O estranho exemplo de “democracia” dos EUA

Imagine uma nação que vigia seus cidadãos (e até outros países) e persegue jornalistas e advogados que denunciam os crimes do Estado e corporações. Este é o modelo de vida republicana a seguir? Colonizada, direita brasileira acredita que sim

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Os fatos atuais nos EUA refletem a clara polarização política com base na origem racial. A tão decantada democracia dos EUA mostrou sua verdadeira face com a pretendida ruptura na invasão do prédio do Congresso Nacional por uma turba violenta, composta de brancos republicanos, incitada pelas palavras do presidente Trump, que negava o resultado das eleições que dera vitória ao candidato Joe Biden. Foi necessário suspender a sessão do Congresso de validação dos resultados e esvaziar o prédio, recomeçando a sessão na madrugada seguinte para, ao final, confirmar o resultado da vitória de Joe Biden. A sociedade norte-americana, porém, continuará a conviver com a intransigência dos “supremacistas” brancos, que não se dobraram nem diante das manifestações contra o assassinato, violento e condenável por discriminação do cidadão negro George Floyd em Minneapolis, Minnesota, EUA, cometido por policiais brancos.

Faz décadas, críticas são feitas à forma de democracia nos Estados Unidos, por atitudes tanto no interior do país, quanto no exterior. Enquanto durava a Guerra Fria – período entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a extinção da União Soviética (1945-1991) – existia um equilíbrio e polarização de forças políticas entre os EUA e a URSS. Em seguida, instalou-se a hegemonia dos Estados Unidos como país “exemplo de democracia”, que lhe serviu como fachada para justificar internacionalmente atos de intervenção, por armas ou não, na política de outros países com a pretensão de restaurar situações que os EUA consideravam “violação à democracia”, embora utilizassem paralelamente pressões econômicas, de forma pouco democrática, para instalar suas grandes corporações, explorar seus recursos minerais ou realizar grandes negociatas nos vários países, com benefícios superlativos. Sem dúvida, essa intervenção dos EUA significa uma excrescência, e de cumplicidade com outros países, da política internacional pressionada por interesses econômicos subjacentes, embora avessa ao direito internacional, pois nenhum país deveria ser juiz ou tutelar a política de qualquer outro.

No plano internacional, a partir de 5/6/2013, o jornalista americano Glenn Greenwald, através do jornal The Guardian e de vários outros como o The New York Times,The Washington Post, Der Spiegel, foi publicando as revelações da “vigilância global” americana, que abrange inúmeros programas de vigilância eletrônica pelo mundo, executados pela Agência de Segurança Nacional NSA, dos Estados Unidos. Era a denúncia dessa rede de sistemas de Vigilância global americana pelo mundo, entre os quais o programa PRISM, divulgado através dos documentos fornecidos por Edward Joseph Snowden, técnico em redes de computação que trabalhou por quatro anos em programas da NSA. O programa conduziu à revelação de inúmeros outros programas visando à captação de dados, e-mails, ligações telefônicas e qualquer tipo de comunicação entre cidadãos no mundo inteiro. A NSA chegou a espionar a Petrobrás para o fim de beneficiar os grupos americanos nas transações com o Brasil.

Fato semelhante foi revelado, em fins de outubro de 2013, com destaque no jornal britânico TheGuardian. Era a notícia de que 35 chefes de Estado, entre homens e mulheres, de vários países do mundo tiveram seus telefones particulares (cerca de 200) devassados, monitorados e espionados em tempo integral pela Agência de Segurança Nacional dos EUA, a NSA, quando Barack Obama era presidente. Entre os países que sofreram esse ataque estavam o Brasil, a presidente Dilma Rousseff, e na Alemanha, a primeira-ministra Angela Merkel, personalidades políticas que manifestaram sua indignação. No entanto, houve pouca repercussão na grande mídia. De forma surpreendente, o jornal The Guardian sofreu ameaça de censura de parte do primeiro ministro inglês David Cameron, caso persistisse no trabalho investigativo e nas denúncias dessa espionagem americana. O jornalista Alberto Dines, fundador do Observatório de Imprensa no Brasil, criticou a atitude complacente da mídia internacional, que apenas se preocupa com fatos dessa natureza quando vislumbra algum risco para a segurança do respectivo país, deixando de considerar a gravidade do fato de amplitude mundial. No Brasil, infelizmente, a mídia não demonstrou grande apreensão com esse atentado à segurança do governo brasileiro, em atitude de deplorável subserviência.

No âmbito interno, a democracia nos Estados Unidos merece uma análise sob o aspecto de uma Justiça e de mídia independentes, que normalmente constituem critérios para avaliar o grau de democracia dos demais países e objeto de críticas.

Uma reportagem do jornal The Intercept em 24/02/2020 cobriu a detenção do advogado Steven Donziger, que havia vencido um processo de 9,5 bilhões de dólares no Equador, favorecendo os autores, campesinos e povos indígenas, e cuja sentença fora confirmada, em última instância, pela Corte Suprema contra a petrolífera Chevron (sucessora da Texaco) por contaminação maciça por esta na região do Lago Agrio, no Equador, e que lutava há vários anos pela execução da sentença. Poucos meios de comunicação deram notícia sobre essa prisão domiciliar, com retenção de sua carteira de advogado, sem meios para trabalhar e com uso de tornozeleira eletrônica. Essa prisão absurda já completou 530 dias e decorreu de uma decisão judicial resultado de uma reviravolta processual esdrúxula sob a pressão de interesses da Chevron, cujos detalhes constam de artigo meu anterior publicado neste blog.

Relevantes foram os argumentos do renomado advogado Stuart G. Gross, do Centro de Defesa do Meio Ambiente, nos EUA, em sua petição de amicuscuriae em 2011, em apoio ao grupo dos querelantes do Equador, onde afirmara que o tribunal distrital de Nova York cometeu grave erro ao emitir uma liminar impedindo a execução em qualquer lugar do mundo de uma sentença emitida por um tribunal estrangeiro, no caso, da Corte Suprema do Equador, decisão sem precedentes criada para a Chevron, pois nenhum tribunal anteriormente havia reconhecido tamanho poder abrangente. Simplesmente, por uma abstração jurídica, sem comprovação eficaz, a condenação judicial da Chevron por crimes ambientais e respectiva indenização deixou de ter validade jurídica sob a alegação de nulidade por decisão de juízo de Nova York e confirmada pelo Tribunal de Columbia, EUA.

As fraquezas da democracia nos Estados Unidos foram reveladas também pelo pedido de extradição do Reino Unido de Julian Assange, cidadão australiano e jornalista cofundador do portal WikiLeaks, com base na Lei de Espionagem pela publicação de documentos secretos do governo americano. Outros jornais internacionais, como The New York Times, The Guardian e Der Spiegel, em 2010, haviam se unido à WikiLeaks para expor os crimes de guerra dos EUA e outras verdades vergonhosas mantidas em segredo pelo governo. Dez anos após, apenas Assange continua sendo perseguido pelas publicações. Enquanto aguarda o julgamento do pedido, Assange está isolado no presídio de segurança máxima Belmarsh, em Londres.

O Relator Especial de Tortura da ONU, o professor suíço de direito Nils Melzer, assumiu a denúncia da tortura psicológica infligida a Assange e declarou expressamente que esse caso lhe interessa, da mesma forma que afeta os cidadãos que se importam com a democracia, afirmando que “Julian Assange foi intencionalmente torturado psicologicamente pela Suécia, Inglaterra, Equador e pelos EUA”.

A polícia sueca construiu uma história de estupro a partir de uma prova manipulada, testemunhos adulterados, pois as mulheres indicadas no processo não fizeram acusação alguma, resultando no arquivamento do processo por falta de provas. No decorrer do processo, porém, para evitar ser preso preventivamente e enviado para a Suécia, Assange teve que pedir asilo político na Embaixada do Equador em 2012, concedido pelo presidente Rafael Corrêa, onde permaneceu exercendo suas atividades pela internet. No entanto, o presidente Corrêa percebeu que o asilo estava acarretando muita despesa ao seu país com a segurança pessoal de Assange e politicamente não mais lhe interessava. Sinalizou seu desinteresse retirando a internet o que deixou Assange sem poder trabalhar. Com a mudança na presidência do Equador, Lenín Moreno buscou aproximar-se dos Estados Unidos e retirou de vez o asilo, e assim Assange foi preso pela polícia do Reino Unido — sob o pretexto de ter violado sua condicional com o pedido de asilo — e enviado para a penitenciária. No Reino Unido, violações da condicional geralmente são punidas com multas, mas o jornalista investigativo ficou preso preventivamente para dar tempo ao pedido de extradição.

O caso de Assange representa uma inversão de valores, nas palavras do Relator da ONU: “A coisa realmente horripilante nesse caso é a ilegalidade que se desenvolveu: os poderosos podem matar sem medo de punição e o jornalismo se transforma em espionagem. Está se tornando um crime dizer a verdade”. As publicações de Assange sobre os Estados Unidos, no WikiLeaks, referiam-se a provas de tortura sistemática. Afirmou Melzer que, ao invés de serem culpados os responsáveis pelas torturas, a perseguição foi contra o emissário da notícia, Julien Assange, que “foi tão maltratado que está exibindo sintomas de tortura psicológica” e sujeito à possibilidade de, uma vez concedida a extradição, ser torturado até a morte nos Estados Unidos. A juíza Vanessa Baraitser recusou a extradição para os Estados Unidos, enfatizando exclusivamente as condições de encarceramento desumanas que esperariam o réu nos EUA e a possibilidade de suicídio, mas os argumentos apresentados pelos EUA foram aceitos, o que significa um grave risco para o jornalismo investigativo e para a liberdade de imprensa. Refutou cabalmente os argumentos da defesa de que Assange seja perseguido por suas atividades jornalísticas e por motivação política e que suas revelações de crimes de guerra e de tortura pelos EUA tenham sido no interesse público.

Os Estados Unidos recorreram da sentença e, pela decisão em primeira instância, o jornalismo investigativo, como atividade de informação, continua ameaçado, sinalizado pela permanência da prisão de Assange, faz um ano e meio, em solitária, sem uma condenação formal, sem possibilidade de prosseguir em seu trabalho e sofrendo tortura psicológica constante. Percebe-se que a liberdade de imprensa nos Estados Unidos e nos países alinhados está sujeita aos limites permitidos pelo poder, que pretende perpetuar o sigilo de ações criminosas que seriam objeto de condenação perante os tribunais independentes e, no mínimo moral, pela opinião pública.

Para o relator da ONU, o Estado deve ser fiscalizado pela imprensa como um quarto poder, visando ao adequado funcionamento das divisões de poder e da democracia. Diante do processo contínuo de sigilo mantido pelo governo dos EUA, o jornalismo investigativo, como o caso do WikiLeaks, é sua consequência lógica e, enquanto se praticar a censura da imprensa para evitar divulgação de fatos escabrosos, os vazamentos serão o caminho único para sua divulgação.

São lições que servem para o Brasil, principalmente para avaliar a desvantagem de escolher outros países como símbolos de democracia e de exemplo. Temos nossas próprias diretrizes na Constituição Federal cidadã de 1988, que indicam as possibilidades para a busca constante pela democracia, trilhando o caminho do respeito aos direitos civis e políticos e aos direitos econômicos, sociais e culturais, bastante desvirtuados de várias formas pelo governo por sua submissão à política do neoliberalismo e dificultado pela cultura resultante de nosso passado refletido nas várias formas de discriminação, que necessitam ser vencidas. Assumir a forma própria de democracia, desenhada na Constituição Federal, é sinal de auto-reconhecimento do Brasil como um país autônomo e independente!

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