Estado planejador: o singular caso chinês

Em poucas décadas, país superou humilhação, erradicou miséria e virou potência. Fugiu dos dogmas neoliberais e do “socialismo real”. Pôs Estado no centro da vida social. Enfrenta múltiplas contradições — mas não entrega seu futuro aos mercados

Julho de 2021: jovens chineses participam as comemorações do centenário de fundação do Partido Comunista
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MAIS:
Esta artigo integra o livro A volta do Estado planejador: neoliberalismo em xeque. Organizado por Gilberto Maringoni, ele tem prefácio de Luiz Gonzaga Belluzzo, e reúne textos de 21 grandes autores*. Acaba de ser lançado pela Editora Contracorrente.

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Ao longo dos últimos 40 anos, a China eliminou a pobreza extrema, rompeu com a heterogeneidade estrutural, baniu com qualquer possibilidade de se tornar uma economia dependente ou de enclave, e subiu efetivamente nas cadeias globais de valor, representando o principal desafio econômico e estratégico aos Estados Unidos. Por de trás disso, há um projeto autônomo de desenvolvimento nacional encabeçado pelo Partido Comunista Chinês e que levou ao surgimento de um Estado planejador, regulador, provedor, investidor, empreendedor e vigilante. Historicamente, o desenvolvimento sob o capitalismo jamais prescinde destas funções do Estado nas suas trajetórias de rápida ascensão e mudança estrutural continuada. As condições para a emergência desta forma-Estado foram historicamente construídas através de lutas de classes e de lutas anti-imperialistas, ambas profundamente marcadas pelo nacionalismo.

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Nenhuma outra grande economia do mundo exerce controle de capitais tão intensos como a China o faz. Nenhum outro grande país além da China é sede de tantas empresas estatais. Nenhuma outra economia mantém o sistema financeiro majoritariamente estatal e com enorme centralidade para seus três bancos de desenvolvimento. Nenhum outro grande país dá tanta importância aos planos quinquenais e a diversos outros planos setoriais de desenvolvimento. Nenhuma outra economia do mundo cresceu tanto nos últimos 40 anos quanto a China.

O Estado na China planeja, regula, estabiliza, investe, empreende, provê e vigia. Ele exerce sua presença de maneira massiva, e mesmo a literatura econômica mais ortodoxa se vê obrigada a discutir seu insistente “retorno”1 – ainda que ele nunca tenha nem sequer ensaiado se retirar. Essa forma-Estado poderosa emergiu na China nos anos 1980 encrustada em uma revolução socialista (1949) e amalgamada em um nacionalismo que fora fermentado por cem anos durante o período de humilhação e de esfacelamento do tecido social que caracterizou o choque com o imperialismo (da primeira Guerra do Ópio, em 1839, até a revolução). Isso significa que quando falamos em Estado na China, falamos na verdade do Partido Comunista Chinês. E que quando falamos em desenvolvimento, falamos de uma visão da modernização com um sentido ontológico de Estado-Nação frente a um sistema internacional percebido como uma ameaça permanente.

Esta forma-Estado que me dedico a olhar aqui emerge, nos anos 1980, em paralelo com a hegemonia do padrão monetário do dólar flexível, com a financeirização do restante do mundo, e com o surgimento das cadeias globais de valor, inicialmente comandadas por empresas estadunidenses, europeias e japonesas. A China se inseriu nestas cadeias globais com um projeto de desenvolvimento autônomo e, ao mesmo tempo, com uma financeirização particular da sua economia. Emergiu daí um capitalismo de Estado com características chinesas que é hoje o maior desafio estratégico à hegemonia dos Estados Unidos desde o final da Guerra Fria.

Como pôde a China se desenvolver tão rápido e escapar das armadilhas que caracterizam o subdesenvolvimento de outros grandes países, seja Brasil, Índia, África do Sul ou Rússia? Como o país erradicou a pobreza extrema em 2020 e, ao mesmo tempo, desafiou tecnologicamente os EUA, a Europa e o Japão em vários segmentos de fronteira, desde o 5G e inteligência artificial passando pelas energias renováveis e pelos trens de alta velocidade? Vou explorar nas seções seguintes as várias funções que o Estado ocupou e continua ocupando na trajetória de desenvolvimento chinesa, desde o Estado planejador e regulador até o Estado investidor, empreendedor e vigilante. E termino me perguntando: quais os maiores desafios colocados a esta forma-Estado e a esta trajetória de desenvolvimento neste pós-pandemia?

Estado na China nos anos 1980: rompendo com a heterogeneidade estrutural

No princípio era o campo, e é por lá que as reformas começaram na China. A importância das reformas nas zonas rurais e o tratamento dado à questão agrária não podem ser subestimados na trajetória de desenvolvimento chinesa. Afinal, ao estabelecer um regime de uso da terra descentralizado, ao oferecer estímulos corretos de preços, ao fazer a produtividade agrícola explodir, e ao promover a industrialização rural, o Estado na China foi responsável pela mais rápida redução na pobreza na história da humanidade. Foram 400 milhões de pobres a menos no curtíssimo espaço de seis anos (1979-1985). Ao começar as transformações estruturais pela base da pirâmide social, o Estado criou um tecido socioeconômico que permitiu a penetração dos impulsos dinâmicos da industrialização pelo país inteiro.

A primeira reforma rural teve início em 1978 e implicou na criação de um regime de uso da terra descentralizado e baseado em pequenos lotes, no qual a propriedade é, até hoje, dos governos locais e o uso da terra é dado às famílias via contratos de cerca de 30 anos. Chamado de Sistema de Responsabilidade Familiar, este regime de uso da terra implicou uma estrutura descentralizada de pequenos lotes. Mesmo com o relativo aumento no tamanho dos lotes na última década em função da redução da população rural e da penetração do agronegócio no campo, o sistema continua vigorando e a terra continua sendo desconcentrada na China. O caso chinês, portanto, desafia o discurso de modernização conservadora de que somente a agricultura em larga escala é eficiente. Sob esse sistema, o país se tornou autossuficiente em arroz, milho e trigo, e a produtividade total dos fatores na agricultura cresceu a uma média de 2,86% ao ano, entre 1978 e 2013, o que representa mais de três vezes a média global de 0,95% e acima da média brasileira2.

A segunda reforma rural veio por meio da intervenção do Estado nos preços agrícolas. Os termos de troca favoráveis aos produtos agrícolas e os programas massivos de compras públicas, que asseguravam que todos os grãos produzidos seriam comprados pelo governo, deram forte impulso ao crescimento da renda dos camponeses, contribuindo para diminuir o gap urbano-rural3. Em conjunto com a reforma da terra, os estímulos de preço e as compras públicas promoveram uma explosão de produtividade agrícola nos anos 1980 em um país que estava muito próximo à insegurança alimentar. Conforme resume Oi (2008), não foram os livres mercados preconizados pelo Consenso de Washington que garantiram o impulso extraordinário na produção agrícola nos anos iniciais da reforma, mas a regulação estatal (compras públicas) que garantia a compra de todos os grãos produzidos a um preço alto.

A terceira grande reforma no campo deu-se por meio da promoção da industrialização rural via empresas coletivas de vilas e municípios – Town-Village Enterprises (TVEs). A industrialização rural ganhou impulso com a oferta de crédito abundante oferecida pelos bancos comerciais públicos e cooperativas rurais de crédito e por conta de um mercado doméstico crescente e até então protegido da concorrência estrangeira. Durante a década de 1980, 40% do capital necessário para a abertura de uma nova TVE veio do setor financeiro público4. As TVEs especializaram-se na produção de bens de consumo que seriam consumidos pela classe camponesa em ascensão e rapidamente tornaram-se fornecedoras de insumos para a indústria exportadora e mais pujante da costa.

A grande inovação das TVEs do ponto de vista do desenvolvimento esteve na sua capacidade de industrializar as zonas rurais. Graças a isso, elas reduziram a heterogeneidade estrutural de saída ao transformar a industrialização num fenômeno massivo, descentralizado e efetivamente nacional. É claro que as taxas de industrialização serão muito mais rápidas nas cidades costeiras e nas zonas econômicas especiais tomadas de multinacionais a partir dos anos 1990 (a seguir). Mas as TVEs, em conjunto com a diminuição da pobreza no campo, fizeram com que os impulsos dinâmicos da industrialização da costa efetivamente se endogenizassem. Isso é um dos elementos explicativos de por que a China não se transformou numa economia de enclave ou dependente mesmo com a penetração massiva do investimento estrangeiro na costa nos anos 1990.

Em resumo, o sucesso da trajetória de desenvolvimento da China, em contraste com grandes países como a Índia, Brasil ou África do Sul do ponto de vista do tratamento da questão agrária, é marcante ao ter eliminado a possibilidade de uma massa de população rural sem-terra ou miserável no campo. A distribuição igualitária e universal da terra entre a população rural tornou-se a principal forma de proteção social e substituiu o antigo sistema de comunas agrícolas vigente durante o maoísmo. Ao mesmo tempo, a industrialização rural criou uma malha de produção industrial intensiva em mão de obra em todos os cantos do país, absorvendo trabalhadores que saíam da agricultura e endogenizando os impulsos dinâmicos da industrialização. As reformas deram certo do ponto de vista da trajetória de desenvolvimento porque elas começaram por baixo na pirâmide social chinesa.

Estado na China nos anos 1990: disciplinando o IED e posicionando as estatais

Se os anos 1980 explicam de que maneira a China lança as bases para o rompimento com a heterogeneidade estrutural, a década seguinte é emblemática ao explicitar as estratégias do Partido Comunista Chinês para evitar que o país se transformasse em uma economia de enclave. Afinal, com a abertura inicial para a entrada de investimento estrangeiro direto (IED) em algumas poucas cidades costeiras, havia o enorme risco de criação de zonas de mera montagem de produtos feitos por multinacionais que se aproveitassem da mão de obra barata chinesa e extraíssem excedente de maneira totalmente descolada do restante da economia. No entanto, muito ao contrário, a China se transformou em um caso emblemático de uso do IED como ferramenta de catch-up e emparelhamento tecnológico com países centrais. Como isso foi possível?

Ao contrário do argumento da literatura ortodoxa, o Estado chinês não se abriu ao capital estrangeiro e não aceitou o receituário liberal de que a simples desregulamentação para atrair IED iria contribuir para o seu crescimento econômico. Ao contrário, o Estado chinês empenhou-se sistematicamente em disciplinar esse capital. Dentre as várias obrigações impostas ao IED nas décadas de 1990 e 2000 estiveram: obrigação para ter parceiro local (via formação de joint-venture com empresa estatal chinesa), acordos de transferência de tecnologia, regras de conteúdo local, definição geográfica da localização das fábricas e quotas para exportação e geração de empregos5.

A obrigatoriedade para ter parceiro local estava prevista em leis específicas sobre a necessidade de regulação do IED e se dava via um sistema de aprovação administrativa envolvendo diferentes esferas do governo. Quem definia qual seria a empresa estatal parceira era, invariavelmente, alguma instância (local ou central) do próprio governo chinês. A exigência para formação de joint-venture foi flexibilizada na virada do século na maioria dos setores, mas continua sendo comum a exigência de que a firma 100% estrangeira estabeleça um centro de treinamento, P&D ou laboratório em uma das universidades chinesas ou institutos de pesquisa. Além disso, o Catálogo para Guiar Investimentos Estrangeiros, um documento publicado periodicamente e que determina quais indústrias têm IED “estimulado”, “restringido” ou “proibido”, continua regulando o capital externo de perto. Os investidores que quiserem gozar dos diferentes benefícios oferecidos às indústrias “estimuladas” (atualmente apenas de alta tecnologia e consideradas estratégicas), como deduções tarifárias e vantagens fiscais, devem se enquadrar nas exigências.

Também a previsão de transferência tecnológica deveria constar formalmente nos contratos de entrada de IED. A absorção implicou não apenas a capacidade do país de adquirir tecnologia estrangeira, mas essencialmente de difundi-la internamente, utilizando-a como base para criação de novas tecnologias e processos. Por fim, a localização geográfica das novas fábricas foi um instrumento muito usado para promoção do desenvolvimento regional chinês. Há muitos casos estilizados de multinacionais que foram “convidadas” a se instalar em regiões remotas da China acompanhando o plano de desenvolvimento regional do momento6.

Mas o capital externo foi apenas uma das vertentes da dinâmica de acumulação acelerada da China na década de 1990. Uma segunda vertente continua até hoje centrada no papel das empresas estatais, as quais se mantiveram estrategicamente posicionadas nos nódulos da acumulação de capital. A partir de 1997, uma fatia importante das empresas estatais e coletivas foi privatizada, abrindo espaço para o surgimento de uma burguesia nacional encrustada nas estruturas do Partido7. Ao mesmo tempo em que foram reduzidas em número e em escopo de atuação, livrando-se das suas obrigações de seguridade social que vinham do maoísmo8, as empresas estatais se concentraram nos setores-chave que afetam tanto a taxa quanto a direção do investimento. Esses são os casos dos setores de siderurgia, petroquímica, energia, ferrovia, telecomunicações e sistema bancário9.

As empresas estatais de larga escala e os bancos estatais têm sido utilizados como principais agentes econômicos que moldam a forma e o ritmo da estratégia de acumulação e de inovação tecnológica na China. As mudanças estruturais são necessariamente processos complexos e com múltiplos determinantes, incluindo regimes de produtividade, demanda e um arcabouço institucional subjacente. As empresas estatais chinesas estão em uma posição-chave para direcionar as diretrizes do Estado sobre esses múltiplos determinantes, especialmente porque estão localizadas nos eixos críticos de acumulação de capital, como as indústrias de grande escala e de capital intensivo. Nesse sentido, a propriedade pública segue sendo o eixo essencial para a acumulação de capital na China.

Estado na China nos anos 2000: endogenizando o crescimento via investimento

É nos anos 2000 que o “Estado investidor” 10 emerge na China em toda sua potência. Estamos aqui falando da materialização do crescimento puxado pelo investimento (investment-led growth), com a taxa média dos investimentos mantendo-se acima de 40% do PIB em toda a década11. O papel do Estado foi fundamental enquanto formador de capital e investidor em infraestrutura, garantindo a elevação da capacidade produtiva da economia e o desenvolvimento alargado nacionalmente via a construção de ferrovias, portos, oleodutos, linhas de telecomunicações, geração e transmissão de energia, escolas, hospitais e saneamento básico. É a fase da China canteiro de obras, que visualmente impactava qualquer visitante em função do expressivo número de empreendimentos. O Estado investidor se materializou tanto na sua forma schumpeteriana, preparando a próxima revolução tecnológica, quanto em termos keynesianos, dado o efeito multiplicador desse tipo de gasto público sobre a renda, o emprego e as vendas das empresas12.

O surgimento do “Estado investidor” só foi possível porque junto dele o “Estado regulador” manteve o sistema financeiro majoritariamente estatal sob seu comando. Isso levou à mobilização e canalização de volumes massivos de recursos domésticos através do sistema financeiro para grandes projetos de infraestrutura e urbanização. Além dos bancos comerciais, as necessidades de financiamento de longo prazo também foram atendidas por três bancos de desenvolvimento, obviamente sob controle do Conselho de Estado. Por fim, os extensos controles de capitais colocam restrições principalmente para o investimento transfronteiriço em carteira, financiamento de dívidas e investimento externo direto. Por exemplo, as empresas não-financeiras nacionais estão proibidas de conceder empréstimos externos. Nos mercados de ações, investidores estrangeiros não podem comprar ações denominadas em renminbi, títulos ou outros instrumentos de mercado, a menos que tenham uma quota de Investidor Institucional Estrangeiro Qualificado (QFII). Também há controles pesados em certas fases das transações de câmbio, tais como restrições à remessa e repatriação de fundos transnacionais e troca de moeda estrangeira por moeda chinesa relacionada a transações da conta de capital. Além disso, o investimento externo direto por entidades nacionais precisa ser aprovado pela Administração Estatal de Divisas, pelo Ministério das Finanças e pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma.

A despeito da flexibilização de parte das regulações, a China continua sendo o mercado financeiro mais regulado dentre todas as grandes economias do mundo. Da mesma forma, apesar da disseminação de práticas financeiras “na sombra” (shadow banking), por meio das quais muitos mecanismos de financiamento e especulação doméstica não-regulados foram criados, o governo tenta periodicamente assegurar seu controle e impedir um processo de desregulamentação financeira. De fato, uma característica essencial que distingue o regime chinês de acumulação de outras economias centrais ou periféricas hoje é sua relativa autonomia em relação ao processo de financeirização sob a hegemonia do dólar flexível em função da predominância estatal no sistema financeiro e dos controles de capitais13.

A década de 2000 também ganha uma outra marca de uma gestão macroeconômica keynesiana quando observamos os esforços do governo chinês para elevar a massa de salários da economia. Entre 2004 e 2009, o salário médio real da economia chinesa cresceu 81%, e no acumulado de 2004 a 2018 esse crescimento chega a 277%14. A chamada “sociedade harmoniosa”, marca da gestão do ex-presidente Hu Jintao (2003-2013), foi uma estratégia de desenvolvimento abrangente, que buscava fazer convergir a proteção social, a mediação de conflitos capital-trabalho, e a mudança para um padrão de acumulação centrado na demanda efetiva doméstica via políticas públicas. Essas políticas incluíam: (i) a criação de sistemas nacionais de seguridade social e serviços públicos essenciais gratuitos (no caso da educação básica) ou com contribuições compartilhadas (como no caso da saúde e previdência); (ii) os programas de desenvolvimento regional para as zonas mais pobres, notadamente oeste, nordeste e centro; e (iii) as intervenções no mercado de trabalho para garantir aumentos consistentes dos salários, sobretudo via política de salário mínimo e legislações.

Isso tudo veio acompanhado da criação de um Estado de Bem-Estar Social (EBS) de cunho produtivista15, por meio do qual é oferecido um colchão mínimo de proteção social essencialmente ancorado no lugar que cada um ocupa no mercado de trabalho. Em termos práticos, isso implicou, por exemplo, a criação de três seguros-saúde dependendo da posição do cidadão no mercado de trabalho – se trabalhador urbano formal ou informal ou se trabalhador rural. A desigualdade dos programas implica um universo de atendimento de saúde radicalmente distinto para populações com diferentes registros de moradia e distintas posições no mercado de trabalho. Os trabalhadores formais recebem os melhores benefícios e atendimentos, ao passo que os trabalhadores informais e rurais têm menores reembolsos e atendimentos mais difíceis e demorados. Em todos os casos, os atendimentos são pagos, e cresce rapidamente o número de hospitais privados no país. Também na educação, a desmercantilização é apenas parcial, e a pré-escola e a universidade se consolidaram como espaços pagos, além de o ensino médio assistir a uma disseminação de instrumentos paralelos privados ou de pagamento de taxas extras para facilitar o acesso às escolas de ponta.

Não há, portanto, no Estado de Bem-Estar Social chinês, um princípio normativo de universalidade ou gratuidade nos serviços oferecidos e que esteja ancorado em valores de solidariedade ou justiça social como os que deram origem aos EBS em países de tradição social-democrata (sob pressão de vizinhos comunistas). A origem normativa do contrato social chinês é confucionista: um mínimo de provimento e proteção social deve ser oferecido para eliminar o conflito social e garantir a harmonia. Mas a estratificação e a segmentação refletem a posição hierárquica de cada um na sociedade. É a este sistema de proteção social estratificado que damos o nome de Estado de Bem-Estar Social produtivista16.

Estado na China nos anos 2010: promovendo mudança estrutural via inovação

Fica cada vez mais claro que a China não é só um caso de desenvolvimentismo asiático como Japão ou Coréia do Sul no pós-II Guerra, conforme resumiu Barry Naughton (2021) em seu texto mais recente. Primeiro porque o volume de investimento estatal é muito maior do que nos dois casos anteriores. E em segundo lugar, porque o objetivo atual do Partido Comunista Chinês não é simplesmente fazer catch-up e equiparar o país à performance das indústrias chaves dos países centrais, mas assumir o primeiro lugar em setores nos quais a liderança tecnológica não é clara e que fazem parte da atual revolução tecnológica.

A China caminhou rápido para figurar entre os líderes em segmentos como trens de alta velocidade, 5G, energias renováveis, carros elétricos, geração e transmissão de energia elétrica de ultra-alta voltagem, inteligência artificial e tantos outros. Essa liderança (ou melhor dizendo, disputa pela liderança com outros países centrais) só foi possível graças ao surgimento de um “Estado empreendedor”, nos termos da professora Mariana Mazzucato (2014). Isso significa dizer um investimento massivo do Estado para que inovações radicais aconteçam.

O sistema nacional de inovação (SNI) chinês se consolidou de maneira robusta e sistêmica, com enorme coordenação entre as políticas industriais, comerciais, de investimento, macroeconômicas (câmbio, juros e fiscal) e com os planos nacionais de desenvolvimento. Tal SNI abarca desde mecanismos de financiamento e presença de empresas estatais em setores de fronteira (nos quais o investimento privado é tímido em função dos riscos e da incerteza) até uso da demanda doméstica para gerar tecnologia endógena, mudança de padrões técnicos para favorecer empresas nacionais, parcerias universidades-empresas e articulação do complexo produtivo militar com o civil.

Desde 2016, quando a “Estratégia de Desenvolvimento Puxada pelas Inovações” (Innovation-Driven Development Strategy, IDDS) veio à tona, uma nova onda de políticas industriais e de ciência e tecnologia surgiu na China, agora focada nos setores de fronteira, notadamente vinculados à tríade telecomunicações, gerenciamento massivo de dados e inteligência artificial, bem como às suas aplicações na chamada Indústria 4.0, cidades inteligentes e veículos militares autoguiados. A IDDS representa uma estratégia guarda-chuva de longo prazo, com metas para até 2050, e abarcando uma dezena de planos setoriais ou mais específicos como o “Made in China 2025”, “Military-Civilian Fusion Plan”, “Artificial Intelligence Plan”, dentre outros. Na sua essência, uma ampla gama de instrumentos de financiamento de longo prazo, incluindo fundos governamentais de orientação industrial, vantagens fiscais para P&D, mudanças regulatórias e proteção do mercado doméstico. A percepção das lideranças chinesas é de que uma nova rodada de revolução global tecnológica está em curso, com mudanças radicais nas esferas produtiva, de transportes e militar. “A mudança na força relativa das nações implica a oportunidade de ultrapassar, bem como no perigo de ficar para trás”, resumiu Naughton (2021, p. 72).

Como em ondas anteriores, esta fase atual do desenvolvimento tecnológico chinês está sendo também fortemente puxada pelas compras governamentais e pela demanda doméstica. O Estado vigilante depende de infraestruturas voltadas ao controle social de alta tecnologia, como é característica cada vez mais revelada em países desenvolvidos como Estados Unidos e Reino Unido – além do seu maciço uso privado, via vigilância do consumo nas redes sociais, nas operações de compra e crédito e nos próprios aparelhos celulares17.

Conforme detalha Majerowicz (no prelo), no caso da China, os processos mais recentes de proletarização e privatização também engendraram mudanças rápidas nas necessidades de monitoramento e vigilância do Estado capitalista, levando ao desenvolvimento de infraestruturas high-tech de controle social nas quais a inteligência artificial desempenha papel central. Estamos falando desde um aparato de vigilância difuso de câmaras e sensores voltados ao monitoramento do espaço público (oferecendo uma massa expressiva de dados para rápido avanço da inteligência artificial) até sistemas integrados que monitoram e premiam o “bom” comportamento dos cidadãos, como no caso do Social Credit Score18. Tudo isso, até aqui, feito em nome da harmonia social, do aumento da confiabilidade dos espaços públicos e com baixa oposição da sociedade civil.

Os desafios do pós-pandemia

Ao longo dos últimos 40 anos, China eliminou a pobreza extrema, rompeu com a heterogeneidade estrutural, baniu com qualquer possibilidade de se tornar uma economia dependente ou de enclave, e subiu efetivamente nas cadeias globais de valor, representando o principal desafio econômico e estratégico aos Estados Unidos. Por de trás disso, há um projeto autônomo de desenvolvimento nacional encabeçado pelo Partido Comunista Chinês e que levou no surgimento de um Estado planejador, regulador, provedor, investidor, empreendedor e vigilante. Historicamente, o desenvolvimento sob o capitalismo jamais prescinde destas funções do Estado nas suas trajetórias de rápida ascensão e mudança estrutural continuada.

As condições para a emergência desta forma-Estado foram historicamente construídas através de lutas de classes e de lutas anti-imperialistas, ambas profundamente marcadas pelo nacionalismo. O estágio atual desta trajetória histórica, continuamente marcada pelo mesmo nacionalismo, está vinculada à preparação para o embate tecnológico e estratégico com os Estados Unidos. Neste sentido, as pressões que esta forma-Estado enfrenta são grandes. Parte internas, por parte da burguesia nacional em busca de fronteiras mais rápidas (e financeirizadas) de acumulação, mas fundamentalmente externas.

Poucas semanas depois da sua posse, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, promoveu expressivos exercícios militares com dois grupos de porta-aviões no mar do Sul da China, que Pequim considera sua região. E foi enfático falando para seu público interno: “Eles [chineses] estão investindo bilhões de dólares para lidar com uma série de questões ligadas a transporte, ambiente e outras coisas […]. Se não nos mexermos, eles vão nos jantar”19.

Não há dúvidas: as funções que o Estado chinês irá assumir daqui em diante serão fundamentalmente preparatórias para este embate.


*Adalberto Cardoso; Aloizio Mercadante; André Lara Resende; André Roncaglia de Carvalho; Antonio Corrêa de Lacerda; David Decccache; Dennis de Oliveira, Franklin Martins; Gilberto Maringoni; Isabella Nogueira; Ivan Colangelo Salomão; João Sicsú; José Luís Fiori; José Sergio Gabrielli de Azevedo; Juliane Furno; Juliano Medeiros; Leda Maria Paulani; Mário Bernardini; Paulo Gala ; Paulo Kliass; Pedro Cezar Dutra Fonseca; Renata Lins; Rosa Maria Marques; Walter Sorrentino; William Nozaki. Orelha: Celso Amorim

Bibliografia

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1 O título do último livro de Nicholas Lardy (2019) é caricatural: The State Strikes Back (O Estado Contra-Ataca).

2 Sheng, Song, Yi, 2017.

3 Nogueira, Guimarães, Braga, 2019.

4 Huang, 2008.

5 Nogueira, 2015; Schutte, Reis, 2020.

6 Este foi o caso da Embraer, que se instalou em Harbin, uma cidade fria no extremo nordeste da China, não muito distante da fronteira com a região russa da Sibéria, durante o auge do “Go Northeast”, um programa de desenvolvimento desta região chinesa.

7 Nogueira, 2018; Nogueira, Qi, 2019.

8 Nogueira, Bacil, Guimarães, 2020.

9 Lo, Wu, 2014.

10 Ver o livro mais recente de Laura Carvalho (2020) para uma discussão sobre o Estado investidor.

11 Medeiros (2013) desconstrói o argumento de que a China seria um caso de crescimento puxado pelas exportações como outros países do leste asiático e demonstra o efeito central do investimento na macroeconomia chinesa determinando tanto o ciclo quanto a tendência de crescimento de longo prazo. Desde a crise de 2008, esse argumento tem se tornado ainda mais verdadeiro. Em 2006, as exportações de bens e serviços atingiram o pico de 36% do PIB chinês, caindo sistematicamente desde então para 18% do PIB em 2019 (The World Bank Data Online).

12 Carvalho (2020).

13 Ver Nogueira, Guimarães e Braga (2018) para uma discussão sobre a financeirização com características chinesas.

14 Braga e Nogueira (2020).

15 Nogueira, Bacil, Guimarães, 2020.

16 Idem.

17 Zuboff, 2019.

18 Idem.

19 “Em primeira conversa com Xi, Biden toca em pontos de divergência com a China”. Folha de S.Paulo, 11/02/2021.

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3 comentários para "Estado planejador: o singular caso chinês"

  1. Willian Adeodato disse:

    Parabéns pela matéria. Precisamos cada vez mais de textos como esse, para se contrapor as mentalidades que acreditam que não é possível um Estado de Bem Estar Social. Se for para ver o meu irmão na miséria eu não quero a riqueza.

  2. José Mario Ferraz disse:

    Que me perdoem os autores da matéria. Mas não se pode produzir riqueza sem explorar quem trabalha. Por pensar assim é que é difícil entender como pode a China erradicar pobreza e construir o império chinês. A imprensa mostrou a extrema pobreza dos trabalhadores que fazem o esplendor dos Emirados Árabes amontoados em favelas e proibidos de frequentar os ambientes onde conduzidos pela arte de explorar a estupidez humana, ou seja, a propaganda, em fotografias, turistas mostram para o mundo a exuberância de seu ridículo. O verdadeiro desenvolvimento, aquele capaz de proporcionar tranquilidade, deste a selvageria humana ainda dista anos luz: o desenvolvimento espiritual do sentimento de irmandade.

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