Mundo árabe: o Ocidente ajudou a impor o véu

Intelectual palestina relembra os anos rebeldes da descolonização. E destaca: para liquidar o movimento, EUA, Reino Unido e França derrubaram governos de esquerda e abriram caminho ao fundamentalismo islâmico. Agora, atacam o Irã

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Por Sahar Khalifeh, no Le Monde Diplomatique Argentina | Tradução: Rôney Rodrigues

É sabido que, na cultura árabe, como em muitas outras, a mulher encarna o sexo frágil, o outro sexo, o sexo desigual, o sexo que não herda nada, nem mesmo o sobrenome, o sexo que pode gerar descendência ou desonra. Meu nascimento, para minha família, significou uma decepção que chegou às lágrimas, pois todos esperavam um varão. Para piorar, eu era a quinta filha da família, ou seja, a quinta decepção e, para minha mãe, a quinta derrota. Ao lado da esposa de meu tio, que triunfantemente deu à luz dez meninos inestimáveis, ela passou por uma mulher amaldiçoada. Em vão ela era mais bonita, mais inteligente e mais digna do que minha tia (e as outras mulheres da família); todos a consideravam a menos fecunda, aquela que não podia dar bons frutos.

Eu herdei seus preconceitos e suas teorias. Desde a infância não paro de ouvir como as meninas – da família, do bairro e do mundo inteiro – são descritas como seres impotentes, indefesos, condenados pela natureza a permanecer irremediavelmente débeis.

No entanto, alguns meses atrás, minha irmã mais nova descobriu que eu era o único membro da grande família Khalifeh a ser listado na enciclopédia palestina. Com um suspiro de alívio, sublinhou: “A enciclopédia não menciona meu pai, nem meu irmão, nem meu tio e seus dez filhos milagrosos, nem qualquer outro homem da família, só você está nela!”.

Como mulher árabe, passei por diferentes fases. Recebi algumas influências que me transformaram e contribuíram em parte para a evolução da sociedade. Até as famílias árabes mais conservadoras agora mandam suas filhas para a escola. Essas mulheres, uma vez formadas, tornam-se professoras, médicas, engenheiras, farmacêuticas, escritoras, jornalistas, musicistas ou artistas. Muitas agora parecem indispensáveis, mais fortes, mais criativas e mais importantes que os homens.

Os anos de efervescência

No entanto, a mídia ocidental nos retrata como criaturas horríveis envoltas em xadores, vestidas com máscaras de couro, como cativas de um harém dissimulado atrás dos véus. Eu me pergunto por que ela nos vê assim, fixadas em uma realidade unívoca e imutável. Realmente acreditam que fomos criadas de forma diferente do resto do gênero feminino, incapazes de mudar?

Na escola tive um professor que sempre falava em “mudança”, alterando o tom e o significado da palavra de acordo com os aspectos da realidade árabe que ele abordava; a redistribuição da riqueza, o status das mulheres ou regimes políticos obsoletos. Ele era respeitado e admirado por todos ao meu redor; os mais novos queriam se parecidos com ele, e os menos jovens concordaram em escondê-lo quando ele foi perseguido pela polícia.

Este maravilhoso professor não foi o único a falar de mudança e justiça. A maioria das pessoas instruídas acreditava nessas ideias e as defendiam. Como ele, milhares de homens inteligentes eram procurados pela polícia ou apodreciam nas prisões de regimes sustentados e subsidiados pelas potências inglesas, francesas e, mais tarde, estadunidenses.

O nacionalismo árabe teve sua idade de ouro durante as décadas de 1950 e 1960. As ruas movimentadas transbordavam de esperança de transformação. Adotamos uma atitude rebelde e crítica em relação aos nossos sistemas sociopolíticos tradicionais. Na nossa literatura, no nosso teatro, nas nossas canções, na nossa música, e até nas expressões que usávamos no dia a dia, encontravam-se os ideais de libertação e justiça social. A literatura de todo o mundo coloriu nossa cultura. Nossas livrarias e nossas ruas estavam explodindo com livros que clamavam por libertação, revolução e mudança: literatura existencialista, socialista, negra…

Esse impulso comoveu a todos, inclusive os camponeses analfabetos e as mulheres, que começaram a sair sem véu. Dezenas de milhares delas foram para a faculdade; algumas passaram a militar em partidos políticos. Não só não usavam mais véu, mas vestiam uma camiseta ou minissaia. Por mais inacreditável que isso possa parecer, dançamos ao som do rock and twist, apesar de nosso ódio pelos ocidentais. Queríamos viver como eles sem que eles nos dominassem.

A derrota

Essa atmosfera idílica se dissipou quando Israel, apoiado pelo Ocidente, conseguiu derrotar o líder egípcio Gamal Abdel Nasser em 1967. Essa derrota significou também a de nosso movimento nacional e de nossas convicções socialistas; uma ocasião que os estadunidenses e seus aliados regionais não deixaram passar. Com milhões de dólares, eles forneceram apoio maciço aos islâmicos para sufocar o nacionalismo progressista. A Irmandade Muçulmana, que até então era indiferente ao povo, ampliou seu poder. A situação em nossa região nas décadas de 1970 e 1980 era muito semelhante à do Afeganistão, quando os estadunidenses ajudaram os islâmicos, e em particular Osama bin Laden, a enfrentar os comunistas.

Instituições e meios de comunicação ocidentais, seja a imprensa escrita ou a televisão, o cinema ou as universidades, apresentam a mulher árabe como uma criatura velada da cabeça aos pés, na qual os seus olhos nem sequer são distinguíveis. Ela deveria ser incapaz de respirar ou pensar sob seu xador negro, uma sombra em movimento que vagueia no vazio como uma bruxa ou um fantasma assustador.

A vestimenta da criatura que as mulheres como eu encarnam a seus olhos é chamada de “roupa islâmica”. No entanto, estou convencida de que não é islâmico nem árabe, e que é uma criação do Ocidente e uma manifestação perturbadora de seu imperialismo.

Minha mãe usava um pedaço de gaze preta transparente na cabeça que cobria parcialmente o rosto e o cabelo, permitindo que ela visse e respirasse ao mesmo tempo. O resto de seu traje consistia em uma saia ou vestido simples que chegava aos joelhos, com uma jaqueta curta que enfatizava seu peito e cintura. Nada a ver com o que é considerado um “traje islâmico”, que transforma o corpo feminino em uma bolsa disforme, uma massa escura, uma cortina de fumaça.

No início da década de 1950, minha mãe aderiu ao movimento sufur (revelação) junto com muitas outras mulheres de sua geração. Algumas, como ela, vieram da classe média das grandes cidades árabes. Outras de condições menos privilegiadas e de cidades menores. Basta olhar os registros dos shows da cantora egípcia Oum Kalthoum ou de outros artistas da mesma época para verificar que, naquela época, nenhuma mulher do público usava essa vestimenta.

A desastrosa ocupação da Palestina por Israel em 1948 provocou uma deterioração da situação econômica que teve um impacto direto sobre as mulheres. Milhares de famílias que perderam suas terras, suas casas e cujos homens foram mortos em combate tiveram que retirar as mulheres da esfera doméstica para mandá-las a trabalhar ou estudar.

Milhares de jovens palestinas instruídas começaram então a ser vistas viajando sem lenços, morando sozinhas sem se casar e, apesar disso, mantendo a estima de seus parentes e da sociedade: eram elas que sustentavam famílias com poucos recursos. Descrevi essa situação em meu romance L’Heritage (1997). Com o tempo, foi aceito, e até bem-vindo, que elas financiassem os estudos de suas irmãs mais novas no Egito, na Síria ou no Líbano, permitindo-lhes obter diplomas em medicina, farmácia, engenharia, direito ou outras disciplinas. Jovens qualificadas, corajosas e de mente aberta lançaram uma onda de emancipação feminina e social, embora nosso conhecimento do pensamento feminista se limitasse aos artigos publicados em jornais egípcios por um punhado de pioneiras como Amina Al-Said, Suhair Al-Qalamawi e Durriya Shafik; escritos esses que não iam além de temas como planejamento familiar, casamento precoce ou poligamia.

Mas, logo após nossa derrota para Israel em 1967, regimes árabes ditatoriais, hostis ao socialismo e apoiados pelos Estados Unidos, aliaram-se a grupos fundamentalistas islâmicos e os financiaram generosamente. Todos os que usavam o famoso “traje islâmico”, por exemplo, recebiam uma mesada mensal: 15 dinares jordanianos para um homem e 10 para uma mulher. Os homens usavam um dishdasha curto ou jellabiya, sandálias de couro e uma longa barba sem aparar; as mulheres usavam um lenço grosso na cabeça e uma longa túnica que descia até os dedos dos pés. Os destinatários deste subsídio também receberam um rosário, uma edição soberba do Alcorão e um lindo tapete de oração.

Temos que escolher entre um Ocidente sinônimo de liberdade, secularismo e ciência – mas também colonialismo – e um Islã implacável que clama por resistência ao Ocidente, mas que se opõe não apenas à ciência e à modernidade, mas também à emancipação feminina e social.

As organizações islâmicas começaram focando em jovens que já haviam sido treinados como motoristas e que exerciam influência sobre outros. Elas também queriam alcançar as mulheres da casa. Então sua atenção se voltou para mesquitas, escolas e universidades. Tudo isso não poderia ter funcionado sem a ajuda – especialmente financeira – dos regimes árabes que declararam sua lealdade, até mesmo sua submissão, aos Estados Unidos, alinhando-se com sua estratégia, na esperança de que o islamismo pudesse acabar com os socialistas e progressistas dentro de suas sociedades.

No entanto, os fundamentalistas não se contentaram em impor suas roupas, suas contribuições mensais e seus lugares de encontro. Para conquistar as mentes do ensino fundamental e médio, homens e mulheres islâmicos foram priorizados em cargos de ensino, dando-lhes a missão de imprimir sua ideologia na psique e no intelecto dos alunos. Para completar sua educação, os adolescentes foram obrigados a receber um treinamento para incutir neles disciplina militar e artes marciais em campos instalados nos desertos da Arábia, no Afeganistão e no Paquistão.

Ironia do destino, quando os Estados Unidos e seus aliados perceberam a armadilha que haviam armado para si mesmos, o estrago estava feito e as organizações fundamentalistas planejaram estabelecer um regime islâmico hostil ao Ocidente.

Dupla ameaça

Vivemos atualmente uma terrível crise intelectual, social e política. Somos ameaçados por todos os lados, sem saber qual das duas ameaças é mais brutal. Por um lado, o Ocidente, cujas manipulações, exploração e colonização já sofremos; de outro, o islamismo, cujas supostas inovações nos trouxeram à era da opressão e dos haréns. Em outras palavras, temos que escolher entre um Ocidente que é sinônimo de liberdade, laicidade e ciência – mas também de colonialismo – e um Islã implacável que clama por resistência ao Ocidente, mas que se opõe não apenas à ciência e à modernidade, mas também à emancipação feminina e social.

E esse caos geral não se limita à nossa região; atinge também o Ocidente. Assim, o véu e o xador tornaram-se objetos de medo e aversão, a ponto de alguns países proibirem a vestimenta islâmica e o uso do véu nas escolas e locais públicos. Somos achacados agora por prejuízos raciais que colocam arbitrariamente árabes, muçulmanos e cristãos no mesmo saco.

De minha parte, deixo claro para aqueles que compartilham dessa visão estreita e egoísta que estamos mais próximos deles do que imaginam. Não estamos cansados de ouvir que o planeta se tornou uma aldeia? Chegamos em ondas humanas para bater em suas praias. Faça o que fizer para limitar a imigração e intensificar as restrições, sempre encontraremos uma maneira de chegar até vocês, superar os obstáculos levantados contra nós e impor nossa presença. Por outro lado, já estamos aqui. Eles podem negar a nossa presença, pois estamos em todos os lugares ao seu redor. Já fazemos parte desse mundo.

Não tenho nenhuma intenção de provocar sua raiva. Quero apenas defender minha causa de forma crua e concreta. Desejo que um leitor ocidental possa sentir o que eu sinto, temer o que eu temo; quero que tome ciência da dor que seus governos colonialistas infligem aos nossos povos, da dor que eles infligem a mim. Suas mídias me tornam um estereótipo; me condenam e me falsificam. Quando apresentam uma mulher de burca como a encarnação da mulher árabe, assumem que a escritora feminista que sou, assim como as milhares de outras mulheres instruídas, e as milhares de mulheres árabes modernas – muçulmanas e cristãs – que vivem nos países árabes, somos um rosto escuro, uma cabeça baixa, um corpo sem forma, alguém incapaz de pensar e de se expressar. Mas eles estão errados, porque a visão de uma mulher de burca me enche de medo e horror. Temo que um dia saia uma mão dessa imagem e decida que minha filha, minhas netas ou eu, diante de um sinistro regime árabe, seremos mantidas no escuro pelas manobras que visam nos manter como estamos há muito tempo: um campo de petróleo a serviço do mercado ocidental.

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