A política externa dos candidatos à presidência

Bolsonaro e Tebet defendem Brasil subalterno à lógica imperial dos países ricos, sustentando que obterão ganhos alinhando-se aos velhos protocolos neoliberais. Lula e Ciro querem um mundo multipolar com protagonismo brasileiro

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Para entender a proposta de política externa dos candidatos à presidência da República através da leitura dos programas de governo apresentados, temos de prestar atenção aos seguintes pontos: 1) análise da estrutura e da conjuntura internacional e papel do Brasil diante desses dois elementos; 2) o principal objetivo traçado para a política externa; 3) como esses elementos estão conectados com o programa de desenvolvimento e soberania nacional.

O plano de Bolsonaro

O programa de governo do candidato Jair Bolsonaro (PL) está dividido em quatro grandes seções nas quais apresenta valores e princípios do seu governo, fundamentação estratégica, plano de governo e conclusões. Apesar de aspectos relacionados à política externa e relações internacionais aparecerem em vários momentos do texto, é na seção 3.6 “Segurança e Geopolítica” que existe um tópico exclusivo para política externa e defesa nacional.

O plano parte de uma análise da conjuntura internacional em que se destaca a crise inflacionária e energética, especialmente face aos impactos da guerra da Ucrânia e da pandemia, e um cenário no qual as necessidades de desenvolvimento sustentável, em que se conectam preservação do meio ambiente e crescimento econômico, são considerados tendências. O diagnóstico de como o Brasil encontra-se nesse cenário, contudo, é fantasioso. A avaliação exposta no programa é de que tanto as políticas domésticas como as internacionais perseguidas por Bolsonaro no primeiro mandato fortaleceram o Brasil diante desse cenário. 

O programa avalia que o perfil internacional do Brasil na defesa de uma política externa baseada no direito internacional, na atuação em organizações internacionais, com vocação universalista e capacidade de projetar o país com base em ativos como a democracia, o agronegócio, a produção de alimentos, a matriz energética limpa e as riquezas naturais foram bem-sucedidas. Ignora-se que a realidade da atuação internacional do Brasil tenha sido marcada, nos últimos anos, pelo desgaste de imagem externa do país devido a violações ambientais e no campo dos direitos humanos, bem como pelas ameaças à democracia patrocinadas por Bolsonaro, e pela volta da fome.

Para os próximos anos, as ideias sobre política externa e relações internacionais, conforme expostas no documento, propõem políticas de orientação neoliberal, mas que são contraditórias com outros compromissos assumidos no programa. Vejamos. O primeiro ponto a se destacar é o foco na aproximação do Brasil com países capitalistas desenvolvidos. Apesar de se falar na defesa da multipolaridade e da busca em manter o máximo de parceiros possíveis ao país de forma pragmática, o principal objetivo da política externa é a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e na Área de Livre Comércio Europeia (EFTA), dois espaços integrados e dirigidos por Estados imperialistas. Pressupõe-se então que ou há uma percepção de que Brasil faça parte desse grupo de Estados, ou aceita-se uma posição subalterna em relação aos mesmos. 

Ressalta-se no documento, ainda, uma visão pouco crítica da ordem internacional. Mesmo quando se coloca em destaque a atuação do país em Organizações Internacionais (como a ONU) e outros grupos como G20 e BRICS, não se evidencia que a ação histórica do Estado foi muitas vezes crítica às assimetrias de poder do sistema internacional. No plano de Bolsonaro, estas atuações são destacadas apenas como fato de conformidade do Brasil com a ordem externa, que aparece no documento como uma realidade dada, à qual o Estado brasileiro deve se submeter, perseguindo políticas – e pagando os custos – com vistas a melhorar sua posição. O documento não atribui papel de importância à relação do Brasil com os Estados dependentes.

O programa reforça como positivo o fato de que a incorporação do Brasil à OCDE está ligada à adoção de novas práticas e condutas internas. Isto é: as reformas neoliberais. O que inclui, além do aprimoramento do sistema previdenciário, uma reforma administrativa e do sistema tributário, um plano de desestatizações e desinvestimentos de empresas estatais. De tal modo, o programa de desenvolvimento mostra preocupação com as credenciais externas do país, vislumbrando a aceitação do Brasil na OCDE como sinal de legitimidade do governo. A continuidade de políticas liberalizantes com a proposta de “deixar a cargo do Estado somente aquilo que ele pode realizar” “concentrando seus esforços em exercer sua função estabilizadora por meio de ações imediatas”, pressupõe que o plano de desenvolvimento nacional está ligado à atração de investimento externo, especialmente para a área de infraestrutura visando a melhoria do transporte de commodities, e o fortalecimento do agronegócio e da mineração, destacando a possibilidade de o Brasil se tornar também um exportador de energia, mas sem perspectivas para a superação do papel agrário exportador que o país assumiu nas últimas décadas.

Uma contradição que aparece no programa é com relação às propostas voltadas para Direitos Humanos e Meio Ambiente. Ambos os temas são caros para a conformidade do Brasil com instituições internacionais – algo que o plano parece considerar importante –, no caso da OCDE, por exemplo, a temática ambiental é relevante. É sabido também que as políticas adotadas pelo Brasil nesse setor têm gerado críticas dos Estados Unidos e da União Europeia. Deve-se dizer que considerando o que está escrito, há compromisso no programa com a sustentabilidade e a respeito de minorias (citam-se indígenas, quilombolas e mulheres, não se fala em outras minorias como LGBTQIAPN+), contudo a realidade das políticas nos últimos anos fala mais alto do que as propostas do plano de governo, apontando-se então para um paradoxo que pode inviabilizar a conformidade internacional que Bolsonaro quer vender como solução para os problemas domésticos.

O segundo eixo a partir do qual é possível ler as propostas de política externa de Bolsonaro é o campo dos valores, no qual há uma contradição entre, de um lado, o compromisso assumido por uma vocação universalista e pragmática e, de outro, o foco em fundamentar as relações externas em valores que são excludentes a vários países, inclusive a China, principal parceira comercial do Brasil. O programa deixa claro que o Brasil privilegiará o desenvolvimento de relações com países capitalistas desenvolvidos que possuem valores semelhantes ao país: “Para o próximo mandato, será buscada interação ainda maior com países que defendam e respeitem valores que são caros aos brasileiros e se encaixem no ambiente democrático, como eleições livres e transparentes; liberdade de associação; de opinião e de imprensa; segurança jurídica; igualdade e respeito aos poderes constituídos e sua independência constitucional”.  De forma contraditória, contudo, há de se apontar que nos últimos anos, Bolsonaro, isolado após a eleição de Joe Biden, colocou o Brasil em alianças com países conservadores, entre os quais vários que desrespeitam os valores assumidos por ele como importantes.

No documento, aparece ainda uma menção ao Oriente quando se afirma que é o fato de “a população do Oriente estar saindo da miséria” que está “pressionando o crescimento e os custos no Ocidente”, o que indica, de um lado, que há um pensamento que divide o mundo entre Ocidente e Oriente, e coloca o Brasil naquele espectro e, de outro, que o Oriente é visto de forma desatualizada de suas potencialidades, ainda pela ótica da pobreza, contribuindo para a visão – clara no documento – de que o Brasil deve focar suas relações externas em aliados ocidentais e em países desenvolvidos.

O terceiro eixo das propostas de política externa de Bolsonaro diz respeito à defesa nacional. De forma mais ampla, o texto chama atenção para o risco de o Brasil ficar dependente de certos recursos essenciais, o que deve ser evitado. Citam-se as dificuldades que se passou durante a pandemia, com a carência de insumos, equipamentos, etc., necessários para o sistema de saúde, e a carência de fertilizantes no contexto da guerra da Ucrânia. Assume-se que é necessário que o país estude o que é estratégico e promova um plano para diminuir a dependência daquilo que dessa forma for considerado. Contudo, o único setor para o qual o documento coloca propostas é para o desenvolvimento de uma Base Industrial da Defesa, o que evidencia uma estratégia de soberania calcada em uma política de defesa ativa, com aumentos em investimentos militares, especialmente em salários e remuneração das forças armadas, e na busca pelo envolvimento desses setores na segurança doméstica (o que, inclusive, é uma clara ameaça à democracia). O plano assume ainda que o desenvolvimento da indústria da defesa deve ter papel na mediação da relação do Brasil com outros países, através da troca e aquisição de conhecimentos, e também que a participação do Brasil na OCDE deve facilitar acordos.

O plano de Lula

O programa de governo do candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é bem sucinto e não possui seção específica para abordar a política externa e relações internacionais, apresentando suas propostas para estes temas de forma interligada aos desafios mais gerais do desenvolvimento nacional. 

    Por sua vez, as ideias de política de desenvolvimento nacional expostas no programa partem da premissa de necessidade de conciliação entre crescimento econômico e respeito a questões socioambientais, com reconhecimento da necessidade de combater as mudanças climáticas e o aquecimento global, bem como respeitar os direitos humanos. Parte-se da pressuposição, conforme expõe-se no programa, de que a conjuntura internacional atual tem sido caracterizada pela transição energética e digital e pela emergência de novas formas de produção e consumo mais social e ambientalmente sustentáveis. O programa identifica que o Brasil, por sua importância no cenário internacional, considerando seu histórico de protagonismo em negociações ambientais e na política multilateral, bem como sua articulação junto a Estados dependentes, pode dar grande contribuição nessa conjuntura. Contudo, destaca-se que o governo Bolsonaro tem atuado na contramão dessas tendências internacionais e mitigado o papel que o Brasil pode ter nesse cenário.

    Para corrigir esses rumos, é possível perceber no programa 3 linhas de ação. A primeira relaciona-se ao combate das assimetrias estruturais do sistema internacional. Considera-se que é necessária uma política que lute por uma nova ordem global comprometida com “o multilateralismo, o respeito à soberania das nações, a paz, a inclusão social e a sustentabilidade ambiental, que contemple as necessidades e os interesses dos países em desenvolvimento, com novas diretrizes para o comércio exterior, a integração comercial e as parcerias internacionais”. Ao citar esses elementos, o programa deixa implícita a avaliação de que o sistema atual não está comprometido com eles. No entanto, a proposta de Lula não detalha como o Brasil atuará para mudar isso, nem menciona sobre a participação do país em Organizações Internacionais (como a ONU e a OMC, por exemplo).

    A segunda linha de ação externa, que complementa essa primeira, é a retomada da política externa altiva e ativa, que pressupõe o protagonismo internacional do Brasil, a partir de uma priorização do multilateralismo e das relações Sul-Sul, destacando-se a importância estratégica de África, dos BRICS e, de forma especial, da América Latina e Caribe como possíveis parceiros internacionais. No programa, destaca-se que há prioridade conferida às relações com a América Latina através do Mercosul, Unasul e Celac, que devem receber destaque como plataformas para a inserção internacional brasileira e serem recuperados sob um novo governo Lula. Destaca-se ainda a necessidade de o Brasil contribuir para a articulação de (e, por que não, liderar) um desenvolvimento integrado, pautado pela complementaridade produtiva entre os países da região.

    Um aspecto relevante do programa que certamente impacta na possibilidade de retomada de uma política altiva e ativa, bem como para que o país possa se projetar externamente com legitimidade na luta contra assimetrias do sistema internacional, é a preocupação com o desenvolvimento de uma política de direitos humanos que seja compatível com o respeito, proteção e incentivo a minorias, e que afirme proteção à liberdade religiosa e de culto, bem como de imprensa. Atenção também é dada para as políticas ambientais, afirmando-se não só o cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil na Conferência de 2015 em Paris, bem como a necessidade de proteção e recuperação das áreas devastadas, com respeito às comunidades locais. Destacam-se ainda políticas voltadas à soberania alimentar (a partir da compra e regulação de estoques, e incentivos à agricultura familiar), visando garantir que não haja fome em um país como o Brasil, que é potência do agronegócio. Lembra-se que essas áreas: meio ambiente e direitos humanos, e combate à fome foram importantes ativos da projeção externa do Brasil nos governos do PT, mas foram destruídos pelo governo Bolsonaro.

Outro elemento essencial que impactará a viabilidade da política altiva e ativa, com a qual o programa se preocupa, é com a recuperação do Estado enquanto ator capaz de induzir e coordenar o desenvolvimento. Para tanto, o programa pressupõe papel ativo do Estado com uso estratégico do investimento e de compras públicas para exercer papel contracíclico e incentivar o crescimento econômico. Projetam-se investimentos em infraestrutura, a retomada do investimento público em Ciência & Tecnologia, a busca pelo fortalecimento da indústria e agricultura, um plano de estatização de setores estratégicos (colocando-se abertamente contra a privatização da Petrobras, da Eletrobras e dos Correios), e uma política energética que gere fundos para o investimento em políticas públicas, destacando-se a retomada do papel da Petrobras na exploração, produção, refino e distribuição de combustíveis, bem como sua atuação “nos segmentos que se conectam à transição ecológica e energética, como gás, fertilizantes, biocombustíveis e energias renováveis”. No comércio internacional, propõe-se que haja um aperfeiçoamento da tributação em que os produtos com maior valor agregado e tecnologia embarcada sejam progressivamente desonerados. O plano deixa explícito que tais políticas visam “superar o modelo neoliberal que levou o país ao atraso” (assume-se compromisso ainda com a revogação do teto de gastos e da reforma trabalhista, bem como a proposição de uma reforma tributária que aumente tributo para os mais ricos).

A terceira linha de atuação que percebemos no programa, relacionada a política externa e relações internacionais, foca em segurança e defesa. Em uma dimensão mais ampla, o programa articula segurança e defesa não só a ação das Forças Armadas, mas a recuperação da soberania do Estado, a qual as políticas propostas que citamos até agora devem ter o papel de contribuir para fortalecer, em especial as políticas que visam o desenvolvimento de C&T, a soberania alimentar e energética e a recuperação e modernização da indústria nacional, em especial em setores estratégicos. 

Já em uma dimensão mais específica, o programa conecta a defesa da soberania nacional à “integração da América do Sul, da América Latina e do Caribe, com vistas a manter a segurança regional”, reforçando a recuperação da prioridade da região na política externa a partir de uma visão multidimensional e não apenas economicista. O programa destaca ainda a necessidade de o Brasil investir na indústria de defesa, promovendo o seu desenvolvimento como elemento ligado à própria soberania e como estratégia dissuasória. Quanto ao papel das Forças Armadas (FAs), a proposta destaca que seu papel é garantir a soberania territorial, aérea e marítima, “cumprindo estritamente o que está definido pela Constituição”. Sem citar diretamente as FAs, o programa cita que é “necessário superar o autoritarismo e as ameaças antidemocráticas” e repudia “qualquer espécie de ameaça ou tutela sobre as instituições representativas”.

Os planos de Ciro e Tebet

O programa do candidato Ciro Gomes (PDT) é o mais difícil de ser lido da perspectiva de proposição de políticas voltadas especificamente para as relações internacionais brasileiras. O candidato apresentou um programa enxuto, dividido por temas, no qual a política externa e de defesa nacional não aparecem, bem como não há nenhuma informação sobre a leitura da conjuntura internacional da qual se parte. 

De forma bem geral, afirma-se que as negociações econômicas e diplomáticas seguirão os princípios da defesa dos interesses nacionais e da soberania do país. Para isso, aposta-se em um programa nacional de desenvolvimento pautado no investimento público em políticas sociais (educação, saúde, etc.), no papel ativo do BNDES, além de visar alterar a composição tributária do país e a política de preços da Petrobras (todos pontos também citados por Lula). Pauta-se ainda o combate à fome e à desigualdade. Defende-se também a ideia de se colocar a cultura como afirmação da identidade nacional, alterando a estética internacional do país e valorizando os costumes locais através de novas linguagens que podem ser potencializadas com o uso de tecnologias, e a busca por novas simbologias e uma unidade em torno da ideia de nação.

Já o programa da candidata Simone Tebet (MDB) ressalta que o país precisa de uma reconstrução ampla e abrangente, que passa por mudanças estruturais. A avaliação de conjuntura que consta do plano é de que o Brasil tem um governo instável, pouco convidativo ao investimento, e que a democracia e economia nacional atravessam momento difícil. Assume-se ainda que o país é atualmente um vexame mundial em especial pela política ambiental adotada, baseada na destruição do ecossistema nacional, principalmente Amazônia e Pantanal, que causa vergonha internacional e isola o país.

A diretrizes de desenvolvimento estão divididas em quatro eixos: combate às desigualdades; compromisso com a economia verde; construção de um governo parceiro da iniciativa privada, e combate ao preconceito e discriminação. Não existe uma seção exclusiva a política externa no documento, mas propostas para o setor surgem em vários pontos do texto. Assume-se como primordial que o Brasil busque por protagonismo e relevância internacional e abandone políticas que o isolam do mundo. Destacamos três frentes principais das propostas de Tebet.

Primeiro, o programa defende políticas voltadas para a consagração das mudanças estruturais neoliberais que o país vem adotando desde a gestão Temer. O texto contempla uma visão do Estado como ator que deve “propiciar melhores condições para o investimento privado acontecer, com estabilidade e responsabilidade. O governo tem que possibilitar ambiente estável, previsível, pacífico, com segurança institucional, jurídica e regulatória”. Nessa toada, defende-se a continuidade da política de concessões, privatização e desestatização. Argumenta-se ainda pelo investimento em infraestrutura logística, mas a partir da suposição de que haverá grande contribuição da iniciativa privada e investimentos externos. Nesse sentido, o papel do BNDES é pensado a partir da restauração de sua atuação dentro do Programa Nacional de Desestatização.

Em termos comerciais, o plano avalia que há necessidade de “ampliar o grau de abertura comercial e de internacionalização da economia brasileira”, inclusive para potencializar a participação do Brasil nas cadeias produtivas globais. Para tanto, deve-se implementar um plano de redução gradual de tarifas aduaneiras, eliminar medidas não-tarifárias e fomentar “negociações comerciais, com ênfase em acesso a mercados”. Assume-se que o país deve “negociar novos acordos comerciais e buscar maior participação no comércio internacional”, cita-se explicitamente que o “custo Brasil” é um dos principais fatores que limitam a atuação econômica do país no cenário externo. Para combatê-lo, seria necessário o aprofundamento das reformas liberalizantes as quais seriam consagradas com o avanço no acesso à OCDE, “concebido como oportunidade para revisão geral das políticas públicas nacionais, visando seu aperfeiçoamento à luz das melhores experiências e práticas”. Tais medidas restaurariam a confiança dos investidores no país, essenciais para que a política proposta seja colocada em prática.

    A segunda frente das propostas de Tebet para as relações internacionais brasileiras foca na busca de um protagonismo internacional para o país baseado na agenda internacional de sustentabilidade, baseado na economia verde e em um mercado de crédito de carbono estruturado e bem desenvolvido. Para isso, deve-se combater a agenda de desmatamento e buscar novas medidas de desenvolvimento sustentável. Cita-se a importância da retomada do Fundo Amazônia e fortalecimento de sua governança, bem como o papel que o país pode ter na transição energética por possuir uma matriz limpa, renovável, segura e barata. Uma contradição, contudo, é a premissa assumida pela candidata de que o “setor produtivo brasileiro – e o agro em particular – já produz com sustentabilidade e responsabilidade”, o que se choca com a realidade brasileira.

    A terceira frente das propostas da candidata destaca a integração regional e o multilateralismo como aspectos estratégicos para a inserção internacional brasileira. Assume-se o compromisso de “Reforçar a integração latino-americana, aprofundando acordos já existentes e negociando novos acordos”, com destaque para a necessidade de promover “a integração física e os investimentos em infraestrutura na América do Sul”. Contudo, não se aponta formas de fazer isso, lembrando-se que o papel do BNDES, que poderia contribuir para financiar essa proposta, não contempla esse tipo de atuação no plano de Tebet. Sobre o Mercosul, é perceptível que é entendido como aspecto importante para o Brasil que deve ser consolidado e aprofundado a partir de “ações voltadas para a liberalização do comércio de bens e serviços e dos movimentos de pessoas e de capitais entre os sócios do bloco”.

    Com relação ao multilateralismo, o texto destaca a importância da atuação do Brasil na OMC para fomentar um “sistema multilateral de comércio mais aberto e menos discriminatório”, a necessidade de o país “Engajar-se nas discussões de grupos plurilaterais dos quais o Brasil participa, tais como G-20 e Brics, com vistas ao fortalecimento do multilateralismo”, e elenca-se ainda a urgência de se “Recuperar o prestígio da diplomacia brasileira nos diversos foros internacionais, intensificando a participação do país nos trabalhos das Nações Unidas”, com destaque para ações que visem “(1) mitigar as mudanças climáticas; (2) promover o desenvolvimento sustentável; (3) garantir a paz e a segurança internacionais; (4) combater o tráfico de armas e de drogas, a corrupção, o terrorismo e a guerra cibernética, entre outras questões globais; e (5) reformar a Carta da ONU e ampliar seu Conselho de Segurança”. Em tais ações propostas, fica patente o entendimento de que o Brasil deve focalizar a vocação universalista da política externa brasileira e a defesa do multilateralismo.

Outros pontos

Um aspecto que chama atenção em todos os planos de governo é que os quatro assumem que é possível superar a dicotomia que opõe o crescimento econômico à proteção do meio ambiente e dos direitos humanos. Todos os candidatos apresentam propostas que pressupõem ser possível, de um lado, respeitar minorias, comunidades locais e recuperar e preservar ecossistemas e, de outro, promover o crescimento econômico e a exploração de minérios, agropecuária e de outros recursos naturais, bem como o desenvolvimento da estrutura produtiva industrial. Contudo, nenhum candidato – para além de afirmar que é possível essa conciliação – de fato diz como vai fazer. Esse é um ponto importante, pois na proposta de todos os candidatos se percebe que há a expectativa de se explorar internacionalmente o papel que o Brasil pode ter para a mudança energética e como líder em negociações ambientais.

Outro ponto que falta no plano dos candidatos é especificar a forma como o Brasil deve atuar com relação a parceiros específicos. Em especial, nota-se que o plano de nenhum dos quatro candidatos tratou das relações Brasil-China, que são tema de debate e embate no país. A China é hoje o principal parceiro comercial do Brasil, tem uma forte presença na América Latina, compete com produtos e empresas brasileiras e avança em investimentos em setores estratégicos como o setor de energia e infraestrutura. É mister pensar em como lidar como esse Estado que, a despeito desse quadro desvantajoso, é um parceiro importante na defesa do multilateralismo e na construção de uma ordem multipolar, especialmente, porque pode contribuir no sentido de a América do Sul alcançar maior margem de manobra em relação aos Estados Unidos.

De modo geral, as candidaturas de Jair Bolsonaro e de Simone Tebet apostam em um programa neoliberal, pautado na desestatização e no acesso do Brasil à OCDE, cuja meta (já frustrada nos anos 90 e desde 2016) é atrair investimento externo via acordos comerciais (desvantajosos), assumindo-se que o papel do Estado é de mero coadjuvante do desenvolvimento. Tebet diferencia-se de Bolsonaro por defender o desenvolvimento sustentável de maneira mais inovadora e profunda, e pelo fato de que contra os planos de Bolsonaro pesa a descrença, com base na realidade de seus quatro anos de governo, de que sairão minimamente do papel.

 Já Lula e Ciro Gomes parecem se aproximar na estratégia de desenvolvimento nacional pautada em investimentos públicos, políticas sociais e defesa da soberania nacional. Ciro não dá grande destaque à política externa, enquanto Lula enfatiza a retomada da política externa altiva e ativa que gerou tantos louros ao seu governo. Em especial, defende o multilateralismo e a busca por cooperação e complementaridade produtiva na América do Sul, aspectos que também são destaque no programa de Tebet. A diferença é que Lula parece enxergar a cooperação regional a partir de uma perspectiva mais multidimensional (incluindo questões de segurança), enquanto Tebet tem um foco mais econômico. Com relação ao multilateralismo, o reconhecimento que Lula faz da existência de assimetrias estruturais no sistema internacional é maior do que o de Tebet, que parece – como Bolsonaro – resignar-se com o fato de que o Brasil deve atuar em conformidade com esse sistema, arcando com os custos de adequação pelo menos no que diz respeito à integração econômica internacional. No campo político, contudo, Tebet descola-se da conformidade perseguida por Bolsonaro ao defender abertamente a reforma do Conselho de Segurança da ONU.

Considerações finais

O centro da questão é a percepção ajustada das realidades locais e internacionais e o papel do Brasil nesse contexto. É possível imaginar duas estratégias que se localizam em campos opostos: de um lado, subordinação e alinhamento ao imperialismo seguindo as diretrizes internacionais; de outro, a busca por autonomia, protagonismo e investimento na construção de uma nova ordem internacional na qual o Brasil e a América do Sul podem ocupar outro papel. Olhando para a estratégia dos candidatos, a de Lula – e talvez Ciro (o julgamento de sua estratégia é prejudicado pela falta de informações sobre o que pretende fazer em termos de relações internacionais) – estariam mais próximas de uma busca de autonomia. Ambos vislumbram a recuperação do papel do Estado, de seus mecanismos de intervenção pública, das empresas estatais e setores estratégicos que podem atuar para diminuir a vulnerabilidade e a necessidade de subordinação do Estado aos interesses estrangeiros, pelo menos na medida em que isso for possível para um país dependente como o Brasil. Lula, em especial, pretende usar o multilateralismo e as relações Sul-Sul como forma de contornar as assimetrias internacionais.

Já os planos de Tebet e Bolsonaro estariam localizados em maior medida na vertente da subordinação e alinhamento ao imperialismo. Ambos possuem uma visão de Estado pautada no neoliberalismo e que internacionalmente visa agir em conformidade com o sistema internacional vigente. Merece menção, contudo, o fato de que o plano de Tebet prevê menor conformidade internacional do que Bolsonaro, ao propor a uma atuação do Brasil enquanto liderança na agenda ambiental, multilateral e na América do Sul.

Por fim, cabe salientar que a política externa não deve ser vista como uma área secundária dentro dos programas de governo, apesar de ocuparem pouquíssimo espaço neles, pois ela se conecta intimamente às demais políticas (econômica, social e ambiental) e se pauta por uma visão estratégica de inserção internacional, de soberania e desenvolvimento do país. 

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