FESTAS VIRTUAIS: QUE SAUDADE DE QUEM NÃO CONHEÇO

Vida noturna, fauna boêmia e a sede de cidade

Com boates e bares fechados, desponta a vida noturna online. Do conforto de casa, a música, os DJs, fauna boêmia e, por vezes, certo vazio. Nessa resposta festiva à pandemia, um anseio visceral: o da cidade como cenário vivo de experiências inesquecíveis e narrativas complexas

Por Melisa Codina e Bruno Salvador Oliva, na Revista Anfibia| Tradução: Vitor Teixeira | Imagem: La Delmas

Peitos, bundas, mamilos, troncos sem cabeça. Alguns vestidos, outros nus. Chapéus, bandeiras e bandanas. Uma mina vestida de animal print dança com seu cachorro enquanto um casal faz ménage com um dinossauro de pelúcia verde-fluorescente. Um careca pega no sono com seus fones de ouvido ligados. Uma morena linda puxa a camiseta e a transforma num top — e até se pode distinguir as gotas de suor que se bifurcam na altura do seu umbigo: parece esculpido em chocolate. Ou talvez sejam os pixels de uma webcam vagabunda. O balcão, mais livre que nunca, se ilumina com o veneno que cada um pode conseguir no mercadinho da esquina: cerveja, fernet, algum vinho barato. Os mais sofisticados enchem suas taças cocktail com bebida colorida. Ao fundo, luzes intermitentes, paisagens psicodélicas e até a cara do presidente Alberto Fernandez, com seu tranquilo sorriso. Parece que vale tudo. Se em alguma coisa esses mundos diferentes se coincidem, é no movimento ondulante de suas cadeiras ao ritmo de um mesmo beat, entre a necessidade pulsante de contato com outros, inclusive quando isso signifique expor a intimidade de seus universos privados diante de desconhecidos. Em tempos de covid-19, essa distinção se torna utópica.

Poderia se considerar fútil e mecânico aquilo que muitos sentem falta quando chega o final de semana: a necessidade de trocar de roupa, de se perfumar, de dançar, de encostar em outra pele, de fazer sexo. Um monte de vontades que reúnem essa sensação redonda, clara e coletiva do que significa querer sair pra noite. A quarentena avança mais e mais e essa coisa mecânica vai se dissipando. Preciso dançar? Quero conversar com alguém sem saber seu nome? Acho que tenho saudades de gente que não conheço.

Dançar, como verbo e sujeito, é um confronto em meio ao isolamento. O corporal – mover, cantar, escutar, cheirar, tocar – se dá plenamente através do corpo de outros. Sabemos que, quando um monte de gente se junta em um mesmo lugar, nos alimentamos de uma vibração que nos alimenta. Essa é a mística da noite e da pista de dança — e que agora ansiamos justamente porque a percebemos distante. 

“Quanto falta pra chegar sexta?”. “Vai bombar esse Zoom?”. “Eu vou combater o ‘cu-ronavírus’ rebolando”. As mensagens nos feeds de Instagram de diferentes festas virtuais se reproduzem mais rápido que o vírus. Algumas, inclusive, publicadas meia hora depois de terminada a farra. A abstinência não tarda muito em golpear os corpos que tanto anseiam em se mover em companhia. A oferta é ampla: desde festas privadas, onde é preciso conhecer alguém ou pagar uma entrada para ingressar, até transmissões ao vivo de DJ’s onde todos podem entrar e comentar como estão curtindo em suas casas. Entre estas, pululam festas inclusivas que compartilham um link de Zoom via Instagram até alcançar o limite permitido pelo aplicativo, de 100 pessoas, para olhar e se olhado, dançando ao ritmo de uma playlist em comum.

É estranho que a sensação de entrar em um bar ou uma balada seja agora uma lembrança: os primeiros passos antes de ver e apreender a pista, essa vertigem frente ao desconhecido, hoje se reduzem a alguns cliques e ao desejo de que a internet funcione bem. A iluminação calculada com o barulho harmonioso de conversas aturdidas pelos brindes e “tim-tins” dos copos, o cheiro de álcool e maconha no ambiente já não existem mais. Sentimos saudade do tato e utilizamos, para simulá-lo, um meio de comunicação intangível. O virtual é agora o único recurso para invocar a noite, agora inalcançável. Como não temos muita margem de ação, fazemos o melhor que podemos: dançar (em frente a um monitor). Uma expressão de resistência. Um desejo de colocarmos outra roupa, sentir outro perfume, ver outras luzes. A único coisa que se mantém constante é a música, sempre firme, como motor inegável da festa.

A mística não é exatamente a mesma. Não vamos comparar o cheiro rançoso de um bar ou o vapor intoxicante de uma balada-podreira, com o cheiro de milanesa frita que flutua na sala de casa após o  jantar — e que os outros não poderão sentir. Mas nada vai ser mais o mesmo depois da pandemia. Ou, pelo menos, depois de um longo tempo. Por enquanto, estamos forçados a adaptarmo-nos e a sobreviver ao isolamento da melhor maneira possível. A fuga da monotonia de um dia difícil toma a forma da tela que temos à mão. Em um monitor podemos compartilhar nosso espaço com até vinte pessoas. Para nos mover para outro lado, é só clicar em uma flechinha que muda a imagem em questão de microsegundos: outras vinte novas caras-corpos-bundas para analizar. “Por favor, silenciem seus microfones, assim todos podemos escutar a música”, anuncia a aeromoça antes da decolagem.

As normas de convivência são simples: goze e deixe gozar. Nada de bobagens ou incômodos virtuais que cortem o mambo festeiro. Cada um curte a festa do seu jeito, porque algumas coisas não podemos permitir que mudem.

Entre aqueles que procuram se atualizar para a noite na virtualidade, que já se transforma em algo comunitário no confinamento, depara-se com a proposta de Bresh — a festa de que todos falam – e sua versão pós-covid, “Bresh en casita”. Já são três edições virtuais com 450 mil visualizações e um recorde de 64 mil breshites (assim se denominam seus fiéis seguidores) vibrando simultaneamente ao ritmo das pedradas que, uma atrás da outra, Ale “b.r.ö.d.e.r” Saporiti manda direto da comodidade de sua casa. “O desafio foi traduzir nosso conhecimento de produção de show ao vivo para um estúdio de televisão. A ambientação e a qualidade do áudio foram quesitos essenciais, assim como a energia que nós DJ’s devíamos transmitir, suficientemente forte e honesta, para que a viagem através da tela do celular pudesse levar alento a todas essas pessoas.”, conta b.r.ö.d.e.r.

Isso é justamente aquilo que público quer — e sua festa está bombando. A cada sábado, milhares de pessoas se reúnem ao vivo no Instagram e já são abertas pequenas sucursais da Bresh via Zoom – uma espécie de esquenta – para curtir e sair sem transgredir o confinamento obrigatório, para que todos possamos seguir vivendo.

Mas como na era pré-covid, não é essa a única festinha do mercado. Há outros espaços menos massivos, criados especialmente para o Zoom, mas igualmente convidativos e com diversas temáticas, que almas caridosas habitam a cada final de semana para saciar nossa sede de comunidade.

A Enlaperatourbar convida os presentes a entrarem de pijama e oferece aulas de bachata e twerking. A SePiCall pede para que se pimpeen para descer até o chão com os DJ’s Villa Diamante e Cachorra; enquanto a aberta e inclusiva #APuraCuarentena, organizada pelo @PresiGay e seu gabinete, propõe maquiagem, glitter, máscaras e adornos para dançar até o amanhecer.

São 4 da manhã. Agora o casal do dinossauro verde aponta a câmera para o teto e todos sabem que estão fazendo um break para se pegarem. O cachorro já não está mais na cena, mas a magrinha de animal print continua dançando frenética, como se o mundo fosse terminar a qualquer momento. O cara careca com fones não acordou e se tornou a sensação da festa: todos falam dele. Iluminada por um brilho azulado da telinha do celular, a morena recebe uma mensagem. Ou ao menos parece que recebe, pois esboça um meio-sorriso e some da festa. Quase ao mesmo tempo, um rapaz se despede e também se vai. Coincidência? Não sabemos e tampouco importa. Em uma das muitas versões da história, assim como era nos tempos pré-covid, os dois foram tomar uma saideira, só que uma intimidade tácita como essa é aspirada somente por chats privados do WhatsApp.

A festa virtual nasce como resposta visceral a como sentimos saudades da mística da noite, incluindo aí seus mais sujos aspectos sensoriais: a mancha de fernet que se impregnam nas calças, o cheiro de cigarro no cabelo e até o zumbido que perdura nos ouvidos horas depois de sair da festa. Que longe estamos de voltar a sentir o abraço infernal de todas essas deliciosas impurezas. A noite é um arquétipo, um cenário vivo de experiências inesquecíveis e narrativas complexas, que se foi com sua mochila nas costas apenas com passagem de ida. E nós, ficamos sem saber quando voltaremos a vê-la. Cruz credo!

Escrevem isso duas pessoas que amam a noite. Bruno com um gin tônica em Neuquén e Melisa com um vermouth en Palermo. E apesar da distância experiencial que os separa, os dois se perguntam: qual é o sentido do fim de semana? Cair na noite. Justo o que vem faltando e o que, possivelmente, será o último a voltar à normalidade.

Então resistimos com o ânimo no talo e os celulares carregados. Cruzemos os dedos para que não se corte a internet e para que nunca falte cerveja nem glitter. A festa não terminou, só muda de terreno. Nos vemos lá.

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