Evo venceu. E agora?

Líder boliviano já enfrenta dura oposição: sem provas, direita aponta fraude e tentará de tudo para minar governo. Para continuar seu projeto, será preciso recuperar confiança nas cidades e revolucionar Saúde e Justiça, suas grandes dívidas

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Por Katu Arkonada, em La Jornada | Tradução: Rôney Rodrigues | Imagem: Reuters/Ueslei Marcelino

Como é possível que no país com o maior crescimento da região se coloque em dúvida a continuidade do presidente responsável por sua estabilidade política e econômica?

Para responder a essa pergunta, vamos tentar ensaiar não uma, mas várias respostas.

Processo eleitoral. Ainda que se tenha explicado várias vezes, desde o domingo das eleições, o fato é que não houve nenhuma manipulação dos resultados. Nenhum líder do partido de oposição na Bolívia apresentou uma só prova de fraude, e as atas digitalizadas de cada mesa eleitoral, onde havia fiscalização de cada partido político, podem ser consultar na página do Órgão Eleitoral Plurinacional (OEP).

O que houve, sim, foi uma má gestão dos resultados. Em primeiro lugar, por parte do OEP, que paralisou a Transmissão de Resultados Eleitorais Preliminares (TREP) em 83% quando começou a carregar as atas da computação oficial de resultados.

Mas também houve uma péssima gestão na comunicação do governo boliviano quando a oposição interna e externa começou a questionar os resultados: não soube explicar de forma clara e certeira o que estava acontecendo, o que contribuiu para preparar o caminho para que a OEA e as transnacionais de informação (com Jorge Ramos [jornalista da Univisión] encabeçando-a) — que não questionaram o governo de Piñera de impor uma ditadura violenta e sangrenta no Chile — semearem a dúvida na opinião pública internacional. Essa má gestão na comunicação é só o ponto culminante de 2019 e, especialmente, de uma campanha eleitoral que não conseguiu comunicar os motivos para uma reeleição de Evo.

Mesa e Chi. Esses fatores também são importantes para entender os resultados. A princípio, parece difícil compreender como o vice-presidente de Gonzalo Sánchez de Lozada, o mandatário mais apagado da história, um candidato sem estrutura política, tenha alcançado em 2019 cerca de 36% dos votos, quase forçando um segundo turno que, seguramente, o teria convertido em presidente. Também parece difícil entender como Chi Hyun Chung, um pastor evangélico desconhecido, com um discurso homofóbico e misógino, tenha ficado em terceiro lugar, alcançando mais de meio milhão de votos (8,78%).

A resposta é mais simples do que parece: uma parte importante da cidadania não votou na Mesa, mas contra Evo, mesmo que o candidato opositor não tenha entusiasmado. Por sua vez, Chi acumulou o voto de uma base mais reacionária, o dobro da porcentagem obtida por Óscar Ortiz, representante da direita de Santa Cruz, que ficou em quarto lugar.

É importante mencionar que a soma de votos da Mesa, centro-direita, Ortiz, direita e Chi, ultradireita, é de 49,53%. Se somamos o resto das opções eleitorais de direita que tiveram porcentagem pequena, a soma supera amplamente a maioria dos votos.

Podemos concluir, portanto, que Evo Morales ganhou as eleições no primeiro turno mais por deméritos da oposição — que não foi capaz de se unir, construir um candidato e propor uma alternativa eleitoral sólida — que por méritos do oficialismo. De fato, é necessário refletir sobre a perda progressiva do voto fora do núcleo duro do MAS-IPSP, votação que em 2005 foi de 51%, em 2009 de 64% e em 2014 de 61%, baixando para 49% no referendo de 2016 e 46% em 2019.

Fator Evo. É claro que Evo Morales continua sendo um líder que interpela ampla maioria social na Bolívia, mas tem perdido a confiança das classes médias urbanas, em um país que, paradoxalmente, se transforma de rural para urbano na medida em que quase três milhões de pessoas foram retiradas da pobreza (a extrema pobreza passou de 38,4% em 2005 para menos de 15% atualmente). Esse processo formou milhões de consumidores despolitizados (ou melhor, politizados pelos meios de comunicação) que estiveram a ponto de se transformarem em carrascos do processo de mudanças na Bolívia, de maneira similar ao que aconteceu na Argentina em 2015.

2019-2025. Em 2025, A Bolívia comemorará 200 anos da independência republicana liderada pelo libertador Simón Bolívar, que dá nome ao país. Essa segunda e definitiva independência, e provavelmente o fim de um ciclo constituinte que começou antes da vitória de Evo em 2005 (lá pelos anos 1990, com as marchas indígenas em defesa da terra, do território e pela soberania sobre os recursos naturais), que se apresenta como o momento mais complicado para um governo que se reinicia em janeiro de 2020 com o nível de deslegitimação mais elevado em seus 14 anos de história.

E se já em fevereiro de 2016 a cidadania não entendeu (não lhe foi explicada, na verdade) a necessidade de um referendo, é preciso agora certa pedagogia sobre a necessidade de terminar o que começou. Sobre a necessidade de aprofundar o processo de transformação e acelerar a revolução na saúde e na justiça, grandes pendencias do processo. Mesmo assim, só uma verdadeira revolução cultural, que impulsione a formação política e a memória histórica, serão garantia de defesa do que já foi conquistado. Mas, para isso, e como as pessoas não comem ideologia, é necessário cuidar mais do que nunca da estabilidade econômica e da redistribuição da riqueza.

Tudo isso diante do canto de sereia de quem quer guardar as bandeiras e construir um processo light para as classes médias clássicas, apostando em alavancar o próprio núcleo duro, aquele que, quando as coisas ficam complicadas, nunca te abandona.

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