Por um programa de salvação nacional

No pós-Bolsonaro, será preciso reconstruir um Brasil em frangalhos. Porém, propagandear a volta a um passado idílico não tem base real. Precisamos romper com erros estruturais que vigoram desde FHC – e responder a um mundo bastante diferente

Imagem aérea do Guarujá. Foto: Johnny Miller
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Por Jean Marc von der Weid

Este artigo é o segundo de uma série em que Jean Marc von der Weid se propõe a analisar a crise brasileira em suas diversas dimensões e propor alternativas. Leia o primeiro artigo aqui:
Um tsunami alimentar no horizonte brasileiro

Depois de ter escrito vários artigos cobrando (metaforicamente) dos candidatos à presidência, em particular de Lula, qual o programa que defendem para enfrentar a crise histórica que o país está enfrentando desde 2015 e que se agrava a cada ano que passa, vários amigos e alguns não tão amigos vêm me cobrando (ou desafiando) a explicitação do que eu proponho como programa. Sem ter a pretensão de tratar de todos os temas urgentes e emergentes a que nos reduziu o famigerado Bolsonaro, vou tentar colocar algumas preocupações que considero prioritárias para qualquer programa mais amplo que venha a ser discutido. Em outras palavras, o que tenho a propor não é tudo o que teremos que fazer, mas pretendo que sejam ações fundamentais para começarmos a corrigir os rumos do país, não só os percorridos nos últimos 3 anos, mas os iniciados nos anos 90.

Desde logo, é preciso ficar claro que não vejo qualquer sentido de se propor uma volta a um passado idílico onde teríamos sido felizes e não sabíamos, durante os governos de Lula e de Dilma. Esta narrativa pode dar bom resultado eleitoral, mas é um caso flagrante de “loteamento no céu”. Os governos do PT, mas também os do seu antecessor Fernando Henrique Cardoso, encaminharam o país para um rumo insustentável, independentemente das benesses que uns e outros trouxeram para aliviar os sofrimentos do nosso povo. Prometer fome zero, emprego pleno e aumento da renda, “como já fizemos antes”, é um caso de estelionato eleitoral. As condições não são as mesmas, tanto no Brasil como na economia internacional. Quem for para o governo vai ter que encarar a verdadeira “herança maldita”, com a economia e o aparelho do Estado em frangalhos, entre outros problemas pesados. E vai ter que lidar com investidores internacionais e nacionais desconfiados da seriedade das nossas decisões e propostas, além de uma economia mundial em choque pela pandemia e pela crise ambiental em franca expansão. Quem for para o governo vai ter que pensar no Brasil e no Mundo levando em conta a grande crise ambiental, econômica e social provocada pelo modelo de desenvolvimento capitalista.

Para começar, antes mesmo de discutir os temas prioritários e as formas de enfrentá-los, precisamos definir algo menos corpóreo e material: que grandes orientações propomos para colocar o país no rumo da saída da mais grave crise que nos acometeu desde a nossa constituição como nação? Necessitaremos de um enorme esforço de reconstituição do tecido social, das relações entre as pessoas. Vai ser preciso curar imensas feridas, reaproximar as gentes conflitadas e reestabelecer ou estabelecer a tolerância e o diálogo como práticas inerentes ao relacionamento social e à democracia. Vai ser preciso superar o possante sentimento de ódio pelo outro, pelo diferente, que vem nos marcando em todos os horizontes das opiniões políticas, sociais e culturais. Para enfrentar a gigantesca tarefa de refundar o país e direcioná-lo no sentido de um estado de bem-estar coletivo, com uma economia sustentável orientada para a produção de felicidade e contentamento, vai ser preciso mobilizar toda a sociedade com base no sentimento de solidariedade e compartilhamento e não na base da competição e do egoísmo. Não se trata de um sonho delirante, mas de uma crença na humanidade e na certeza de que sem isso mergulharemos na barbárie e na espiral de violência estatal, grupal e individual em um vale tudo do salve-se quem puder ou salve-se quem tiver mais poder. No entanto, é claro que este esforço de acomodação dos diferentes tem limitantes concretos: os interesses de classe de uns e de outros. No rearranjo necessário da nossa ordem econômica uma minoria poderosa vai ter que entregar os anéis, para não perder os dedos. E não vai fazer isso de bom grado, infelizmente. Sem ódios, mas com firmeza, essa é a luta que não é possível evitar.

Refazer a economia e promover o desenvolvimento requer repensar os rumos que vínhamos adotando. Fazer esta revisão exige que nos coloquemos com um ponto de vista sobre qual deve ser o propósito daquilo que chamamos de economia ou desenvolvimento econômico.

O pensamento econômico dominante, conhecido como neoliberalismo, apregoa que o mercado é o melhor regulador da economia e que, portanto, quanto menor a sua regulamentação, melhor. Quanto menos Estado para pactuar os diferentes interesses da sociedade, melhor. O mercado, sem restrições, permitirá da forma mais racional e eficiente que os fatores produtivos se articulem para entregar o que a sociedade quiser, em bens e serviços.

Esta teoria e prática serviu, desde o final do século XX e deste início do século XXI, para intensificar de forma exponencial um mundo de imensos desequilíbrios, tanto entre países como dentro de cada país. Parece impensável para muitos, tal o domínio ideológico do Deus mercado, mas o mercado serve essencialmente para enriquecer uns poucos milhões com mais riqueza do que o somatório daquela nas mãos da imensa maioria. Os 2.755 bilionários de todo o mundo dispõem de mais recursos do que a ampla maioria dos habitantes do planeta. Os dados coletados pela OXFAM ainda são mais chocantes quando compara a riqueza dos dez supercapitalistas mais ricos do mundo (não são dez empresas, são dez pessoas) com a “riqueza”, somada, dos 3,1 bilhões mais pobres do planeta, quase a metade da população mundial. O volume de recursos nas mãos desta ínfima minoria de privilegiados pelo mercado chega a ser obsceno e desafia o sentido comum: que podem fazer com tantos recursos?

Se este é o propósito do mercado “livre” ele tende a correr para a sua autodestruição. Esta se dará, (1) pela brutalidade da exclusão das imensas massas de pobres e miseráveis, sem qualquer expectativa de serem incluídos sequer no padrão de vida dos pets desta classe nababesca; (2) pela acelerada destruição do meio ambiente e esgotamento dos recursos naturais provocados pelo crescimento econômico impulsionado pelo mercado.

Estamos há dois anos assistindo ao choque de realidade que derruba esta postura. A pandemia da covid-19 mostra várias coisas, desde o impacto ambiental do agronegócio gerando as condições para a emergência deste e de outros vírus e bactérias, até a importância dos Estados e organismos multilaterais para coordenar os esforços nacionais e internacionais de enfrentamento da crise, intervindo no funcionamento do Deus mercado. Viu-se o quanto a desestruturação de sistemas nacionais de saúde pública penalizou o cidadão comum em muitos países do mundo, sendo os casos mais notórios os EUA, a Europa e a Rússia e o próprio Brasil (apesar do nosso combalido SUS). Mas o mais desafiador para o futuro é a constatação de que estamos caminhando celeremente para a destruição da civilização tal como a conhecemos e, muito possivelmente, para a destruição da vida humana no planeta Terra. Não se trata de algo que pode vir a acontecer daqui a muito tempo, mas que já está em curso há mais de um século e acelerando-se na medida em que a expansão do capitalismo e a dominância da lógica de mercado vão eliminando os limites do planeta. Estamos já saqueando os últimos hectares de terra, derrubando as últimas florestas, esgotando as últimas reservas marinhas, esgotando as últimas jazidas de muitos minerais essenciais. Estamos destruindo habitats que levaram milhões de anos para se formarem e aquecendo o planeta de tal forma que, se nada for feito muito rapidamente (nos próximos dez anos) e muito radicalmente, o aumento da temperatura média vai ultrapassar o limite otimista estabelecido pelo Acordo de Paris, ou seja, 1,5 graus célsius. Mantidas as tendências atuais o aumento da temperatura média no final do século (e provavelmente muito antes disso) será de 6 graus célsius e isto vai tornar uma boa parte do planeta impossível de ser habitado e o resto do mundo um lugar muito desagradável para se viver, se é que viver vai ser uma coisa possível.

É com estas premissas que pretendo discutir os pontos para um programa de salvação nacional: necessitamos uma sociedade solidária e uma economia voltada para o bem-estar da coletividade e não para os gastos suntuosos de uma minoria de poderosos. Necessitamos de uma economia sustentável que não polua o meio ambiente, que poupe os recursos naturais não renováveis, conserve os recursos naturais renováveis e faça o máximo de reciclagem possível. Necessitamos de uma sociedade de consumo essencial garantido para todos antes de se pensar em consumo supérfluo. Precisamos de conservação máxima de produtos duráveis, eliminando de uma vez a estratégia do desperdício que marca a lógica do mercado capitalista.

Quais as necessidades essenciais de uma sociedade, aquelas que têm que ser garantidas como um direito de todos? Certamente não o automóvel, o helicóptero, o iate ou o jatinho de uso individual. Não a casa gigante com piscina aquecida ou refrigerada, spa particular, mármore de carrara alternando com mogno em tábua corrida e outras e caras benfeitorias que são ou podem ser, certamente, belas e confortáveis. Tudo isso é desejável, é claro, mas não é essencial, e, sobretudo, não será acessível para todos, já que não haveria recursos naturais para tal. Esta deve ser a regra de ouro: a economia deve trabalhar para o conjunto e não para os privilegiados de qualquer tipo (incluída aí a burocracia de estado).

O ser humano precisa comer, beber, respirar ar puro, morar em residências confortáveis, apropriadas e seguras. Precisa viver em um ambiente saudável, sem poluição de qualquer tipo. Isto já define um programa básico:

(1) garantir a segurança alimentar e nutricional de todos os cidadãos;

(2) garantir acesso a água de boa qualidade e em quantidade suficiente para seus diferentes usos;

(3) garantir ar não poluído em qualquer lugar, campo ou cidade;

(4) garantir roupas adequadas para todas as estações, regiões e atividades assegurando ampla diversidade de oferta sempre que de forma durável;

(5) garantir residências adequadas para cada família em construções ambientalmente adequadas e tecnicamente seguras;

(6) garantir o saneamento básico para todos, com a eliminação ambientalmente correta de esgoto e lixo, com reciclagem de produtos sólidos e compostagem de produtos orgânicos;

(7) garantir a energia necessária para manter em funcionamento tanto a economia quanto a sociedade em geral, sem impactos ambientais e de forma sustentável;

(8) garantir a saúde pública e gratuita para todos, com ênfase nas medidas preventivas.

Além destas necessidades físicas vitais, o ser humano necessita:

(9) de atividades de lazer, esporte e cultura que tem que ser disponibilizadas de forma ampla e diversificada;

(10) a educação deve ser um serviço público generalizado desde o berço, com as crianças de todas as idades em tempo integral em creches, escolas e universidades. As atividades de estudo e aprendizado deverão ser balanceadas com lazer, arte e esporte, além de integração com a natureza;

(11) a pesquisa científica deve responder às múltiplas exigências deste programa de garantia de direitos e não à lógica da remuneração do capital. A pesquisa pública terá um lugar de destaque;

(12) a preservação e recuperação do meio ambiente terá que ser uma prioridade fundamental. Não só deve haver uma prioridade para as ações dirigidas ao meio ambiente, mas em cada decisão de política pública deverá haver uma interação com os critérios que regem o enfrentamento da crise ambiental;

(13) garantir o transporte público de qualidade e gratuito para todos os cidadãos, abandonando o mito do transporte individual, do carro do ano, mesmo que elétrico;

(14) garantir emprego qualificado e corretamente remunerado para todos, com garantia dos direitos trabalhistas, assegurando jornadas de trabalho mais reduzidas que permitam outras atividades, de lazer, esporte e cultura;

(15) para cumprir este programa vai ser necessário ao novo governo recuperar a capacidade de gestão do Estado, que vem passando por um desmonte generalizado em todos os setores. Em particular vai ser preciso recuperar o controle do executivo sobre o orçamento;

(16) a reorientação da economia e do ordenamento social vai exigir recursos financeiros significativos e eles terão que vir da camada que sempre foi privilegiada em matéria tributária, os milionários e bilionários. O sistema de impostos deverá ser progressivo e não regressivo, com mais impostos sobre a renda, inclusive dos ganhos financeiros, e menos sobre a produção e o consumo;

(17) a segurança dos cidadãos deve ser garantida de forma igualitária, sem discriminação de sexo, cor ou orientação sexual;

(18) as questões identitárias deverão ser tratadas de forma transversal em todos os temas anteriormente elencados, garantindo-se direitos iguais para todos os cidadãos;

(19) as forças armadas deverão ter seu papel na sociedade redefinido em função das novas realidades nacionais e internacionais.

Vou tratar de apenas alguns destes pontos e de forma diferenciada pois não tenho o mesmo domínio sobre todos eles. Na seleção dos temas a tratar nesta proposta de programa vou adotar um critério de significância de cada tema e da minha capacidade de tratá-lo. Os temas serão tratados em separado, começando com a questão da fome, assunto do próximo artigo.

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