A Argentina tenta escapar da ultradireita

Parte das pesquisas já coloca peronistas na liderança, mas a ameaça de Javier Milei é real. Num país que não consegue sair da crise, ele propõe o salve-se quem puder, adota agenda conservadora e acena às viúvas da ditadura. Parece familiar?

Foto: Tomas Cuesta/Pool/AFP
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A Argentina chega ao final de semana do primeiro turno de sua eleição presidencial com diversas indefinições. Não só sobre quem passará para o segundo turno, mas mesmo se haverá um turno final. Para a disputa ser liquidada já neste domingo (22), é necessário obter 45% dos votos, ou 40% desde que a distância para o segundo colocado seja de, no mínimo, dez pontos percentuais.

No país, a divulgação de pesquisas é proibida na semana que antecede as eleições, o que acirra ainda mais o clima de incertezas, já que não se pode apurar as movimentações de intenção de voto cada vez mais comuns nos últimos dias antes da decisão.

Com base nas dez principais pesquisas divulgadas antes do período de proibição, Javier Milei, do Liberdade Avança, liderava em sete, e Sergio Massa, do União pela Pátria, aparecia à frente em três. Já Patricia Bullrich, do Juntos pela Mudança, aparecia numericamente em segundo lugar somente em uma delas.

No cenário, o centro das atenções é Milei, que venceu as primárias argentinas em agosto. Ele encerrou sua campanha na quarta-feira (18) com um espetáculo que sintetizava o que é sua candidatura. Na Arena Movistar, em Buenos Aires, com capacidade para 15 mil pessoas, imagens de explosões nucleares, com prédios sendo implodidos, simbolizavam o que seria o fim de uma era para o início de outra, com sua possível eleição. Quem bem definiu tal espetáculo foi o sociólogo e doutor em Ciência Política pela Universidade de Harvard Atílio Boron.

“Esta exaltação da violência e da morte nada tem de original, pois é típica de todos os fascismos, tanto os de ontem como os de hoje. A única coisa que faltou foi adicionar uma imagem com uma placa que dizia ‘viva a morte’ para que o cenário do ato de encerramento de Milei emulasse perfeitamente o de seus sombrios antecessores europeus”, escreveu.

Discursivamente, o candidato veste o mesmo manto da antipolítica que Bolsonaro trajou, ainda que seja um parlamentar neófito e não um veterano como o ex-presidente brasileiro. No comício de encerramento, voltou a atacar o que chama de “a casta”, grupo que teria como representantes seus adversários. Bradou contra jornalistas e políticos em geral. E sempre associa seus inimigos ao Estado, que deve ser reduzido ao mínimo e cujos cortes ele representou várias vezes na campanha com uma motosserra. Cabe ainda outro elemento-chave e comum à extrema direita: falas raivosas contra a corrupção, também relacionando-as ao aparelho estatal, como se o setor privado fosse um grande campo virtuoso e sem nódoas morais.

Posições extremistas

Milei se autointitula como “liberal libertário”, já tendo dito que “filosoficamente” é um “anarquista de mercado”. Defende a dolarização da economia e o fim do Banco Central, além da privatização de serviços básicos como saúde e educação. Por conta disso, atiçou e animou neoliberais e ultraliberais no mundo todo, inclusive no Brasil, todos eles buscando normalizar sua candidatura e fechando os olhos (ou não) aos elementos que o colocam na esfera da extrema-direita.

Um deles, por exemplo, diz respeito à questão do revisionismo em relação à ditadura militar argentina. Sua vice, Victoria Vilarruel, é filha de Eduardo Vilarruel, que ela define como “herói das Malvinas”, mas que, como tenente do Exército, participou de operações contra a “delinquência subversiva” em Tucumán, em 1976.

Em setembro, ela liderou na Assembleia Legislativa de Buenos Aires um ato em “homenagem às vítimas do terrorismo”. Na ocasião, disse que “é hora de reivindicar aqueles que lutaram contra os grupos terroristas que tentaram instalar o comunismo na Argentina e que hoje estão presos injustamente por uma Justiça enviesada e manipulada pela esquerda”.

O próprio Milei, em debate televisivo, relativizou o regime autoritário ao defender que o período do regime militar foi uma “guerra” entre as forças do Estado e as guerrilhas. “Não foram 30.000 desaparecidos, são 8.753. Somos contra uma visão de apenas um lado da história”, disse.

O candidato também atacou, em agosto, a Educação Sexual Integral (ESI), dizendo se tratar de uma “agenda pós-marxista” que tem a ver com a “destruição do núcleo social mais importante, a família.” Até a Anistia Internacional se posicionou a respeito, lembrando que a aula é “fundamental para a prevenção do abuso sexual na infância”. De acordo com o Ministério da Tutela Pública da Cidade de Buenos Aires, oito em cada dez denúncias de abuso sexual contra crianças ocorreram após uma aula de ESI.

Sua obsessão em taxar tudo aquilo que ataca como algo “marxista” ou “socialista” evidencia uma estratégia típica da extrema direita, que estimula um sentimento paranoico e persecutório. Isso também é aplicado à questão climática. Em debate realizado em 8 de outubro, foi questionado pela candidata de esquerda, Myriam Bregman, sobre mudanças climáticas.

“Não nego as alterações climáticas, o que estou a dizer é que existem ciclos de temperatura na história da Terra e este é o quinto”, sustentou, argumentando que “a única diferença” neste ciclo é que “agora existe o ser humano”. “Todas essas políticas que culpam os humanos pelas alterações climáticas são falsas e a única coisa que procuram é angariar fundos para financiar socialistas preguiçosos que escrevem artigos de segunda categoria”, atacou.

Em editorial, o ClimaInfo resumiu bem a “explicação” de Milei. “A argumentação do candidato chega a ser caricatural de tão ridícula, mesmo para os padrões patéticos da extrema-direita.”

Em outra ocasião, em agosto, o candidato do Liberdade Avança se pronunciou de forma contrária à interrupção da gravidez, que se tornou legal no país desde 2020. “Sou contra o aborto, abertamente, porque vai contra o direito à vida”, pontuando que “faria um plebiscito” sobre o tema. “Não é um direito conquistado”, afirmou ainda.

Políticos à la Milei

E, como se sabe pela experiência brasileira e de outros países, uma figura como a de Milei não vem sozinha, mas consegue carregar junto de si personagens que corroboram suas teses e as amplificam. Ou dizem e defendem aquilo que o protagonista não tem coragem de falar à luz do dia. O resultado é que todo um ideário extremista, discriminatório e excludente passa a fazer parte da agenda e da discussão pública.

Uma candidata a deputada nacional pelo Liberdade Avança, Lilia Lemoine, é uma destas figuras. Autodenominada como “influencer” e “cosplayer” em seu perfil no Instagram com mais de 122 mil seguidores, anunciou que, caso eleita, irá propor um projeto que vai permitir a homens “renunciarem” à paternidade. Ela justifica isso como uma reação à legalização do aborto na Argentina.

“Se as mulheres têm o privilégio de poder matar seus filhos e renunciar a serem mães, então porque os homens, por lei, têm que manter uma criatura talvez porque tenham dito a eles ‘sim, sim, eu tomo pílula’ ou porque furam o preservativo?”, questionou em um programa de TV. Sua ideia grotesca consiste em dar às mulheres 15 dias (não se sabe se a partir do início da gestão ou do conhecimento da mesma) para notificarem ao pai a notícia da gravidez, com ele podendo decidir se deseja ou não assumir a paternidade.

Segundo dados da Unicef de 2022, destacados pelo Pagina12, na Argentina, 50% dos progenitores não pagam pensão alimentícia e 12% o fazem esporadicamente. Mas propostas como a de Lemoine não dialogam com os números, a realidade ou as necessidades da população, mas com preconceitos, misoginia e violações de direitos. E com um segmento da sociedade que aceita isso como normal, lembrando que o ataque aos direitos das mulheres são um denominador comum entre extremistas de direita de todo o mundo.

Outro candidato a deputado nacional pelo Liberdade Avança, Alberto ‘Bertie’ Benegas Lynch , propõe “atribuir direitos de propriedade” para combater a crise climática. “As galinhas e as vacas não se extinguem porque há um dono , porque há um uso econômico, há pessoas que valorizam isso, que investem seus recursos em ter um bom estoque e vender a carne”, argumentou, de forma cândida. “Há um trabalho de privatização do mar que eu recomendo”, completou.

O que esperar do futuro político da Argentina?

Em dezembro de 2005, o presidente argentino Néstor Kirchner anunciava, em um discurso transmitido pela televisão: “Estamos sepultando um ignominioso passado de um endividamento eterno e infinito”. Ele se referia ao pagamento total da dívida que o país tinha com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Saldar os débitos com a instituição só foi possível por conta do enfrentamento feito pelo governo, que suspendeu o pagamento e conseguiu uma reestruturação do montante devido, fazendo com que 76% de credores aceitassem trocar títulos velhos da dívida por novos, com valor menor. Assim, conseguiu fazer com que o total caísse de US$ 62 bilhões para cerca de US$ 35,3 bilhões.

Em 2019, no governo Macri, o país voltou ao FMI para obter o maior empréstimo da história do Fundo, um valor total de US$ 57,1 bilhões, com a imposição de inúmeras e severas restrições, já que a entidade, diferentemente do Banco de Desenvolvimento da América Latina, condiciona seus recursos ao cumprimento de sua cartilha.

Em um contexto distinto de Kirchner, o atual presidente Alberto Fernández conseguiu uma renegociação bem menos vantajosa, sem um enfrentamento como o feito no início do século. Em setembro, atacou o Fundo na ONU. “O FMI não pode aumentar as suas taxas de juros sempre que o Fed aumenta as suas taxas para conter a inflação no país. Ele não pode fazer isso, mas faz”, disse. “A experiência mostra que quando um povo é sufocado pela condenação eterna ao endividamento, a sua força desaparece, as crises sociais se intensificam e as dívidas tornam-se impagáveis.”

Nem sempre é fácil explicar situações que são, de fato, complexas do ponto de vista político, ainda mais quando boa parte da população se ocupa em sobreviver economicamente e vê fantasmas como a crise social, a dependência do FMI e a inflação voltarem de tempos em tempos. A tentação por soluções fáceis, ainda que falsas, como as propostas por Milei se tornam grandes em um cenário assim. Mas o campo progressista precisa trabalhar não só com soluções e propostas inovadoras, como também com um trabalho de politização contínua que vá além do período eleitoral.

Na seara da direita e centro-direita, a campanha de Bullrich deu sinais preocupantes ao pretender disputar o mesmo eleitorado de Milei, com mensagens furiosas contra a esquerda e adotando simbologias extremistas ao se posicionar, por exemplo, contra “doutrinação” nas escolas, um espantalho bastante comum. No Brasil, isso levou parte desse campo a desaparecer, enquanto outra parte se unia ao ideário ultradireitista. O macrismo tem mais fôlego, mas, a depender do que acontecer no domingo, pode também se ver em meio ao início de uma queda mais contundente.

O peronismo e a direita macrista devem compor a maioria do Congresso, o que pode constituir um obstáculo para as propostas mais agudas de Milei, caso seja eleito. De qualquer forma, já vimos no Brasil o que ocorre quanto a extrema direita chega ao poder e não consegue viabilizar todos os seus planos. O desafio para a democracia argentina não é nada trivial.

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