HERMETO PASCOAL: SINFONIA SILENCIOSA

Shhhh!

O “bruxo” já tocou – fôlego, que vem aí uma listinha exemplificadora – broca de dentista, porcos vivos, gansos, perus, galinhas, patos, coelhos, abóbora, brinquedos infantis, chaleiras, copos, pedras do Ibirapuera, um bandeijão de universidade, conversas do público em shows, água e até sua própria barba. Agora, conversamos sobre um dos maiores problemas deontológicos da música: o silêncio.

Por Rôney Rodrigues

Há-ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha-ha-rr-yyyyyyyy. Ó, querido, o Porta dos Fundos é tão divertido, um humor sofisticado, não acha? Rola, quer rola? Ha-ha-ha ha-ha-ha-ha-ha-ha ha-ha-ha. A atendente do café corta laranjas. Vap-vap-vap. Espreme no moderno espremedor elétrico-industrial. Trimmmmm. Trimmmmm. Trimmmmm. Alôuuuu! É ele. Não, não, vou chegar depois das sete mesmo. De táxi. É, é. Você poderia ver aí se…

…carros, quilômetros de carros, lá fora, em toda as direções, vruuum, vruuummmmmm, milhões de carros, de todos tamanhos de todas corres de todos os preços, fooonnn, carros, gritam, esperneiam os motores como crianças que querem leite. Vrum, vrummm. Vruuuuuuuuuumm. Foonnnnnnnnnnnnnnnnnnn. Gelo, gelo, um pouquinho de açúcar, mais gelo dentro do liquidificador. Brummmmmmmmmmm.

Caixinhas de som instaladas nos cantos da sala vomitam um som ambiente mal amplificado, um zumbido de colmeias em época pré-acasalamento. Kenny G.  Pãpãran-párápan-pãparapan. A atendente agora tira simultaneamente dois italian coffees de uma moderna cafeteira cromada. Shhhhhhhhhhhhhhhhh.

Hermeto Pascoal assimila todos esses ruídos. Assume uma expressão impenetrável. Olhos abertos de quem parece só olhar para dentro de si. No café do Hotel Bourbon, ele decupa mentalmente todas as camadas sonoras que dançam erraticamente no ar até seus afi(n)ados ouvidos e, com tapinhas na barriga e nas coxas, rege essa sinfonia paulistana. Tum, turumtum, tu tururutum tumtum. Tira – ou espreme? – melodias onde eu, mortal, ouço apenas notas de rádio AM mal sintonizada: Bbrrzzzzzzzzzzzz.

O músico de 79 anos, multi-instrumentista-

…aqui vai uma digressão. E digressão é um método de exposição, cito eu citando João Ubaldo Ribeiro que, por sua vez, citava Luís Buñuel. Bate-se na tecla monotemática de que Hermeto é capaz de tocar uma vasta gama de instrumentos – e até não-instrumentos -, mas isso é uma pueril definição para a música do “bruxo” albino.  É como se no MasterChef do jazz o julgassem somente pelas múltiplas opções de ingredientes e condimentos – não pelo prato em si.

Mas, considerações à parte, o fato é que essa lenda do jazz brasileiro é exemplo raro de artista que goza a posterioridade em vida – embora reclame que esse deleite quase nunca venha financeiramente. Expandiu o sertão rosiano ao cozinhar ritmos agrestes – como choro, frevo, forró e baião – condimentados em música clássica – tudo, claro, flambado na frigideira sem teflon do jazz. O cara cutucou tocas jazzísticas em Montreaux, Chicago, Nova Iorque e Nova Orleans e tocou com cobras como Chick Corea, Dizzy Gillespie, Stan Getz e Miles Davis. O resultou foi o “The New York Times” o classificando tão somente de “mítico”. O velhinho é porreta!

É esse cara que está agora à minha frente, bochechas rechonchudas e avermelhadas, olhos lânguidos, estrábicos e sinceros, longas barbas e cabelos algodoeiros, camisa florida naipe-turista-europeu e- e- isso mesmo, tirando um som com sua globulosa pança-pandeiro. Tum, turumtum, tu tururutum tumtum.


As aventuras de Crazy Albino no mundo das radiações ultravioletas

Antes, vamos abrir um parêntese para contextualizar o músico no espaço-tempo. Nasceu no interior de Alagoas, dispensando sobrenome. Isso não é força de expressão, mas a real mesmo. Só no alistamento militar que colocaram o Pascoal, nome de seu pai, acompanhando o Hermeto – “é Herméto, não Hermêto”, frisa sempre. Era um bebê “esquisito” para a cidadezinha de Lagoa da Canoa: apesar de toda a árvore genealógica de sua família ser negra, o jovenzinho era “leitoso”.

Sou negro, lembra ele, embora por uma ilusão ótico-genética não pareça. Devido à incapacidade de seu organismo em fabricar melanina, não podia “pegar na enxada” e ajudar a família de lavradores, afinal, sua sensível pele e olhos torrariam com a radiação ultravioleta.

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“Sempre quando o sol estava muito quente precisava usar chapéu”, conta Hermeto. “Também tenho deslocamento e fraqueza do nervo óptico, então não fixo o olhar. Até quando vou ler partitura me perco. Mas vejo tudo, até demais da conta”, ri o crazy albino, como o chamava o trompetista fodão Miles Davis.

Mas voltando à história. Os sons da natureza sempre o fascinaram e, ainda menino, fez um cano com mamona de “jerimum”. Na mágica musical de Hermeto, aquilo se transformou em um pífano para tocar para os passarinhos. As águas de um rio próximo à sua casa viraram uma espécie de bateria. Um varal e sobras de material do avô ferreiro, uma percussão. Daí por diante, não parou mais. Já tocava com seu irmão mais velho em forrós e festas de casamento e, depois, Sivuca o ajudou a entrar na rádio local. Daí por diante, se fez o Hermeto Pascoal, com nome e sobrenome na história do jazz.


Trombones e cachoeiras: a impossibilidade de silêncio

“Tá bonito”, elogia um fotógrafo.

Hermeto congela pro “retrato oficial da entrevista”. Click. Click. Click.

“Eu sou sempre bonito”, esclarece ele, num sorriso curvo, com sua tirada a la Humphrey Bogart.

Senta-se e ainda batuca a colmeia cacofônica do Hotel Bourbon. E prum cara que tira notas musicais de ruídos aparentemente banais, um cabra inquieto com a possibilidade viver fazer música com toda a realidade que o cerca, só me resta perguntar: “oque é o silêncio?”.

“É uma das coisas mais importantes da vida da gente”, começa ele. “É hora de reflexão. Hora de recordação. Hora de… Hora… A hora…”, tenta, mas não consegue materializar uma ideia que precise a ausência daquilo que é sua energia vital. As palavras não saem, o vácuo se instala por alguns segundos. The rest is silence. “É aquele momento em que… Em que… Mexe com a consciência. Silêncio só existe no nome porque, na prática, é uma coisa sagrada”.

“Sagrada? Interessante o senhor dizer isso, afinal, até a Bíblia afirma que a vida veio de um som: um sopro na hora da criação divina”.

“Sim, claro. A música é uma oração. Eu mesmo componho todos os dias. Pego o instrumento, toco alguma coisa e parece que tudo que vem para mim é através do silêncio, como algo sagrado. A inspiração vem num som baixinho, com toda aquela calma. Quem criou a palavra silêncio deve ter pensando em coisas que quebram uma aparente calma: arrastar uma cadeira, um passarinho batendo asas no ar, as águas de uma cachoeira. Mas não quebra nada! Eu sinto um zumbido aqui, nos meus ouvidos. Desse lado aqui é um trombone”, e aponta para a orelha direta. “Já aqui é uma cachoeira”, mostra a esquerda. “O médico fez exames e disse que poderia operar. ‘Mas não quero acabar com isso não, eu gosto, acho o som bonito’. Não existe silêncio dentro de mim. Tem dia que esse aqui está mais baixinho; outros em que toca mais o trombone”.

“Ou seja, silêncio é impossível, ainda mais para quem tem uma cachoeira e um trombone nos ouvidos”.

“De repente, pode ser também que silêncio seja um som que a gente soma com outros. Uma espécie de barulho. Agora, enquanto conversamos, alguém arrasta uma cadeira, está ouvindo? Ou atende o telefone. Outro cabra está falando com a moça do café. Eu só escuto música. Só percebo um som da natureza. E você sabe, natureza não é só a do campo, é onde estamos”.

“Falando sobre onde estamos, o senhor acredita que os sons da natureza urbana de São Paulo são mais para sinfonia ou cacofonia?”.

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“As pessoas que moram em São Paulo só reclamam. É pra aparecer. Mas tá todo mundo acostumado com tudo isso aqui. Mas eu sei que ninguém vai dizer que se acostuma com ônibus lotado, trânsito ou rio poluído. Eu morava em São Miguel Paulista e o ônibus naquela época já era lotado. Eu descia na Praça da Sé e caminhava até a Consolação, a pé, às vezes, descalço. Fazia isso para comtemplar a natureza de São Paulo”.

“Mas a natureza dos campos, como o senhor definiu, também influenciou muito seu trabalho, não é mesmo?”.

“É uma união. Eu me lembro de quando nasci e sei que minha primeira música foi meu choro. Quando me perguntam há quanto tempo sou músico, eu digo: há 79 anos! E a natureza esteve sempre presente em meu trabalho, desde criança. Eu tocava na beira do rio para peixes e eles vinham nadando até as margens, tocava minhas flautas de bambu e os patinhos também vinham. Nascemos semelhantes. A única diferença que Deus me deu é que eu sou mais lindo”, diz ele, inclinando a cabeça para trás em uma gostosa gargalhada.

“Uma coisa interessante em suas músicas”, continuo eu, “é a ausência de imposição da palavra…”.

“Interessante você falar sobre isso”, me interrompe Hermeto. “Vamos pensar. A música que chamam de ‘instrumental’ quer dizer, claro, que é tocada por instrumento. Mas vai além disso. Se você aprende uma letra, ela vai ser sempre a mesma coisa, afinal, você já decorou. Mas se a pessoa se envolve somente com a música, sem poesia falada, elas vão criar a própria poética, vão pensar na vovó doente, em um passeio na montanha, o que vier à cabeça na hora, e cada vez que ouvir a música vai ser uma música nova. A música instrumental faz a cuca das pessoas serem instrumentos de fazer poesia”.

“Você quer, então, transformar as pessoas em poetas?”.

“Isso, mas sem premeditação porque quando se premedita as coisas não se cria e minha mente é solta”.

“Mas você não premedita quando usa elementos do cotidiano – ou até inusitados – em seus discos ou shows?”.

“Faço isso porque não quero fazer o óbvio. Não é racionalizado. Quando cismo em fazer algo assim, eu mesmo vou me assustando gostosamente no processo criativo. Tenho muitos amigos que me dão instrumentos caríssimos de presente, mas o que gosto de tocar de verdade é muito simples – e barato. Quero arrancar sons de tudo, não quero nada pronto. Quero liberdade, porque o campo da música deve ser livre”.

“Comecei perguntando sobre o silencio, mas percebi que a busca pela beleza é vital em seu trabalho. Por isso, pergunto por fim: o que é beleza?”.

“Beleza para mim varia também, claro. Nunca é uma coisa só, se transforma, o mundo muda, os gostos mudam. Poderia especular: a luz da manhã quando clareia o dia, uma moça bonita – como a dona Aline [Moreno, sua esposa], claro -, um camarada bonito como você, um jumentinho caminhando em uma estrada de terra… Mas só uma coisa não dá para discutir: a minha beleza. Haja espelho para me aguentar”.


Uma brisa químico-sonora

Ônibus. Fones no ouvido. Voltando para casa, nas brisas pós-entrevista, sei lá provocada por quais químicas, frito em “Slaves Mass” do bonitão albino. Tento imaginar o silêncio de Hermeto Pascoal: sons de cachoeiras e trombones. Sempre. Ininterruptamente. Tocando em moto-contínuo, cintilando, estalando, ameaçando, perseguindo-o no entremear da colcha de retalhos que é o espaço quase imperceptível entre uma nota e outra. E ele, homem devoto do “sagrado musical”, beijando diariamente essa silenciosa musa inspiradora, acariciando-a com suas mãos rendeiras e apertando os nós de seu corpo em uma “precisão precisa”. Hermeto Pascoal faz como Carlos Drummond de Andrade, que espremeu um épico minimalista do encontro de uma pedra no meio do caminho com suas retinas fatigadas. O bruxo-poeta do jazz brasileiro consegue tirar poesia rítmica de quase tudo que vê e ouve.

Retiro do bolso uma caixinha de Tic-Tac de menta. Deposito duas cápsulas na mão. Levo-as a boca. O barulhinho estridente da caixinha me atiça e, ouvindo a melodia do “bruxo”, tento acompanhá-la com batidinhas de tic-tac, no compasso das notas que saem do fone. Tic-tac-tictactictac-tic-tac-tic-tac. Algumas pessoas olham. Parecem me devorar por quebrar a mansidão do transporte público. É proibido. Estou incomodando, claro. Então vejo a mensagem:

  PROIBIDO O USO DE APARELHO SONOROS

                                         Lei Municipal nº 6.681/65

Guardo minha caixinha de Tic-Tac de menta. 

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