que a realidade demonstra que não é possível melhorar a vida da maior parte das mulheres com uma perspectiva meramente setorial, negando ou sem pretender abordar a origem da maior parte dos problemas que nos afetam.

No início do século XX, o inicialmente denominado “movimento feminino” estava presente por toda a Europa, América e parte da Ásia e se concentrava principalmente no direito ao voto. As feministas haviam criado organizações próprias em um número relevante de países, estavam articuladas internacionalmente e demonstravam uma grande capacidade de incidência midiática, pensamento tático e compromisso político. O repertório de ações que conduziam vai desde o envio massivo de cartas a políticos e representantes públicos até estratégias de alto nível de risco e sacrifício: boicote a eventos culturais e esportivos, ataques a empresas e instituições públicas, greves de fome e autoagressão na prisão etc. A violência destas práticas foi uma característica definidora do movimento (especialmente nas suas vertentes britânica e estadunidense) e contribuiu para a construção de uma imagem de radicalidade para o sufragismo.

É esse feminismo (o feminismo realmente existente na época) com o qual Kollontai e outras marxistas contemporâneas debatem. E o fazem, ao contrário de outros grupelhos supostamente comunistas que se valem de sua figura para insultar o feminismo atual, reconhecendo o valor das sufragistas e a importância e valentia das mulheres que as precederam. Boa parte da produção escrita de Kollontai está dedicada a este exercício, sem o qual não poderia tratá-las como adversários políticas ou explicar o avanço do movimento. Não há desprezo ou caricaturização alguma, mas sim uma análise sistemática de todos os pontos em que “as feministas” parecem ter acordos programáticos com as comunistas e as motivações e reivindicações que realmente estão por trás de cada grupo. “Se em determinadas circunstâncias as tarefas de curto prazo das mulheres de todas as classes coincidem – escreve em 1908 –, os objetivos finais dos dois lados […] e as estratégias a seguir, diferem muito”.

Uma leitura não problematizada de textos chave como “Os fundamentos sociais da questão feminina” ou “O movimento das feministas e a importância das trabalhadoras na luta de classes” pode nos levar a dois equívocos opostos: rejeitar a argumentação de Kollontai como um todo, motivada pela maneira que a autora limita o feminismo a suas manifestações burguesas, ou assumir que este reducionismo é correto e acabar sustentando a falácia de que toda articulação feminista é necessariamente expressão da ideologia burguesa.

Pessoalmente, estou firmemente convencida de que quase todas as críticas que Kollontai dirige “às feministas” são corretas hoje em dia quando se trata do feminismo liberal e institucional. Existe um feminismo hegemônico (com maior ou menor facilidade para exercer essa hegemonia em função, entre outras coisas, do nível de desenvolvimento do movimento real) com acesso aos meio de comunicação e uma forte influência cultural, que se considera a si mesmo neutro em termos de classe e que pretende representar os interesses de todas as mulheres. E junto a isso (ou, para ser mais precisa: frente a isso) há também um feminismo que articula as demandas de gênero com o todo dos conflitos sociais, e que entende que a situação das mulheres, e também suas necessidades e preocupações principais, varia em função da classe a que pertencem.

O feminismo, como todo movimento de massas, é um espaço sempre em disputa. Renunciar à luta é assumir a própria incapacidade política e promover a profecia da derrota autorrealizada. Kollontai reconhece e demonstra em repetidas ocasiões a existência de uma dupla genealogia do movimento de mulheres, chegando a empregar uma terminologia muito aproximada à nossa: “movimento feminino” e “movimento feminino burguês”. (8) Duas correntes que podem coincidir nas tarefas imediatas, mas que diferem radicalmente em seus objetivos finais e que são resultado da aparição, a partir dos processos de formação e expansão do capitalismo, de dois grupos de mulheres diferenciados. Nessa perspectiva, é muito mais fácil se desprender das reticências e preconceitos que podem suscitar uma primeira leitura para nos aproximarmos dos argumentos de Kollontai com mais disposição de escuta.

O amor camaradagem

A contribuição mais inovadora, mais extraordinária e mais original de todas as que Kollontai faz ao pensamento marxista são suas reflexões sobre o amor. Desde o Manifesto Comunista de Marx e Engels e, com maior profundidade, desde o primeiro livro d’O Capital, o marxismo tem como argumento fundamental que as relações sociais que se desenvolveram sob o capitalismo não emanam da natureza humana, mas são construções históricas fruto do modo capitalista de organização da produção e da vida. As consequências políticas disso são imensas: se não são naturais, se não se desprendem necessariamente da natureza humana, então é possível imaginar formas distintas de nos relacionarmos e nos organizarmos socialmente; se são históricas, se têm um começo, então também podem ter um final; se são resultado, e, ao mesmo tempo, agente reprodutor de relações materiais concretas, então podemos e devemos criar bases materiais distintas que deem lugar a relações sociais mais saudáveis e plenas.

Até Alexandra Kollontai, as conclusões a esse respeito se limitam, a grosso modo, ao patamar das relações entre classes. É verdade que ao longo do século XIX encontramos várias tentativas de pensar como seriam outras formas de conviver e de organizar não só a produção mas também a vida, mas que geralmente se restringem a grupos isolados e numericamente reduzidos (nos referimos aqui às distintas experiências utópicas, dentre as quais a mais famosa possivelmente seja a dos falanstérios de Fourier) ou são entendidas como um complemento das demandas trabalhistas clássicas (como a abertura de creches e cantinas infantis dentro das fábricas). No final do século se começa a teorizar, sobretudo entre setores anarquistas, o conceito de “amor livre”. Sem ter necessariamente as implicações que atualmente atribuímos ao termo, o amor livre se referia a relações alheias ao matrimônio, que começam e terminam por vontade mútua. Uma de suas principais defensoras foi Emma Goldman.

No campo socialista, as reações ao amor livre foram de vários tipos, embora majoritariamente negativas. Por um lado, se argumentava que as mulheres e homens da classe trabalhadora já estabeleciam, na prática, relações não mediadas pelo matrimônio, enquanto nas classes burguesas isso era resguardado devido ao imperativo da transmissão da herança. Por outro lado, existia uma tendência a interpretar o adjetivo “livre” no sentido liberal do termo. O amor livre passava a ser assim um amor egoísta e isento de responsabilidades. É bastante conhecida uma significativa troca de cartas entre Lênin e Inessa Armand a esse respeito, onde ele tenta convencê-la de retirar o termo de seus textos. Lênin estabelece até dez possibilidades de significação para a expressão, das quais as sete primeiras (amor livre de cálculos econômicos, de preocupações materiais, de preconceitos religiosos, das proibições do chefe de família, dos preconceitos sociais, do ambiente opressor e dos entraves da lei) corresponderiam efetivamente aos interesses das mulheres trabalhadoras. Os três últimos (livre da seriedade no amor, livre da procriação, liberdade de adultério) constituiriam reivindicações burguesas e seriam as mais associadas ao termo. (9) É importante lembrar, para além da opinião de Lênin de que uma “excitação excessiva e desordem da vida sexual” contribuia para “dissipar a saúde e as energias da juventude”, (10) as ideias sobre degeneracionismo e higienismo social eram bastante populares na época, inclusive em ambientes revolucionários. (11)

A resposta de Kollontai ao problema do amor não se limita ao debate sobre o amor livre. Partindo da constatação da existência de uma “crise sexual” na Rússia revolucionária (isto é: uma desordem nos comportamentos sexuais e nas relações, fundamentalmente entre a juventude), Kollontai vai além do plano das atitudes individuais para pensar o amor em sua dimensão histórica, social e política. O resultado é uma proposta global que rompe com muitas das concepções das correntes comunistas mais rígidas, mas que se insere perfeitamente na engrenagem do pensamento marxista. Ao entender o amor como parte da ideologia (reconhecida como terreno de luta pelo socialismo), Kollontai questiona a ideia de que se trata de um “tema menor” para situar os sentimentos amorosos (ou, para usar termos mais atuais e menos piegas: para situar os afetos e as maneiras em que nos vinculamos emocionalmente) em um lugar central de toda estratégia política revolucionária.

Uma das inovações mais importantes de Kollontai é precisamente esta: ter apontado o amor como uma construção social meio século antes de que o feminismo começasse a falar sobre gênero. Foi preciso esperar até elaborações mais recentes do movimento feminista e a crítica ao modelo do “amor romântico” para encontrar algo similar ao que Kollontai fez há cem anos, e ainda assim, com muito menos carga e implicações políticas. Isso porque sua proposta não se baseia em pensar como deveriam ser as relações de cada uma de nós em separado (critério ético individual) mas sim o tipo de laços e afetos interpessoais que precisamos para construir uma sociedade sem classes, mais justa, feliz e plena.

Descentrar o foco do privado e introspectivo para colocar luz na dimensão social do amor nos ajuda a vislumbrar o modo em que este contribui para dar forma a um determinado tipo de coletividade. Trata-se de um fato aparentemente evidente (ao fim e ao cabo, coletividades baseadas no amor são também os casais convencionais, as famílias ou os grupos de amigos), mas que naturalizamos até o ponto de invisibilizar a questão. Apesar disso, historicamente o amor foi uma arma política que sempre se usou: o amor a um Deus, o amor à nação, o amor aos seus (como no caso do feminismo ou, muito especificamente, do movimento negro do século XX), e inclusive o amor a uma mulher (como bem explica Kollontai ao falar das lógicas cavalheirescas nas sociedades feudais). Enquanto um sentimento, o amor é um elemento de união, portanto, um elemento organizador. Saber compreender e valorizar a força transformadora que o sentimento de amor contém é fundamental para todo projeto político.

De quais princípios emana a moral sexual e afetiva de nossas sociedades, uma moral que permite e possibilita semelhantes atrocidades? E sobre quais princípios queremos levantar uma moral sexual nova, que nos ajude a viver mais livres e plenas? Kollontai se faz essas perguntas em um momento em que se estavam construindo as bases para um novo modelo de sociedade (de transição ao socialismo) e no qual a revolução havia dinamitado os costumes e hábitos morais de setores importantes da população, especialmente nas zonas urbanas e com uma forte incidência entre as camadas mais jovens. Seus textos mais interessantes a esse respeito constituem a última etapa de sua produção escrita antes de sair da Rússia, e muitos adotam a forma de respostas públicas (em diversos jornais e revistas) a cartas que recebia de jovens militantes do partido. Um bom exemplo disso é o texto “Abram caminho ao Eros alado! Uma carta para juventude operária”, incluído neste livro.

Em seu empenho por compreender a moral sexual como parte da ideologia, Kollontai se afastou das posturas predominantes na época: a nostalgia reacionária dos costumes perdidos e a negação individualista de todo código de conduta. Não nos parece muito difícil, em pleno século XXI e após décadas de neoliberalismo selvagem, reconhecer ambas posições nos discursos que nos rodeiam. A relativa flexibilização dos costumes, a progressiva aceitação de modelos familiares diversos e uma evidente, ainda que superficial, “destabulização” do sexo provocaram, por um lado, o surgimento ou reforço de uma corrente conservadora oposta à mudança, que busca consagrar os supostos costumes tradicionais e a disciplina de gênero como cânon moral de conduta e que está também presente em setores (minoritários) declarados de esquerda. O outro lado da moeda é uma espécie de niilismo emocional que foi definido de várias formas: consumo de corpos, egoísmo emocional, neoliberalismo sexual etc.

Os debates dos últimos anos em torno do poliamor e do amor romântico e o crescente interesse dentro do feminismo por pensar os afetos são uma resposta a tudo isso. Sem julgar ou culpabilizar atitudes individuais, se trata, porém, de entender quais são as lógicas que nos levam a reproduzir em nossas condutas sexuais e nas relações as dinâmicas de posse e consumo/descarte próprias do sistema. Em 1921, Kollontai escrevia que “nós, que pertencemos a um século de propriedade capitalista, um século de intensas lutas de classes e de moral individualista, ainda vivemos e pensamos sob o signo funesto de uma invencível solidão moral”. (12) Tinha e ainda tem razão. Kollontai tenta diferenciar a adaptação passivo-adaptativa às condições capitalistas de vida e a aparição de princípios ativos e criadores que constituam uma reação ativa a tal lógica. Para defender, na sequência, a construção de uma moral proletária que se realiza no próprio processo da luta de classes e que também é uma ferramenta para ela. Não por que esta destrua nada por si mesma (e há aqui um interessante debate com as concepções mais entusiastas sobre o potencial revolucionário da sexualidade, nas quais eu pessoalmente me situo do lado de marxistas como Holly Lewis (13)), mas por seu potencial para criar solidariedades, vínculos e afetos, e para influir na transformação das mentalidades. A pergunta seria, então, como aumentamos o “potencial amoroso” da humanidade (reduzido ao mínimo sob as condições de vida capitalista) e sobre quais princípios levantamos uma nova moral sexual e afetiva? Como transcendemos as soluções individuais e geramos marcos relacionais emancipadores e justos para todas e todos? Kollontai dá uma dupla resposta a essas questões, identificando a solidariedade e a cooperação como os dois princípios básicos para o estabelecimento de vínculos. Isso a leva a uma constatação lógica: “Uma estrutura social baseada na solidariedade e na cooperação exige um potencial de amor altamente desenvolvido, ou seja, que as pessoas sejam capazes de experimentar sentimentos de verdadeira simpatia entre si. Sem isso, a solidariedade não pode ser duradoura”. (14) E apenas em uma sociedade organizada com critérios distintos dos atuais, apenas mediante a reorganização fundamental de nossas relações socioeconômicas sobre uma base comunista, é possível ampliar o “potencial de amor”. Sem essa máxima, não há saída.

Certamente um dos maiores atrativos do pensamento de Kollontai é o modo em que suas ideias, formuladas há um século, se conectam com nossos debates atuais e nos oferecem respostas muito mais satisfatórias e avançadas politicamente do que as que todo o feminismo posterior (e não vamos dizer o movimento operário) proporcionou. Em sua obra encontramos formulada pela primeira vez uma ideologia proletária do amor, que transcende o pensamento sobre as relações de casal ou estritamente sexuais para teorizar sobre a faculdade humana de amar no sentido mais amplo do termo, rompendo com a hierarquia dos relacionamentos que categoriza nossos vínculos como mais ou menos importantes e com a competição ou contradição entre os diferentes tipos de afeto. Ou seja: em Kollontai encontramos uma proposta de ruptura com a monogamia que não se baseia na preferência ou conveniência pessoal, mas na evidência de que o ideal do amor completo por meio de uma única pessoa, além de irrealizável, entra em contradição direta com os interesses da nossa classe.

Esta é a definição do amor-camaradagem: um amor baseado na liberdade plena, na igualdade e na solidariedade amistosa, onde não interessa a forma, mas o conteúdo do vínculo. Igualdade recíproca, reconhecimento mútuo de direitos, uma abordagem baseada na camaradagem: fatores que só podem se realizar coletivamente em e por meio da luta política, e que transcendem qualquer debate sobre poliamor e amor livre para construir formas mais plenas e justas de nos relacionarmos entre nós. Entendendo que, como escreve Kollontai, “entre as múltiplas tarefas importante das quais está incumbida a classe trabalhadora, está também, sem dúvida, a de construção de relações intersexuais mais saudáveis e felizes”. (15)

A centralidade do feminismo na luta de classes

Resgatar Kollontai das garras do passado tem especial sentido em nosso presente, marcado pela sucessão ininterrupta de crises, nas quais a reprodução das bases materiais que sustentam a vida cada vez se realiza em condições mais precárias, as lutas se feminizam (não por que antes não houvesse mulheres nelas, mas por que agora as que estão na linha de frente são precisamente as protagonizadas por mulheres) e o movimento feminista irrompe como vetor politizador das massas, capaz de condensar boa parte das contradições do sistema. Após a queda do muro de Berlim e o desaparecimento do mal chamado “socialismo real”, o mundo ficou órfão de alternativas ao capitalismo. O discurso do “fim da história” se impôs: já não havia luta de classe, se acabou o conflito como motor histórico, não há mais tentativas de explicar os fenômenos sociais com “grandes narrativas”. Agora que qualquer um poderia ser proprietário e que a sociedade não existe, há apenas homens e mulheres fazendo escolhas pessoais cujas consequências eram inteiramente de sua responsabilidade. Essa ladainha, claro, era mentira.

Na última década fomos testemunhas de um renovado interesse pelo pensamento marxista nas universidades e também nos movimentos sociais. O colapso da fachada de bem-estar e progresso por meio do mercado que a crise de 2008 provocou dinamitou as ilusões de salvação individual e redirecionou o debate em torno da construção de um sujeito coletivo antagonista capaz de contestar a atual correlação de forças. Este fenômeno se deu de forma distinta em diferentes setores. Frente a uma recuperação da classe como categoria sociológica cristalizada ou como miscelânea identitária, as vertentes mais ricas do pensamento marxista buscaram detectar quais eram as lutas e os processos sociais que estão de fato contribuindo para a formação desse novo sujeito de classe, e quais mecanismos por meio dos quais se produzem as tomadas coletivas de consciência. O modo em que o movimento feminista organizou a luta contra as dinâmicas de exploração e despossessão capitalistas o situa centro desses processos.

O fato de que, depois de décadas de fragmentação, tenha sido o feminismo que recuperou na prática a ideia de um sujeito coletivo para si,que se autoconstrói politicamente e se articula internacionalmente, despertou uma reação furiosa entre os defensores de um sujeito de classe mítico e idealizado. Os que reduzem a potência da classe trabalhadora a uma imagem cristalizada e unívoca, se esquecem que os sujeitos não se decretam e que as classes se constroem e definem unicamente por meio da luta de classe.18 Os sujeitos precisam da práxis, se constroem na luta conjunta e a partir de experiências concretas compartilhadas. Não existe essência ou identidade natural alguma que reclamar sem a materialidade das práticas.

A consciência feminista e a consciência de classe estão completamente interconectadas. Por mais que isso desagrade as propagandistas da sororidade universal, que apaga as relações de exploração e nega as diferenças entre mulheres, não há emancipação possível da mulher no capitalismo, pois a opressão de gênero, na forma atual, é resultado direto da contradição capital/trabalho. Por mais que possam franzir a testa os nostálgicos da opressão principal e de uma classe trabalhadora mítica que jamais existiu, não é possível questionar o sistema capitalista sem considerar gênero e raça, porque ambos se encontram no centro das dinâmicas de exploração e despossessão do capital. É por meio da experiência e da luta concreta que as mulheres estabelecem conexões, porque na realidade material não é possível separar as duas questões. Nesse sentido, na medida em que pode questionar e confrontar diretamente muitos dos mecanismos de reprodução do capital, o feminismo tem a capacidade, às vezes mais ou menos desenvolvida, de se tornar um processo de subjetivação da classe. De construção de sujeito. Se transforma em luta de classes feminista.

Kollontai explica com vários exemplos a forma como se produz essa tomada de consciência e a maneira em que as consciências de classe e “feminista” repercutem mutuamente uma na outra. Apesar de seus argumentos contra as feministas burguesas e contra a existência de uma questão feminina específica, dedicou boa parte da sua vida para impulsionar a auto-organização das mulheres (incluindo, em especial, as que não militavam no partido) e não há, em nenhuma parte de sua obra, uma negação explícita das demandas feministas da época. Nem mesmo as das sufragistas, movimento sobre o qual reconhece que as mulheres trabalhadoras foram maioria em muitos lugares. Em “O Dia Internacional da Mulher” ela enfrenta acusações de dividir a classe para defender a especificidade do 8 de março e a necessidade de sua existência. Embora ela tenha claro que o reconhecimento formal de direitos não porá fim a discriminação, em vários de seus textos aponta que isso não significa que a melhora parcial nesse sistema não seja possível, e defende a participação das comunistas nesses processos e na luta por direitos políticos.

Em Kollontai, encontramos uma proposta para a solidariedade baseada no interesse comum. Não na bondade ou na empatia, mas na constatação de que se melhoramos a situação de uma parte desfavorecida da classe, melhoramos também a do conjunto da classe. Aceitar essa máxima como ponto de partida para nossa ação política hoje nos coloca em uma melhor posição para enfrentar muitos dos debates acerca da ampliação de direitos, a suposta contradição de interesses e a aliança entre setores oprimidos. E junto ao que foi desenvolvido posteriormente sobre o lugar que o gênero ocupa no funcionamento do capitalismo contemporâneo, (16) nos permite compreender que o potencial transformador dos movimentos de mulheres não se deve a nenhuma característica essencial nem ahistórica, mas a nossa posição de setor estratégico da classe.

Kollontai escreve que o movimento feminino proletário é uma parte orgânica do movimento dos trabalhadores e trabalhadoras. Em 2021 podemos dizer não só que isso ainda é verdade, mas também que o movimento feminista constitui um pilar central dos processos de recomposição de classe. Qualquer outra interpretação não corresponde a uma análise rigorosa das dinâmicas capitalistas e das relações sociais. Abordar Kollontai de uma forma crítica e sem preconceitos pode nos dar ferramentas para pensar como impulsionar a (re)construção do tão necessário sujeito de classe, mas também imaginar formas distintas de organizar a vida. A defesa da vida frente à destruição capitalista, a convicção de que uma vida boa e bela tem necessariamente que ser possível, permeia todo o pensamento emancipador desde Marx e Engels e é parte essencial da potência comunista. Em Kollontai encontramos, além disso, uma proposta de bases morais e materiais para a completa reorganização social.

Em nome da igualdade, da liberdade e do amor, fazemos um chamado a todas as mulheres trabalhadoras, a todos os homens trabalhadores, mulheres camponesas e homens camponeses, para que resolutamente e cheios de fé se entreguem ao trabalho de reconstrução da sociedade humana para fazê-la mais perfeita, mais justa e mais capaz de assegurar ao indivíduo a felicidade a que tem direito. (17)

Boa leitura.


(1) O artigo “Los hijos de los obreros” é uma amostra assombrosa do que se podia encontrar em uma sala de espera de um consultório médico, e pode ser acessado em castelhano em: Larisa Reisner, Hamburgo en las barricadas y otros textos, Dirección Única, 2017.

(2) No caso das mulheres que não realizavam trabalho físico, mas intelectual, a licença era reduzida de 16 para 12 semanas.

(3) A autora se refere ao contexto do Estado espanhol. (N. T.)

(4) “É claro que, no momento, sofremos na Rússia mais com a escassez do que com o excesso de mão de obra. […] E por que podemos legalizar o aborto nessa situação? Porque o proletariado não apoia nenhuma política de puri- tanismo e hipocrisia ”. (A. Kollontai, “A ditadura do proletariado: a mudança revolucionária da vida cotidiana”, 1921).

(5) Kollontai, “A ditadura do proletariado: a mudança revolucionária da vida cotidiana”, 1921

(6) Kollontai conta, em suas primeiras memórias, que os brancos espalharam o boato de que era parte das políticas promovidas pelo Escritório Central de Maternidade e Proteção à Infância obrigar meninas de 12 e 13 anos a engra- vidar. Bastante parecido com as fake news contemporâneas.

(7) Conceito desenvolvido em: Amaia Pérez Orozoco, Subversión feminista de la economía, Traficantes de Sueños, 2014.

(8) A. Kollontai, “As causas do ‘problema da mulher’”, 1921.

(9) Carta a Inessa Armand datada de 17 de janeiro de 1915 em Berna. Publicada pela primeira vez em 1939 na revista Bolshevik, 13.

(10) Clara Zetkin, Memórias sobre Lenin, Editorial do Estado para a Literatura Política, 1955. In: Vladimir Ilich Lenin: A emancipação da mulher, Progre- so, 1971.

(11) Em uma inversão dos discursos degeneracionistas clássicos, no final do sé- culo XIX passou a ser possível encontrar literatura operária que caracteriza- va as práticas burguesas de degeneradas e apresentava a classe trabalhadora organizada como responsável pela limpeza moral e social. As campanhas contra o consumo de álcool empreendidas pelo anarquismo ou a famosa “deportação” em trens lacrados de mulheres que faziam parte da Coluna Durruti são bons exemplos. Os principais dirigentes comunistas, Kollontai incluída, empregavam um vocabulário similar e costumavam fazer uma di- ferenciação entre os estímulos sexuais fortificantes ou revitalizadores, e os excessivos e extenuantes.

(12) A. Kollontai, “Relações sexuais e luta de classes”, 1921.

(13) La política de todes: feminismo, teoría queer y marxismo en la intersección, Bellaterra, 2020.

(14) A. Kollontai, “Abram caminho ao Eros alado! Carta à juventude operá- ria”, 1923.

(15) A. Kollontai, “Relações sexuais e luta de classes”, 1921.

(16) Possivelmente a melhor definição de “classe social” formulada até o momen- to seja a que encontramos em: E. P. Thompson, A sociedade inglesa do século XVIII: luta de classes sem classe?, 1978.

(17) Especialmente relevante por sua capacidade tanto criadora como de síntese é: Nancy Fraser, Los talleres ocultos del capital, Traficantes de Sueños, 2020.

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2 comentários para "Kollontai, 150: a teórica do amor sem posse"

  1. Marisa G Barbosa disse:

    Onde encontro as obras de Kollontai para comprar?

  2. Rachel Moreno disse:

    Excelente contribuição e lembrança oportuna!

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