Política e patologia do golpismo

Há narcisismo, histeria coletiva e paranoia nas hordas bolsonaristas que rejeitam as urnas. Mas também há tática: sob estética tosca e fanatismo caricatural, querem negar conflitos democráticos e submeter lei a interesses particulares

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Foram suficientes poucas horas depois do resultado das eleições presidenciais para que pudéssemos testemunhar a multiplicação de manifestações golpistas e antidemocráticas pelo país. Um déjà vu? Em 1930, Getúlio Vargas já havia alegado uma suposta fraude nas eleições para justificar seu golpe, impedindo que Júlio Prestes, o candidato que havia sido vitorioso no pleito, pudesse assumir o cargo de presidente da República. Em 2014, mais recentemente, o PSDB, motivado pela suspeita e desconfiança nas urnas eletrônicas, contestou a vitória de Dilma nas eleições presidenciais. A contestação dos resultados eleitorais, portanto, não é uma novidade, e sim uma repetição na história do Brasil. Provavelmente, a novidade residiria na forma de expressão das atuais manifestações golpistas, configuradas por uma acentuada teatralidade e por atingir as raias do absurdo.

O conteúdo dessas manifestações varia. Em Porto Alegre, ao receberem a falsa notícia da prisão do ministro Alexandre de Moraes, manifestantes golpistas gritavam, se abraçavam e agradeciam a Deus pela dádiva recebida. Em outro vídeo, bolsonaristas parecem se encontrar em um estado de êxtase místico com a circulação da notícia, mais uma vez falsa, de que a fraude nas urnas havia sido confirmada. É inegável a alusão ao pentecostalismo: o Espírito Santo, finalmente, se fez presente e recolocou as coisas em seu devido lugar. Em Niterói, os muros dos quartéis foram elevados à condição de muro das lamentações. Assim como os judeus diante do único vestígio do Templo de Herodes, os fiéis da extrema direita, teatralizando uma farsa em relação ao seu modelo original, se dirigem aos muros dos quartéis para orar e suplicar, mas suas demandas exigem, de uma vez por todas, a efetivação do golpe na Terra. Se a atmosfera religiosa não lhe agrada tanto, em Itajaí tivemos fileiras de crianças e adolescentes marchando ou caminhando em ritmo marcial, uma clara alusão ao militarismo protofascista e uma infração vergonhosa ao ECA. Em Caruaru, por fim, notamos que Mad Max não ficou de fora nessa história, quando um golpista se agarrou e permaneceu, durante quilômetros, na frente de um caminhão em movimento em uma rodovia.

Todas essas manifestações parecem despertar o juízo crítico mais acentuado em muitos daqueles que reconhecem a vitória de Lula. De modo jocoso – mas nem sempre –, é sugerido que essas manifestações são casos dignos da psiquiatria. A Loucura, liberta das amarras da razão, teria inoculado em suas vítimas uma alta dose de seu veneno. Evidentemente, os discursos críticos às manifestações golpistas não abordam o tratamento ou o cuidado do louco, mas são movidos pelo imperativo de controlar, por meio da patologização, aquilo que ameaça a ordem republicana.

Podemos reconhecer nessas manifestações um processo regressivo em direção às trincheiras do narcisismo. O mundo é feito à minha imagem e semelhança, e qualquer regra ou norma que a contrarie deve ser recusada. Também podemos notar uma crise histérica vivenciada coletivamente. A experiência traumática recalcada e esquecida, quando ameaça ser despertada, deve receber como resposta uma reação à altura. Por fim, ainda podemos notar a circulação social de um discurso paranoico.

As manifestações golpistas, entretanto, não são somente manifestações patológicas coletivas, mas são manifestações politicamente reativas contra o avanço daquilo que combatem. Para que fique claro de uma vez por todas: estamos diante de uma luta de classes. A vitória de Lula afeta diretamente o discurso hegemônico de manutenção da desigualdade social, de justificação da pobreza como efeito do fracasso individual e de valorização do capital acima do ser humano. A luta de classes nem sempre é reconhecida pela declaração direta de seus envolvidos, mas pode ser percebida pelos efeitos que pretende alcançar.

Diferentemente do discurso de patologização da política, a psicanálise não é indiferente ao social. As queixas e o sofrimento que chegam na clínica não estão isolados do discurso que circula socialmente. É verdade que o indivíduo não é o mero espelho da sociedade, mas as experiências patológicas não estão dissociadas de uma configuração social localizada no tempo e no espaço e definida por questões de classe, gênero e raça. As experiências patológicas coletivas que vamos presenciando estão intimamente associadas com o momento político em que nos encontramos e com a retomada de uma longa história de luta social na história do Brasil.

Se seguirmos esse raciocínio, vamos precisar colocar em seu devido lugar algumas das falas que vêm circulando sobre as manifestações golpistas. Frequentemente, essas falas são interpretações irônicas – e, muitas vezes, bem-humoradas – do momento atual, mas não alcançam o verdadeiro conflito subjacente. As manifestações golpistas que estamos presenciando, configuradas em uma estética tosca e caricatural, não são apenas expressões de patologias sociais, mas também são táticas que visam suprimir o conflito político com o não reconhecimento do jogo eleitoral. Melhor ainda: a patologia social não pode ser compreendida se desconsiderarmos sua relação com os conflitos sociais e políticos.

A desconfiança e o questionamento das urnas são uma repetição na história do Brasil em momentos políticos decisivos. Algumas das novidades que presenciamos atualmente é sua íntima associação com a religiosidade pentecostal e sua configuração estética caricatural. Mas não podemos deixar de reconhecer que se trata de um discurso e de sua relação com a Lei. Nesse discurso que tem circulado velozmente, a Lei deve ser submetida aos interesses particulares. Quando isso não ocorre, a Lei deve ser desobedecida.

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